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O presente de Artêmis
II
Marin
Marin se olhou no espelho e estranhou as mechas escuras emoldurando seu rosto. Aquela foi a noite mais estranha de sua vida. Quando ouviu a mensagem de Artêmis não imaginou que seria voluntária em uma guerra. Primeiro, recebeu uma mensagem diretamente da própria Artêmis, depois ouviu suas dúvidas sendo respondidas por um Cavaleiro Dourado. Então se voluntariou para o que, tudo indicava, era um prelúdio de uma guerra. Tudo aconteceu muito mais rápido do que estava acostumada.
As cinco garotas escolhidas precisavam disfarçar certas características que chamassem a atenção nas cidades que iriam. De todas, Marin era sempre a mais prejudicada nesse processo, não bastava tingir os fios avermelhados tão raros em alguém oriental como ela, ainda tinha que cortar o cabelo de maneira que disfarçasse mais seus olhos puxados. Em Atenas não era tão raro achar alguém de outra cultura, mas uma oriental de olhos azuis tão brilhantes certamente chamaria a atenção. Assim, precisava ouvir as mesmas instruções das mentoras mais experientes: não levante muito o rosto quando andar pela cidade, não encare diretamente ninguém etc. Não era sua primeira vez e sabia que não era idiotice ouvir isso tudo várias e várias vezes enquanto arrumava seus pertences para a viagem. Observou Shaina fazendo o mesmo no extremo do cômodo e imaginou seu nervosismo. Ela não era uma das que acompanharia Dohko, foi escalada secretamente quando o Cavaleiro de Libra se retirou.
Antes mesmo de relatarem o que aconteceu na floresta, a amazona de Pavão informou a menina rebelde que ela também iria a Atenas. Era o usual, para qualquer amazona em treinamento, ter sua primeira visita secreta auxiliando outra mais experiente, não diretamente, mas como um reforço caso tudo desse errado. Passar dias sozinha apenas vigiando a outra sem manter contato nenhum era um grande aprendizado, contudo quando Marin participou de uma experiência assim, nunca pensou que talvez a amazona mais velha ficaria tão apreensiva. Não bastava se preocupar com o herdeiro de Leão, deveria ficar atenta a qualquer encrenca que Shaina se metesse.
Da última vez que frequentou uma cidade, Marin teve dificuldades em controlar sua fúria com o assédio constante. Imaginou como seria isso para Shaina... Procurou a amazona do outro lado do cômodo, seus fios estavam completamente descoloridos agora, loira assim parecia muito mais velha. A menina tinha o corpo feito e já andava por aí como uma adulta pronta para a primeira aventura sexual. Seu disfarce de serva humilde poderia deixá-la em apuros dependendo do senhor que a acolhesse:
- Eu não vou te atrapalhar. – Shaina disse, ríspida.
Marin sorriu por seu olhar preocupado denunciá-la:
- Espero que não, garota. – Colocou sua bagagem nas costas. Passou pela amazona e observou a máscara metálica jogada sobre a mesa – Não quero que você morra.
Shaina a fitou, surpresa, e se calou com aquela fala tão sincera. Geralmente era o que funcionava com ela, ser o mais franca possível sobre suas emoções a deixava desconcertada. Marin riu e jogou a máscara para que pegasse:
- Te vejo na cidade. – Se despediu e seguiu até o ponto de encontro com Dohko.
Era madrugada, mas o lugar estava em polvorosa. Várias amazonas e seus pequenos pupilos andavam a passos largos concentrados em cumprir alguma função misteriosa antes do amanhecer. As velas avermelhadas iluminavam todos os corredores, o que deveria ser só um alerta para o risco de encontrar algum forasteiro pelo lugar, agora reforçava a sensação de que uma guerra acontecia fora dali. Muitas amazonas, já dispensadas de seus serviços como espiãs, exibiam empatia ao encara-la. Ela seguiu no sentido contrário a toda correria e por fim chegou ao pátio principal.
Apesar da penumbra, já conseguia ver a figura notável do Cavaleiro de Libra. Estava encostado em uma das colunas que formavam um mirante e observava o céu estrelado atentamente. Como ela, estava com roupas simples, mas sua postura e físico demonstrava sua experiência como guerreiro. Não havia sinal da caixa de Libra em nenhum lugar. Estaria no quarto de Lara?
Enquanto esperava o pigmento especial tingir seu cabelo, Marin ouviu os comentários que Lara havia entrado em trabalho de parto e rapidamente deu à luz a uma menina. Com tantas coisas para resolver em pouco tempo, a ruiva não conseguiu passar no quarto da amazona mais velha. Gostaria de agradecer por sua ajuda de outrora e conhecer sua criança:
- Lara já decidiu um nome? – ousou perguntar, chamando sua atenção.
- Já. – Dohko sorriu e entre a luz das velas pôde ver a melancolia sumindo de seu rosto. Marin imaginou se ele conseguiu cochilar um pouco desde os eventos que sucederam a reunião. – Será Shunrei. Você a viu?
- Infelizmente não. – Marin respondeu, tentando ignorar o quão estranho era conversar com um forasteiro sem uma máscara. Ele não era um tolo da cidade que não fazia ideia dos planos das amazonas, mas também não era um dos Cavaleiros de Prata iniciados a seguir Artêmis. Talvez o que a deixava mais desconfortável ali era a imponência natural da linhagem dourada. Ou por saber tantos detalhes de sua intimidade com Lara. – Me disseram que ela nasceu forte.
Dohko sorriu mais, sem esconder o orgulho da paternidade. Shunrei seria a terceira filha de Lara e, como a amiga lhe confidenciara, era a primeira de Dohko. Apesar de ser um dos guerreiros mais velhos que conhecia, quase 30 anos, ele nunca se interessou em ter uma família. Ao contrário dos demais cavaleiros dourados, os três guerreiros do elemento Ar normalmente ignoravam a ideia de que deveriam perpetuar sua linhagem dourada. Deixavam essa preocupação para seus demais irmãos que não se tornaram donos de uma armadura. Lara nunca a confidenciou se o cavaleiro decidira participar dos ritos por estar interessado nela, ou se estava empenhado em ter um descendente:
- Você é a amazona que irá a Atenas, não é? Marin?
- Sim. - A amazona estranhou como ele adivinhou facilmente seu nome. Supostamente ele não deveria saber suas características físicas. Desapontada com a possibilidade de ser a última das convocadas a comparecer, perguntou – Todas já foram?
Dohko deixou de se apoiar na coluna e deu um passo em sua direção:
- Não. Você é a primeira. Reconheci seu tom de voz da reunião. Mesmo com a máscara, sua voz é diferente das outras meninas. Talvez seja por ter recebido o toque de Artêmis. Ou porque Lara me falou sobre você.
Sim, claro que ela falou. Lara a conhecia muito bem, foi a amazona que a acompanhou em sua primeira aventura fora da reclusão que viviam. E ela nunca demonstrou preocupação em seguir as regras severas de Mayura contra forasteiros. Admirava como sempre tratava os seguidores de outros deuses igualmente:
- Ela falou... das minhas habilidades?
- Sim e que posso confiar que você terá paciência com Aiolia...
Marin sorriu, curiosa com o nome e a declaração. Então o homem que deveria proteger se chamava Aiolia? Dohko respirou fundo e seus olhos perderam o calor de outrora:
- Nós não sabemos as informações que chegaram a Atenas, mas provavelmente ele não sabe de nada. Os principais servos da família estavam com Ilías e Aiolos em Delos, imaginamos que nenhum mensageiro foi enviado antes que o caos tomasse conta do lugar.
- Imagino que eles deveriam comunicar os demais Cavaleiros de Ouro – Marin disse, tentando entender aquele quebra-cabeça. – Se vocês não receberam nada, dificilmente alguma mensagem chegou aos demais familiares.
- Exato. Se os atenienses estão planejando algo, não deixarão que comentários sobre isso chegue até Aiolia. – Dohko estudou seus olhos e continuou a falar seriamente – Ele é o mais novo da família, amazona. Seus irmãos, Ilías e Aiolos, assumiram as armaduras de Leão e de Sagitário. Sisifos assumiu a proteção do Templo de Apolo em Delfos. Aiolia ficou responsável pelo contato com Atenas. Ele foi treinado pelos três irmãos para ser um cavaleiro, mas a principal função dele sempre foi a politicagem entre os fiéis dos deuses e os governantes da cidade. E até nisso ele não tem muita experiência, ele é só um pouco mais velho que você. Quando fui à cidade, o vi provocando mais desavenças do que acalmando os ânimos. Ele é um guerreiro impaciente naquela posição, não sei como vai ser sua reação quando souber dessa revolta. E sobre a possível morte dos irmãos.
- É melhor eu não contar a ele o que aconteceu? – Independente de conhecer ou não aquele rapaz, Marin imaginou o quão delicado seria lidar com um luto em um momento como esse.
- Se ele não souber por outra pessoa, você vai precisar falar aos poucos... de um jeito que não o faça colocar fogo em Atenas imediatamente. Há outros fiéis na cidade, Sisifos também corre um grande risco em Delfos, você precisa lembrá-lo disso, lembrar que sua reação não pode ser a de um guerreiro, tem que ser a de um herdeiro que ainda tem terras para governar. Ele precisa ser estratégico. Vocês terão que ser muito cautelosos para sair da cidade.
O plano parecia simples. Assim que chegasse na cidade, ela começaria a vigiá-lo e, no processo, descobrir o que diziam sobre ele nas sombras. Antes que a lua mudasse de fase já deveriam sair da cidade. Dohko lhe garantiu que enviaria alguns guerreiros para auxiliá-los caso alguma revolta se manifestasse antes de ele voltar das ilhas.
A grande dificuldade de toda a situação era a ausência de cavaleiros na região, as cidades estavam em paz e a maioria dos guerreiros sagrados se afastaram dos lugares que passaram a ignorar sua fé. Muitos foram viver com os lemurianos ou colocar seus serviços a disposição das ilhas que mantinham seus rituais e hábitos voltados aos deuses. Marin quis perguntar a Dohko sobre as crianças que os Cavaleiros de Ouro protegiam, se uma delas realmente era a deusa da Justiça, não deveriam usá-la nessa situação? Mayura quis lhe contar detalhes sobre isso, imaginou que não teria muito sucesso com o Cavaleiro de Ouro também. Assim, seguiu o caminho para Atenas.
Chegou pouco depois do amanhecer. A cidade já pulsava com seus habitantes ocupados em suas atividades e Marin não tardou a encontrar o local que serviria de hospedagem pelos próximos dias. Era uma pequena casa próxima ao Templo de Apolo, Mayura mantinha algumas amazonas idosas nas cidades cuidando de postos secretos como esse. A senhora que atendeu a porta a reconheceu como uma seguidora de Artêmis e permitiu que entrasse imediatamente. Não fez nenhuma pergunta sobre sua missão ou sobre seu nome. Discreta, aceitou o pergaminho que Mayura lhe confiara e, antes mesmo de lê-lo, lhe mostrou o quarto que ficaria. Só então perguntou como podia ajudá-la:
- Como está a movimentação nos templos ultimamente? – Marin perguntou e o cansaço em sua própria voz a assustou. Se dormisse agora, acordaria só no dia seguinte e não tinham esse luxo.
A senhora exibiu um olhar astuto:
- São muito visitados pelos forasteiros, os servos costumam visitar com mais constância do que seus senhores. Mas o Templo de Atena ainda é muito visitado pelos cidadãos satisfeitos com a paz da última década. - Disse a observando sentar na cama e tirar as sandálias imundas do longo caminho que percorreu. Pegou no chão o calçado danificado. – É sobre Atena, não é? Sua vinda? Há muitos rumores que os Cavaleiros de Ouro estão protegendo a criança prometida pelos Oráculos.
Marin sorriu misteriosa. Esticou o corpo e se levantou:
- E o que os cidadãos pensam sobre isso?
- A maioria desdenha dos rumores, algumas famílias acham que as ilhas estão se aproveitando dessa história para atrair mais comerciantes. Ou que é alguma conspiração de Delfos, ou dos Espartanos.
A guerreira assentiu com a cabeça e respirou fundo olhando para sua túnica:
- Acha que consigo me passar por sua sobrinha distante com essas vestes? Senhora...
- Leto, é assim que eles me conhecem. – Marin sorriu, no dia anterior estava falando sobre a deusa de mesmo nome e agora essa seria sua anciã. – Sim, a túnica foi bem escolhida. Você será ignorada se passear por aí com uma lista infindável de ervas para cura. - Ela fez Marin se sentar novamente e começou a puxar seus fios tingidos para fazer um penteado típico das servas do local – Hum, não é com as vestes que você deve se preocupar, menina. Esses seus olhos de águia serão seu maior problema aqui. Lembre-se que a opinião feminina não existe para esses cidadãos. Contenha-se.
Marin sentiu pesar ao se lembrar do quão difícil isso seria para Shaina. Provavelmente a garota já estava por aí procurando informações e ela deveria apressar-se para fazer o mesmo:
- Serei sua humilde sobrinha, Marin, não se preocupe. Vou procurar na cidade tudo o que você precisa para suas curas. – Disse e aguardou a anciã terminar o penteado para ir se limpar antes de sair.
Precisou proteger o rosto quando voltou a encarar as ruas atenienses. Seus olhos ardiam de cansaço com a claridade do dia quente. Começou a explorar os arredores do próprio Templo de Apolo e deixou-se levar pelos cheiros e cores do comércio próximo a sua entrada. Não observou nada de suspeito nas conversas que ouvira, nenhuma menção ao que estava acontecendo nas outras vilas ou muito menos sua insatisfação com quem frequentava o templo mais próximo. Contudo, seu instinto disparou quando percebeu alguns grupos de servos observarem atentamente a movimentação logo à frente do mercado principal. Seguiu seus olhares e percebeu a figura altiva saindo do Templo de Apolo.
O cabelo claro brilhava com o Sol, a pele bronzeada tinha um tom único que destacava a cor de seus olhos. Não conseguia distinguir seus traços tão bem naquela distância, mas tinha certeza de que os olhos eram verdes. Suas vestes não escondiam os músculos bem delineados e sua postura era a de alguém pronto para uma batalha iminente. A cada novo passo heril na escadaria, Marin tinha mais e mais certeza que avistava Aiolia, o pupilo de Leão.
* Cavaleiros do elemento Ar: Cavaleiros de Gêmeos, Libra e Aquário.
