Quartier de La Sorbonne, Paris, França. 2018.
POV Milo
- Milo. Milo. Acorda.
Alguém balançava o ombro de Milo levemente. Milo não queria, não gostava disso. Queria seu conforto, da sua cama.
- Milo, a gente precisa acordar logo, vamos.
Milo se deixou levar pelo sono de novo. Gostava muito de dormir. Mas não conseguiu por muito tempo, pois precisava abrir os olhos. E quando abriu, viu que estava em seus cobertores brancos e confortáveis, e a luz do sol saía pelas cortinas. Ele sorriu enquanto se espreguiçava na cama, preguiçoso. Levantou-se e foi ao minúsculo banheiro, escovar os dentes e fazer uma rápida ablução. Vestiu o que ele considerava ser sua roupa favorita: uma camisa vermelha simples, calça preta e sua velha, mas muito amada jaqueta de couro e foi para a cozinha.
Lá estava ele, preparando um café com a prensa francesa, como um típico francês que ele era, ao invés de jogar o pó de café na água quente e misturá-lo, como Milo faria, por ser grego que gosta de cafés gregos.
Camus.
Ele nunca tinha palavras para descrever a beleza de Camus, então ele sempre era o mais descritivo possível, pois queria que todos pudessem imaginar o quão bonito ele era. Mas nem a imaginação mais fértil seria capaz de conceber a beleza dele.
Camus tinha longos cabelos azuis que iam até a cintura, era alto e forte. Suas mãos eram firmes, mas ainda mantinham uma certa delicadeza e suavidade. Camus também sempre tinha o semblante sério. Quase sempre as suas sobrancelhas azuis estavam enrugadas, com as pontas quase encostando uma outra, demonstrando seriedade. Do meio para o fim, a sobrancelha se bifurcava levemente, o que tornava seu rosto diferente, exótico. Ele tinha uma franja um pouco bagunçada, o que Milo achava adorável, pois lhe dava um rosto muito jovem. Seus olhos eram azuis como o mar, e ele conseguia enxergar ali todos os sentimentos que Camus não gostava de demonstrar. Tinha dentes brancos e retos, lábios grossos, pele de seda. Milo brincava e dizia que ele parecia uma criança birrenta quando ficava sério (ou mais sério do que já era) e que deixava Camus mais sério e bravo ainda. E mesmo carrancudo, ele continuava lindo.
Milo o abraçou por trás, bem forte, depositando um beijo do lado do seu pescoço.
- É um milacre que você tenha acordado hoje sem eu precisar implorar.
- O que um carrancudo como você não peça gritando que eu não faça sorrindo?
Camus ficou de frente para ele e lhe deu um selinho de bom dia. Milo pegou uma de suas mechas de cabelo e colocou atrás da orelha enquanto o olhava com ternura. Ele nunca duvidava do amor de Camus, pois, naqueles raros momentos em que eles estavam compartilhando suas intimidades, Camus também olhava com ternura para ele de volta. E ele se sentia transbordando do mais puro amor que alguém poderia ter.
- Vamos tomar um petit-déjeuner ao invés de ficar um olhando para o outro.
Camus, assim como os outros franceses, não dava tanta atenção para o café. O café da manhã era literalmente um pequeno almoço, e os franceses se importavam muito com o almoço. Milo o observava tomando um simples café puro na mesa, enquanto ele devorava cereais, frutas, iogurtes. E hoje, ele tinha motivos para acordar cedo, tomar um bom café e admirar Camus.
Eles estavam comemorando um ano de namoro.
Milo era somente um intercambista grego, que ainda estava na escola, quando veio para Paris passar algumas semanas para melhorar o francês. Se encantou tanto com o local que decidiu que um dia moraria ali, não importasse o motivo. E logo arranjou um, quando decidiu estudar na Sorbonne Université, para fazer medicina. O processo seletivo não foi fácil, mas lá estava ele, com seus 20 anos, cursando o curso que queria na cidade que amava.
Ele só tinha um problema, que era o fato de que ele não tinha um teto.
Ele recebia uma bolsa boa da faculdade, uma ajudinha dos pais e conseguiu um trabalho como garçom num restaurante aos fins de semana. Dava para viver, mas em Paris os aluguéis eram exorbitantes. Ele até pensou em morar nas cidades ao redor de Paris, que eram mais baratas, mas ele queria tanto morar naquela cidade. Algo lhe dizia que ali era seu lugar.
Até que, um dia, olhando suas redes sociais, descobriu que um calouro, com a mesma idade que a dele e que era calouro de filosofia na mesma universidade que a dele, estava oferecendo uma vaga no apartamento dele, que ele tinha conseguido alugar, mas que precisava de alguém para ajudar a pagar. Pelo anúncio, o calouro parecia seco e chato (não tolero bagunças, muito barulho ou confusão) mas o preço estava muito bom para passar desapercebido.
Milo, apesar do jeito meio bagunçado, foi aprovado por Camus para morar com ele. Ou talvez, ele tenha sido o único a aceitar se sujeitar a viver daquela forma, pois o apartamento só tinha um quarto, uma cozinha e um banheiro. O lugar era um verdadeiro cativeiro. Lavanderia? Tem as comunitárias. Sala? Desnecessário. Privacidade? Coisa de gente velha. Mas o local tinha uma pequena varanda muito bonitinha, o prédio parecia aqueles prédios românticos, charmosos e históricos que só existem em Paris e Camus era muito caprichoso e limpo com a casa. Além disso, ficava muito perto da universidade.
Camus também tinha acabado de se mudar e tinha poucas coisas na casa. Tinha uma geladeira e fogão usado, uma mesinha para tomar café e para os estudos e as camas de solteiro eram, na verdade, colchões de ar que ficavam no chão. Não tinham guarda-roupa, não tinham armários, nada. Mas tinham um ao outro e Milo estava feliz.
Demorou alguns meses para eles se ajustarem. Camus não seguia o padrão das pessoas que cursam ciências humanas. Ele era metódico, chato e exigente. Chegava em casa às 20h, todos os dias. Não ia para as festas da faculdade, não frequentava bares, não usava substâncias ilícitas, não fumava e raramente apreciava alguns vinhos ou vodkas. Ele era uma pessoa tranquila cujo passatempo favorito era ler, ir ao cinema ou ao café.
Já Milo... Bom, ele queria apreciar a vida de universitário. Gostava de ir para festas, bares e outros lugares. Já colocou substâncias lícitas e ilícitas em sua boca, muitas com procedência duvidosa. Mas ele era organizado e sempre foi muito estudioso e metódico com a faculdade, nunca relaxando, um modelo de estudante. Mas vá, ele era filho de Deus também.
Camus tinha tudo para expulsá-lo e encontrar alguém mais tranquilo, mas não o fez. E Milo tinha tudo para pedir para sair do apartamento e encontrar um espaço maior e com alguém do seu perfil, mas não o fez. Muito pelo contrário, os dois foram se encantando um pelo outro e a história mais clichê aconteceu: na cidade mais romântica do mundo, os opostos se atraíram. E não se separaram mais. Agora estavam ali, comemorando um ano de namoro.
- Vamos definir o roteiro? – perguntou Camus, o tirando de seus devaneios.
- Com "vamos definir o roteiro" você quer dizer "já planejei tudo dias atrás e não podemos prejudicar o nosso percurso – disse Milo, rindo.
- Eu só iria fazer sugestões! – exclamou Camus.
- Eu te conheço e não é de hoje Camus. Você já planejou tudo e se caso eu queira mudar, você vai ficar bravo comigo pois eu não "tinha dito antes".
- E qual é a sua sugestão?
- Não sei..., mas a última parada tem que ser a Torre Eiffel. Nós dois, juntos, apreciando a noite.
- Milo, isso é clichê.
- Camye, me deixa viver meu amor de adolescente. Uma vez na vida!
Camus riu e perguntou:
- Mas e antes? Eu iria sugerir passar o resto da manhã no Jardin du Luxembourg (1), que fica perto.
- Ótimo! Aí de tarde a gente procuraria um cinema para assistir algum filme cult que você gosta. Aí eu aproveito e tiro uma soneca.
Camus bateu nele, rindo.
- Tá bom, mas não assistirei seus enlatados americanos.
- E por fim?
- Por fim, procuramos um restaurante para fazer um jantar romântico. Depois iremos para a Torre Eiffel.
- E depois para alguma balada gay?
- Depois É CASA, Milo!
Os dois riram.
- Tudo bem Camye, a gente tem trabalhos da faculdade para fazer.
- Oui.
- Mas você poderia aceitar a minha oferta.
- Va te faire foutre (2).
Os dois pegaram suas bicicletas e saíram. Milo nunca cansava de Paris, apesar de ser grego. Ele nasceu na Ilha de Milos, na Grécia e seus pais tinham uma pousada e uma lojinha de lembranças para turistas. Ganhavam razoavelmente bem com o turismo e eram felizes. E sim, eles homenagearam Milo por conta da ilha. A família morava ali há muito tempo, então ele sempre estava cercado de tios, primos e dos familiares. E ele também amava o local. Mas, por mais que amasse a região, não queria aceitar o destino que lhe seria imposto. O pai queria que ele herdasse a pousada e a lojinha, e a mãe queria que ele se casasse com uma mulher e tivesse muitos filhos, coisa que ela gostaria muito de ter, mas não pode devido a dificuldade em engravidar.
Milo não podia dar as duas coisas para os pais. Ele não podia se casar com uma mulher pois era gay. E isso os pais aceitaram bem, tiveram a mente aberta. O problema era que Milo não queria herdar a lojinha e nem a pousada, ele queria ir para Paris, cursar medicina. Seus pais ficaram desconsolados em ver seu filhote saindo do ninho, mas Milo queria ver a vida e, principalmente, queria viver Paris. Algo lhe dizia que tinha alguma coisa especial em Paris.
E pedalando lado a lado de Camus, vendo seus longos cabelos voando ao vento, Milo percebeu que estava certo, que valeu a pena seguir os próprios instintos.
Chegaram o jardim e foram direto para o local favorito deles: as árvores perto da Palácio de Luxemburgo. Ali tinham algumas pistas com árvores podadas, formando pequenas ruas paralelas. No intervalo entre uma rua e outra, havia um gramado, onde as pessoas gostavam de ficar sentadas, tomando sol, lendo debaixo das árvores ou rindo com o seu grupo de amigos.
- Foi aqui, mon amour, lembra? – disse Camus, enquanto andava de mãos dadas com ele.
Sim, foi bem ali. O pedido de namoro deles. Diferentemente dos filmes, não teve alianças ou flores. Mas não deixou de ser especial.
Milo e Camus já tinham se beijado e já tinham até transado, quando, num dos raros dias de rebeldia, Camus tinha largado seus livros e foram num pub agitado. Lá, depois de algumas doses e muita troca de olhares, o clima tinha esquentado e depois, quando voltaram para casa, transaram (e transaram muito, diga-se de passagem). Dias depois, havia muito clima e muito romance entre os dois no ar, mas ainda estavam na indecisão sobre se namorariam sério ou não. E foi ali que, enquanto Milo estava com a cabeça em seu colo, olhando para o céu, que Camus disse, enquanto fazia carinho em seus cabelos:
- Eu acredito que deveríamos namorar, Milo.
Ele disse aquilo como se fosse uma conclusão de uma teoria sua, testada e validada pelo método. Após muita análise, Camus chegou à resposta mais lógica para os dois: deveriam namorar. Milo se lembrava de ter levantado a cabeça e ter feito o sorriso mais largo de toda a sua vida. Camus também sorria.
- É, devíamos namorar – disse Milo. Uma conclusão lógica e racional, embasada pelo método científico. Depois de muitas evidências, as hipóteses se consolidaram como teorias que confirmavam a realidade. E ali estavam de novo. Milo deitado no colo de Camus, Camus fazendo carinho no cabelo de Milo. De vez em quando ele abaixava e dava beijos em Milo. Milo, de vez enquanto, tirava fotos dos dois no celular, pegando Camus de surpresa, que nunca ficava feio nas fotos. E assim passaram a manhã, deitados no gramado, apreciando um ao outro.
À tarde, foram para o cinema. Depois de muita insistência por parte de Camus, foram ao Espace Saint-Michel, um cinema de art house (3) muito conhecido na França. E dessa vez, Milo não dormiu durante o filme escolhido por Camus, mas não pode ficar de beijinhos com ele como dois namoradinhos adolescentes, pois Camus gostava de prestar atenção nos filmes que assistia.
No fim da tarde, deixaram suas bicicletas em casa e foram para o metrô, e Milo pode escolher o qual restaurante eles comeriam, e eles decidiram que iriam ao Le Kanon Pub (4), que embora tivesse uma atmosfera de esportes e bem... heterossexual, lá tinha um bom cardápio. Assim, os dois atacaram hamburgueres e fritas, e tomaram alguns copos de chopp.
- Camye, ainda não fomos a Torre Eiffel!
-Mi, a gente vai depois.
- Não Camye, tem que ser hoje, hoje é o nosso dia.
- A gente já gastou bastante.
- A gente economizou só para que hoje fosse um dia especial!
E lá vão eles, pegarem o metrô mais uma vez para ver a Torre Eiffel de noite. Não antes de passar no mercado e comprar alguma bebida barata para dividirem.
Sentados no Campo de Marte, admirando a beleza da Torre Eiffel cheia de luzes, dividindo a bebida, Camus, que já estava mais relaxado, encostou a sua cabeça no ombro de Milo. Milo sentia seu cheiro doce e delicioso, enquanto admirava a noite parisiense. Os dois beijaram, sentindo o hálito quente e com um leve cheiro de álcool um do outro. Se Milo fosse um dos deuses gregos que a Grécia antiga tanto cultuou, ele pararia o tempo naquele instante, e beijaria Camus pelo resto da vida.
Eram só dois jovens apaixonados, levemente embriagados e felizes por estarem na cidade mais romântica do mundo vivendo seu romance.
- Feliz aniversário de namoro Camye.
- Joyeux anniversaire de rencontre, Mi. (5)
(1) Jardim de Luxemburgo é um parque que fica em Paris. O local abriga o palácio de Luxemburgo e fica pertinho de onde nosso casal mora/estuda/trabalha.
(2) Vá se foder, em francês.
(3) Espace Saint-Michel é um cinema famoso em Paris, conhecido por apresentar cinema de arte (ou art house) que são filmes mais independentes, que vão pra festival etc. Lá também ficou conhecido por ter um incêndio criminoso em 1988, ao exibir A Última Tentação de Cristo, do Scorsese.
(4) E VOCÊS ACREDITAM QUE O BAR EXISTE? O Le Kanon Pub é real sim, e é tipo um pub que as pessoas se reúnem para assistir jogos (como de futebol), me lembrou muito os butecos com cerveja artesanal que tem em São Paulo kkkk e os preços são razoáveis pela média salarial francesa, então imagino que para Milo e Camus seria ok ir num lugar desses (tudo bem que ia ter homem gritando com os jogadores na TV mas eles não se importam kkkk). E bom, eu não podia perder a referência né.
(5) Feliz aniversário de namoro, Mi.
