Notas das autoras:
Esse capítulo é dedicado ao Mu Shaka Day, e possui uma capa linda no twitter Rosenroty1 (ou no nosso grupo do face: fics trio ternura / ou / Mushakismo - Eu shippo mesmo )
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Mu estava feliz.
Sim, com toda a certeza essa era a palavra que melhor o definia determinado exato momento.
Totalmente nu e de olhos fechados, ele deixava que as águas cristalinas da clareira da Glicínia embalsamar seu corpo, flutuando sobre elas e desfrutando de uma sensação inigualável de paz e prazer quase hedonista que certamente jamais experimentara antes, e da qual, com ainda maior convicção , nunca se esqueceria. Emoldurando seu corpo lânguido de massa quase nula nas águas, os longos cabelos cor de lavanda, costumeiramente fadados à prisão do lenço que os salvaguardavam dos olhares curiosos, agora bailavam livres feito reluzentes fios de seda sob um sol tão brilhante que parecia transmutar em diamante tudo o que tocava local restrito de beleza selvagem intocada pelas mãos corrosivas do homem.
Acima dele o céu incrivelmente azul de Sei Samsara vez ou outra o levava a travar uma batalha relâmpago com astro rei na tentativa de abrir os olhos para admira-lo; evidente que a grande estrela de fogo no céu sempre vencia, mas ele de modo algum se punha como derrotado, pois que ao fecha-los novamente o azul extraordinário daquele céu desenhava-se em sua memória na lembrança de olhos de idêntica majestade, e nessas horas ele sorria satisfeito.
Não estava nem um pouco acostumado com todo aquele calor e luminosidade. Seu corpo inteiro era exposto a tanta luz, visto que sua vida resumia-se às bibliotecas, oficinas alquímicas e laboratórios erguidos em escuras masmorras - muitas fórmulas, em especial aquelas tatuadas em sua pele exigiam tais demandas - mas naquele instante ele pouco se importava com tal detalhe, porque se a condição para viver uma paixão arrebatadora era estar só sob o sol, assim então ele faria; viver o presente e tudo o que ele lhe dava sem pensar em nada mais, satisfação de satisfação, como se ele e aquele cenário utópico fosse o centro do universo.
Embalado pelas ondas calmas e serenas do lago, tão relaxado que até parecia em transe, Mu tinha agora os pensamentos em branco, mas eis que de umas repente mãos delicadas deslizaram tenazes por seus quadris debaixo d´águaendo abruptamente aquela letargia prazenteira, então comoida se despertado de um sonho ele suspirou profundamente sentindo o corpo todo estremecer até culminar numa gostosa coceirinha no peito, um sentimento que por fim o fez abrir um sorriso tal criança que tem um desejo atendido.
Ainda de olhos fechados, Mu deixava seu corpo afundar na água à medida em que, por cima, o outro vinha encaixar-se nele até que ambos estivessem apenas com os ombros e as cabeças na superfície espelhada. Nessa hora então ele abriu os olhos e deu de cara com todo o resplendor do céu azul de Sei Samsara bem ali diante de si, aprisionado naquelas duas esferas perfeitas emolduradas por cílios longos de um dourado magnífico.
Seria efeito daquele cenário fantástico ou Shakyan Pavo lhe parecia ainda mais atraente e irresistível do que naturalmente era? Refletiu o alquimista enquanto vislumbrava o homem à sua frente cujo corpo colado ao seu parecia ter o calor inextinguível de um vulcão, mesmo debaixo d'água. Dos cabelos loiros molhados sob sol, um perfume doce de lótus exalava em ondas inebriantes que atingiam seus instintos como golpes certeiros, incendiando sua libido. Feito chama ardente a língua dele passeava em seu pescoço molhado, sorvendo as gotículas de água misturada ao seu suor e o conduzindo a um estado de voluptuosidade indescritível onde tudo o que podia fazer era nada além de deixar-se levar.
Há mais de uma semana que os encontros furtivos com o mercador se tornaram uma rotina quase que sagrada para o alquimista. Encontravam-se sempre após o sol atingir o pico mais alto no céu e despediam-se quando este também dava adeus entregando seu posto à lua e suas crianças tilintantes que enfeitavam o firmamento. E bastou apenas aquele punhado de dias para que Mu já se percebesse completamente viciado nos toques gentis daquelas mãos ousadas, as quais exploravam cada pedacinho de seu corpo com uma intimidade tão surpreendente — a considerar alguém que tinha conhecido a tão pouco tempo — quanto despudorada.
Quando aquelas mãos apertaram-lhe a cintura e o trouxeram para tão junto do corpo que novamente rebentava em libido, ao ponto de não sobrar nenhum espaço que os separasse, Mu deixou escapar um gemido languido antes de colar seus lábios molhados aos de Shaka, enquanto leve e inanimado como uma folha deixava-se ser conduzido por ele entre as águas de volta à margem.
— Eu sei que disse que ia... resistir... — sussurrou Shakyan Pavo mordiscando os lábios inchados de Mu — que ia deixa-lo descansar... mas...
O alquimista sorriu.
— Que bom que sua determinação não é tão forte quanto diz — brincou Mu roçando as pernas nas dele debaixo d'água — não era mesmo para resistir.
O mercador devolveu a ele um sorriso carregado de malícia; era tudo o que queria e precisa ouvir, então sem demora voltou a beija-lo com irrefreável volúpia, enquanto seguia nadando calmamente para a margem. No percurso, como dedicado e insaciável amante que era, incitava o corpo dele com carícias diversas e o espírito com palavras galanteadoras, e assim que pisou em terra firme, aos beijos o conduziu até a sombra da Glicínia onde haviam esticado sobre a vegetação uma manta vermelha com algumas almofadas, então uma vez mais saciou seu desejo indomável por ele.
Aquele era, sem dúvida, o último lugar dos Sete Reinos onde Shakyan Pavo imaginou um dia viver seus delírios de paixão.
O mercador ficou pálido quando deu-se conta da surpresa que lhe preparara Hamal Mumiah pouco mais cedo naquele dia. Após uma semana inteira desbravando diferentes instalações da cidade de Sei Samsara para seus encontros vespertinos, praias desertas, ruinas abandonadas, estalagens, até mesmo a sua tenda no Mercado Dourado e o quarto da pousada onde Mu estava hospedado, o mercador surpreendeu-se quando o amante lhe revelou o desejo de fazer-lhe uma surpresa e leva-lo a um local diferente, especial. Instigado pela proposta, até porque não era de sua natureza fugir de qualquer aventura, Pavo aceitou na mesma hora, porém assim que chegaram à trilha na mata fechada aos fundos da pousada já imaginou onde Mu o levaria; justamente na clareira da Glicínia.
E agora lá estava ele, naquele restrito pedaço de mundo onde jamais imaginou que colocaria os pés à luz do dia, com o coração a transbordar de paixão e o corpo a arder em torrentes de volúpia indômita. Com a face abrasada e os olhos escurecidos de desejo ele divisava em êxtase Mu desmanchar-se de prazer debaixo de si enquanto o tomava pela terceira vez naquele dia com sua habitual ferocidade e incompreensível urgência, já que era somente quando estava entre as pernas do alquimista que conseguia esquecer o dilema tormentoso que há dias vinha envenenando-lhe a alma.
Mu por sua vez, embora não escondesse nem de si mesmo o quanto estava envolvido por aquele homem tão enigmático quando irresistível, não deixou para trás o real motivo que o trouxera até Khan e Sei Samsara; sua missão não fora negligenciada pela paixão pelo mercador, e ainda que seu tempo dedicado às buscas pela estrela tivesse sido consideravelmente reduzido, já que agora eram de Pavo as horas mais nobres de seus dias, ele manteve-se firme na jornada e surpreendentemente ganhou um fiel e dedicado ajudante. Shakyan Pavo o acompanhava na maioria de suas incursões à procura da relíquia que despencou do céu, muitas vezes até sendo seu guia quando as pistas apontavam para algum vilarejo nas imediações de Sei Samsara ou locais de difícil acesso; e não poderia existir melhor guia quando o assunto era invadir zonas proibidas da cidade.
No entanto, sempre quando eles voltavam de mãos vazias e a frustração de Mu era dolorosamente perceptível, em seu íntimo Shaka comemorava, fazendo um esforço tremendo para jamais deixar transparecer sua alegria, ainda que tivesse plena consciência de estar errado em sentir-se feliz diante do fracasso do outro. A questão era que havia uma voz dentro de si que desejava que Mu não cumprisse sua missão, e contra essa voz ele nada podia fazer, pois que jamais seria capaz de cala-la; era a voz de seu instinto. A mesma que o fazia perder incontáveis minutos olhando para as duas folhas de papel onde Mu o retratara, como se para tomar consciência de suas atitudes contraditórias e deixar de tentar confrontar a si mesmo.
A verdade era que Shakyan Pavo não queria que Mu fosse embora de Sei Samsara, pois que a simples ideia de nunca mais ver o alquimista lhe causava um medo tão terrível que sentia como se perdesse todo o calor do sangue e a vitalidade da alma. Por outro lado, sua parte racional, a que fazia de si um homem, sem tantos princípios nobres a serem destacados, mas ainda assim um homem, o condenava diariamente por alegrar-se com as frustrações de Mu, e então ele sentia-se mesquinho e egoísta, porque talvez... somente talvez, ele soubesse o paradeiro da estrela que o amante tanto procurava.
Talvez ele até pudesse dizer a Mu que ela estava mais perto do que ele imaginava. Mas somente talvez.
Não faz muito tempo ele se recordava vagamente, em uma noite de céu limpo e claro quando olhava para o firmamento, hipnotizado pelos tantos pontinhos brilhantes salpicados no manto de veludo negro, ele viu quando um deles despencou lá de cima. Como uma bola de fogo com uma longa cauda de cometa ele cruzou o negrume do céu e nem quando tocou o solo sua luz fantástica se apagou, ao contrário, era ainda tão intensa e extraordinária que não se assemelhava a nenhuma outra que já tinha visto nesse mundo.
Seria a tal estrela?
Óbvio que sim, mas a questão que atormentava Pavo não era essa, mas se teria suficiente coragem e hombridade para dizer a Mu onde ela estava.
Quase uma hora se passou desde que eles saíram do lago para saciar os desejos da carne na sombra da Glicínia.
Deitado ao lado de Pavo, com a cabeça confortavelmente apoiada em seu peito que com a respiração já mais branda agora subia e descia lentamente, Mu comia tâmaras secas enquanto com os olhos voltados para cima perscrutava pensativo os galhos da Glicínia. Completamente alheio aos conflitos que afligiam o coração do mercador ele disse calmamente:
— Que estranho.
Pavo baixou o olhar e só então o percebeu procurando por algo entre os galhos da árvore.
— O que é estranho? — perguntou.
— Eu achei que ele ia estar aqui... Ele sempre está aqui.
— Ele quem? — Shaka perguntou distraído enquanto passava os dedos pelos cabelos lilases ainda úmidos espalhados em seu peito.
— O pavão — disse Mu.
— Pavão? Era para ter um pavão aqui? — perguntou achando graça, com um riso sutil.
Mu espreguiçou-se encaixando-se melhor nas curvas do corpo do mercador.
— Sim... essa árvore, essa clareira... enfim, tudo aqui é como se fosse a casa dele.
— Do tal pavão?
— É... Acho que ninho seria mais correto dizer, mas não sei se pavões fazem ninhos.
— Sim eles fazem, mas só quando acham um parceiro.
— Acho que ele não tem um parceiro, quer dizer, parceira... Sempre o vejo sozinho — disse o alquimista refletindo, depois soltou um suspiro abafado e emendou com um murmúrio: — Você gosta tanto de aves... Queria mostra-lo a você. Eu tinha certeza que íamos encontra-lo aqui.
— Hum — fez Shaka, e com uma espreguiçada virou-se para Mu e o abraçou carinhosamente o apertando firme contra seu corpo — vai ver ele foi atrás de alguma "pavoa" — brincou.
Mu riu divertido dando de cara com aquele par de olhos azuis incríveis que o desconcertava ao mesmo tempo em que o atraia como a luz atrai e encarcera as mariposas.
— Você nunca o viu?
Shaka deu de ombros.
— Posso ter visto. Já vi muitos pavões em Sei Samsara.
— Esse é diferente, é um pavão branco.
O mercador lançou para ele um olhar cheio de cautela e depois de uma pausa breve disse enquanto o distraia com beijos:
— Devo ter visto alguma vez, mas exatamente agora não me lembro...
De olhos fechados Mu suspirou longamente.
— Ele combina tanto com esse lugar... — murmurou deleitando-se com os carinhos que Pavo lhe fazia. — É como se um completasse o outro e ambos tivessem saído de um sonho... É tudo tão diferente das paisagens da minha terra...
— Ora, eu sempre ouvi histórias sobre o reino além das Muralhas de Cristal ser um dos mais belos dos Doze — disse Shaka.
— E de fato é — explicou Mu — Tão belíssimo e único como frio e monocromático. Nenhum pico rochoso ou parede de cristal têm as cores e a luz que vejo aqui. Na maior parte do ano o carpete de neve cobre tudo de branco, montanhas, campos, vales, rios, enquanto aqui há um prisma de cores que é um verdadeiro festival aos olhos. Eu vou sentir saudades daqui... da sensação que o calor causa na pele, do perfume agradável das flores, do som dos pássaros, de Sei Samsara, dessa clareira, do pavão...
O alquimista se calou reflexivo e um silêncio natural se fez entre eles.
Não era preciso, de fato, que ele verbalizasse o desfecho daquela frase; era óbvia demais a saudade que sentiria de Shaka e ele de si, e naquele ponto a sombra da partida de Mu, cada vez mais próxima, tornava-se impossível ignorar. Eles tinham consciência de que o que viviam era passageiro, de que logo teriam que se separar, pois que pertenciam a mundos deveras diferentes; mas ter consciência apenas não os preparava para o adeus.
Mu por exemplo, hoje sentia-se como o protagonista dos romances literários que lia quando adolescente, e tal qual os encontros inusitados narrados nestes, o seu com Shakyan Pavo não haveria de ser mera obra do acaso. Ao menos era isso que lhe dizia seu coração. Mas, assim como nos romances, teria também a sua história um fim melancólico? Afinal teria que partir. Ou o mesmo destino que arquitetou seu encontro também encontraria um meio de uni-los? Seriam felizes para sempre?
Muitas vezes ele se surpreendeu rindo de tais divagações. Era mesmo um bobo apaixonado.
Já Shaka não ria de si mesmo há dias, na verdade desde que dera-se conta de que encontrara o que sempre buscou em outros braços, outras bocas, outros corpos, outras almas... Sua busca enfim terminou, mas seu dilema tinha apenas começado.
Uma hora antes do sol se pôr eles juntaram tudo o que haviam levado até ali e deixaram a clareira.
A despedida naquele dia fora bem mais árdua que o usual porque Shakyan Pavo parecia aflito e com uma agonia inquietante no olhar, como se quisesse dizer algo a Mu, mas fosse vencido pela falta de coragem ou mesmo a sombra da dúvida. Ainda assim eles trocaram um beijo longo e intenso e mais uma vez a promessa de um reencontro no dia seguinte.
Horas mais tarde, já de volta à hospedaria, bem habituado à sua excêntrica rotina em Sei Samsara Mu fazia anotações em seu caderno de viagem quando recebeu a visita de seu ilustre companheiro noturno, que pousou da mesma forma espalhafatosa e barulhenta de sempre na soleira da sacada de seu quarto. O alquimista sorriu alegre ao vê-lo ali; seus dias naquela terra quente e árida não lhe davam o ensejo de sentir-se sozinho, já que o sol sempre lhe trazia Shakyan Pavo e a lua o pavão.
E assim como acostumara-se ao corpo forte e quente do mercador colado ao seu, também habituara-se aos beliscões e festinhas que o pavão lhe fazia quando ia aninhar-se a si no pé da cama para velar o seu sono até o despertar da aurora, já que sempre que acordava ele já tinha partido.
Como seria quando voltasse para casa e não mais tivesse aquelas duas presenças que tanto calor lhe traziam à alma?
Suspirando melancólico e pensativo Mu largou o caderno de anotações, se levantou e caminhou até a sacada para dar boas-vindas ao pavão:
— Boa noite, meu amigo emplumado — disse com a naturalidade de um velho amigo, enquanto acariciava tranquilamente o pescoço comprido e macio do bicho — você se atrasou hoje, hein? Já está tarde!
O pavão chacoalhou serelepe a cabeça.
— Eu cheguei até a pensar que não viria... já é quase meia-noite e você sempre vem se empoleirar aqui logo após o pôr do sol. O que houve?
Parecendo que havia entendido a pergunta com a clareza e nitidez daquela noite de lua cheia, o pavão de repente eriçou todas as penas de seu corpo robusto e sacolejou a cabeça com movimentos ainda mais frenéticos, então como se tentasse dizer algo, com o bico ele beliscou repetidas vezes a manga da camisa de Mu, dando nesta leves puxões, enquanto sua garganta produzia um ruído baixo e gutural, que soava como um chamado.
A princípio Mu estranhou aquele comportamento, até então inédito, do pavão, já que estava habituado ao canto horrível e aos gritos agudos em volume altíssimo, mas em se tratando de uma ave temperamental e hiperativa como aquela ele apenas riu achando graça.
— Ei... Está tentando me dizer algo? — ele brincou. — Um segredo, talvez! Oh! É isso! Está querendo me contar um segredo, por isso está fazendo esses sons estranhos em vez de gritar como sempre feito um doido, não é?
Nessa hora, os olhos escarlates do pavão se escureceram e ele bateu com o bico bem no meio da testa de Mu.
Um pipoco só, que fez um som oco de tuk.
Um croque certeiro.
Bem entre as duas tatuagens em forma de esferas acima dos olhos.
— AOW!
O alquimista deu um grito, mais pelo susto mesmo, já que não era a intenção do pavão machuca-lo; ele queria apenas que Mu o levasse a sério.
— Perdeu o juízo? Isso doeu! Por que você me atacou?
Agora o vendo sério, o pavão bateu as asas e pulou para o lado de fora, então no chão ele saltou três vezes no mesmo lugar sem abrir a cauda, repetindo o mesmo som rouco e baixo com a garganta que fazia antes.
Do alto da sacada Mu olhava para ele curioso.
— Ah, eu já sei o que você quer, mas hoje eu não vou com você até a clareira — disse ele debruçado no parapeito de madeira — já é muito tarde e...
De repente o pavão o interrompeu com um grito, ciscando as garras no chão de terra parecendo nervoso.
— O que foi?
Mais gritos e mais ciscadas no chão.
— Eu estive lá hoje o dia todo e você nem para aparecer — disse Mu ignorando completamente o fato de estar confessando seu desapontamento para uma ave fazendo-lhe birra, ainda que fosse ela o motivo de estar desapontado. — Eu levei uma pessoa lá hoje para conhecer você.
Nessa hora o pavão bateu o bico no chão três vezes e depois esticou o pescoço se pondo imóvel; parecia encarar o alquimista nos olhos.
— É, eu queria que vocês dois tivessem se conhecido porque tenho certeza que se dariam bem... Na verdade, vocês até se parecem, sabia? Ele também é assim exigente, barulhento, espalhafatoso, sem juízo, escandaloso... lindo... e ele gosta de aves — disse, ainda lamentando-se da frustração de não ter conseguido apresentar Shakyan ao seu mais novo e peculiar melhor amigo.
Sim, ele considerava o pavão seu melhor amigo; deviam ser os dias longe de casa que o punham tão carente.
Mu ainda não tinha terminado de falar quando o pavão subitamente inclinou a cabeça para o lado e olhou para o céu, especificamente para a lua.
Nessa hora então o bicho se pôs doido.
Ao seu modo todo desengonçado, tomado por uma urgência que se tornava evidente na velocidade de seu bater de asas, o pavão alçou voo de volta à sacada onde estava Mu. Mas ele não pousou no parapeito e sim deu um rasante sobre a cabeça do alquimista puxando com o bico a tira de couro que ele usava para prender os cabelos.
Com ela no bico ele voou até a entrada da trilha na mata que levava à clareira, então pousou ali, virou-se para a sacada e novamente saltou três vezes no mesmo lugar antes de finalmente embrenhar-se entre as árvores e desaparecer na escuridão.
O alquimista, espantado e curioso com aquele comportamento inédito, e achando que a ave enlouquecera de vez, não pensou duas vezes; seu faro nato para os mistérios lhe dizia para segui-lo, e assim ele o fez. Rapidamente vestiu um casaco, pulou da sacada e como fizera tantas vezes foi atrás do pavão.
Quando chegou à clareira Mu a percebeu bem mais iluminada do que o de costume. Pudera, era noite de lua cheia e o céu estava extraordinariamente limpo e tão claro que era possível ver a lua e o manto estrelado refletido com perfeição no lago. Era um cenário raro e tão lindo que Mu tinha certeza de que o guardaria em sua memória para o resto da vida, e se era para dar-lhe de presente tal lembrança tão bela que o pavão insistira tanto que fosse até lá então já teria valido a pena ter cedido às suas estripulias.
Sentindo seu coração bater lento e leve, Mu deixou que seus pés o conduzissem até a margem do lago, onde o pavão o esperava ciscando a água, então quando chegou bem perto dele e achou que tomaria de volta sua tira de couro para prender os cabelos, presa em seu bico, o danado do bicho alçou voo.
— Ei! — o alquimista gritou surpreso.
Com uma revoada parecendo estrategicamente ensaiada sobre o espelho d´água, o pavão em poucos segundos alcançou o centro do lago, a parte mais profunda, e então ali ele soltou a tira de couro antes de seguir voo e pousar do outro lado da margem.
Vendo aquilo, Mu ficou sem nada entender e bufou injuriado.
Afinal aquela ave maluca o atraiu até a clareira apenas para lhe fazer o desaforo de jogar sua tira de prender o cabelo no meio do lago?
Por um curto instante ele chegou a se irritar, decidido até a ignorar a travessura e voltar para a hospedaria, afinal era só um pedaço de couro, mas algo dentro de si, sua intuição, talvez, lhe dizia que não deveria ser mera traquinagem do pavão. Ele o conhecia já o suficiente para perceber que havia algo de novo em seu comportamento, um anseio irrefreável, uma agitação fora do comum.
Sério, Mu olhava para a ave, agora do outro lado da margem. Ela estava imóvel, parecia aguardando por algo, talvez um gesto ou movimento seu, então ali, sob a luz do luar, o alquimista correu os olhos pelo espelho d´água que refletia o céu, e após um instante, para seu completo espanto, um brilho frio surgiu do fundo do lago, exatamente onde a tira de couro fora lançada e agora boiava sem turvar a superfície imaculada.
Surpreendido Mu esfregou os olhos com as mãos na tentativa urgente de aguçar a visão e ter certeza de que não delirava, e quando voltou a olhar para aquele ponto a luz continuava lá; na verdade era mais um brilho, muito intenso, e que refletia a luz da lua cheia quando esta atingiu o ponto mais alto no céu.
Naquele instante seu coração falhou uma batida.
— Será possível que... — sussurrou ele atônito quando uma ideia tomou forma em sua mente.
E para tal ideia tomar o campo da constatação só havia um jeito.
Sem pensar duas vezes, e completamente afoito, o alquimista arrancou parte das roupas e mergulhou no lago; nadou o mais rápido que conseguiu até o centro e então no ponto exato onde via o brilho ele inspirou com força e submergiu, mergulhando de olhos abertos até o fundo. Logo ele alcançou a fonte de onde vinha toda aquela luz: era um objeto esférico, relativamente pequeno, e que pulsava como se estivesse vivo.
Quando o segurou nas mãos percebeu que emanava calor, não demasiadamente, mas o suficiente para ser perceptível mesmo debaixo d'água.
Já não lhe restava mais dúvida.
Era ela!
Sua tão procurada estrela cadente; uma anã branca.
Foi com incontrolável euforia que Mu voltou à superfície e imediatamente nadou apressado até a margem onde o pavão estava, então ali sentou-se ao lado dele e em êxtase passou a analisar a bela anã branca em suas mãos.
— POR TODOS OS ANTIGOS DEUSES! É INCRÍVEL!
Exclamou extasiado enquanto com os olhos vidrados acompanhava o balé hipnótico dos elementos que compunham aquele corpo celeste, os quais giravam numa velocidade alucinante e colidiam entre si produzindo milhares de micro fagulhas incandescentes.
Todo esse tempo a procurando e ela estava bem ali, tão perto...
Se não tivesse tão distraído vivendo uma paixão tórrida por um mercador charlatão e brincando todas as noites com um pavão barulhento e maluco ao em vez de dormir para apurar o raciocínio, talvez teria percebido que ela estava ali devido à quantidade de rochas celestes que haviam naquela clareira, nas margens do lago.
Ou talvez não devesse ser tão severo consigo mesmo e delegar à natureza os seus próprios caprichos.
Já menos eufórico e conseguindo raciocinar melhor, Mu se deu conta de que no momento em que apanhara a estrela do fundo do lago e nadara com ela para a margem sua luz se apagou, porém o brilho dos elementos dentro dela seguiu vivo. Astrônomo que era, e dos melhores, logo ele decifrou mais aquele enigma.
Assim como diversos fenômenos celestes, aquela pequena anã branca no fundo do lago só emitia luz quando alinhada à lua cheia, e devido ao movimento de rotação do planeta isso durava apenas alguns minutos. Ou seja, se ele não estivesse naquela clareira exatamente no instante em que a lua se alinhara à estrela, jamais teria visto seu brilho e a encontrado.
Ainda fascinado e exultante com a descoberta, o alquimista desviou os olhos brilhantes do corpo celeste em suas mãos e olhou para o pavão ao seu lado, então seu coração bateu forte e um sentimento grandioso de gratidão aqueceu-lhe o peito.
— É ela. A minha estrela! — disse ele com um sorriso pleno de alegria.
O pavão o observava imóvel e em silêncio.
— Se você não tivesse me trazido aqui, exatamente hoje e nesse momento, eu nunca a teria encontrado — disse Mu e em seguida ergueu o braço com a intenção de acariciar a cabeça da ave, mas esta teve uma reação inesperada.
Sem emitir nenhum som o pavão recuou alguns passos e batendo ligeiro as asas alçou voo em direção à Glicínia; pousou num dos galhos mais altos e lá ficou, olhando para baixo.
A fisionomia de Mu endureceu na mesma hora, e sem entender o que levara o bicho a fugir de si daquele jeito ele levantou-se da margem e correu até o pé da árvore.
— Ei, amigo! O que houve? — perguntou olhando para cima.
O pavão dobrou as pernas finas e pareceu sentar-se sobre elas no galho; de cabeça baixa e pescoço encolhido ele parecia agora amuado.
— Vamos, desça daí! — insistia Mu. — Você me deu um presente e tanto hoje, eu quero te agradecer. Vamos, desça!
Nada. O pavão permanecia olhando para ele, imóvel.
O alquimista insistiu por longos minutos. Fez gracinhas, tentou atraí-lo jogando pedrinhas no lago como faziam quando brincavam nas noites em que iam até ali apreciar o céu e a vista, tentou também chantageá-lo lhe dizendo que tinha comprado sementes selecionadas para dar-lhe de comer, e que estas estavam no quarto da hospedaria, portanto ele teria que voltar consigo para lá. Nada. Nada fizera o pavão descer da árvore, então esgotado pelas tentativas vãs, pelo cansaço e pelo sono Mu despediu-se dele lhe dizendo que jamais poderia retribuir o presente que ele lhe dera e voltou para hospedaria sozinho.
Apesar da alegria e euforia de sua descoberta, afinal finalmente sua longa jornada enfim dera os frutos que esperava, no fundo teve que admitir que estava um pouco chateado com o pavão; sim, queria dividir com ele aquela alegria, mas nada entendia de comportamento das aves e, sendo assim, não podia cobrar-se ou mesmo repreender o bicho. Certamente que ele deveria ter lá seus motivos de ave para agir daquela forma, e tão certo como o sol nasceria dali algumas horas ele o veria na noite seguinte bater as asas e cantar na sacada de seu quarto. Guardaria ansioso as sementes que comprara para dar ele amanhã.
Igualmente ansioso aguardaria o sol atingir o centro do céu para encontrar Shakyan Pavo e dividir com ele sua descoberta.
Há quilômetros dali, no coração de Sei Samsara, na taverna pior frequentada de toda a região, cuja fama do bom vinho não abrandava a da clientela mais corrupta da cidade, um homem de aparência repulsiva e modos ainda piores refestelava-se entre botijas de vinho e cuias fartas de costela de porco. Para cada uma que ele devorava deixando apenas os ossos, o qual jogava a um cachorro magro de sentinela ao pé de sua cadeira, lambia os dedos gordurosos ao final, tomava um gole farto da bebida, devolvia a botija ao seu lugar e então servia-se de outra repetindo no final o processo.
Não era sempre que Hagen Caolho podia desfrutar de um luxo como aquele; bom vinho e uma carne gordurosa. Na maioria dos dias ele tinha que se contentar com uma farinha seca de milho, água, pão e quando tinha sorte algum pedaço de carne com tantas pelancas e nervos que lhe quebravam os dentes. Mas aquele tinha sido um dia produtivo. Ele roubara três algibeiras fartas de moedas de turistas descuidados e mais um colar de ouro de uma dama. Este ele venderia no Mercado Dourado; estava precisando de botas novas, um chapéu novo e sua camisa tinha mais buracos do que aqueles que as lombrigas certamente faziam em suas tripas.
O bandoleiro já estava na terceira cuia de costelas quando outros dois homens de seu bando chegaram na taverna e caminharam apressados até a mesa onde estava. No caminho um deles, o que ostentava uma cabeleira e uma barba cinza como alumínio polido, ambas tão volumosas que pareciam se unir e se tornar uma coisa só, como uma juba de leão, fez um sinal para o taberneiro lhes trazer mais algumas botijas de vinho.
Enquanto os dois puxavam as cadeiras para se sentarem, Hagen levantou para eles o olho bom, aquele que ficava do lado oposto à cicatriz de estrela enrugada em sua testa, e os encarou um de cada vez.
— Vocês cretinos podem pagar pela merda do vinho? — perguntou rude.
Os dois bandoleiros olharam-se trocando um risinho cínico.
— Hoje não, mas a partir de amanhã a coisa vai mudar — disse o da juba cinza dando um cutucão no outro, que abriu um sorriso desdentado e amarelo.
Hagen Caolho jogou o osso limpo para o cachorro, lambeu os dedos engordurados e então inclinou-se sobre a mesa, aproximando-se mais deles.
— Vocês encontraram? — Ele perguntou num sussurro quase inaudível.
Os dois homens deram mais alguns risos que mais pareciam relinchos.
— Sim... está aqui — disse o desdentado apanhando uma algibeira grande que trazia pendurada em um dos ombros. Ele ia abri-la, mas Hagen Caolho foi mais rápido e a arrancou de sua mão.
— Tem certeza que é dele? — perguntou enquanto desamarrava apressado os laços de couro para abrir a bolsa.
— Absoluta, chefe! — respondeu o homem da juba cinza. — É exatamente igual à da pintura que o Conde tem naquela sala invocada lá dele cheia de troféus.
Quando ia abrir a bolsa, Hagen percebeu que o taberneiro se aproximava com as botijas de vinho, então esperou que ele as deixasse sobre a mesa e saísse dali; o que tinha ali dentro era valioso demais para deixar que outros olhos a cobiçasse.
Enquanto feito bestas feras seus comparsas despejavam o vinho em suas goelas secas, Hagen abriu a bolsa e finalmente olhou o conteúdo; seu olho bom nessa hora faiscou incendiado.
A constatação da descoberta e tudo o que ela significava fora tamanha que deixou o bandoleiro sem reação, até o momento em que um dos comparsas bateu a botija de vinho sobre a mesa e o despertou do transe.
— E então, chefe? Acredita na gente agora? — perguntou o desdentado enquanto limpava a boca com a manga suja da camisa.
— Onde conseguiram ela? — Hagen perguntou sem tirar os olhos do tesouro dentro da bolsa.
— O Caniço pegou lá no caminho que dá para a pousada dos viajantes — respondeu o homem da juba prateada.
Hagen Caolho pareceu pensar por um momento, então, sem que nenhum dos dois homens esperasse, ele esticou o braço e agarrou o da cabeleira farta pelo colarinho da camisa o puxando para perto de si e rosnando a poucos centímetros de seu nariz:
— Vocês idiotas sabem que isso é só a porra de uma prova sem valor nenhum, porque de nada vai adiantar levar isso ao Conde se a gente não viu a porra do...
O desdentado o interrompeu aflito:
— EU VI! — gritou ele — EU VI ELE, CHEFE, EU VI!
Hagen desviou o olhar e o encarou na mesma hora.
— Você o viu, Caniço?
O bandoleiro chacoalhou a cabeça freneticamente num gesto afirmativo.
— Se estiver mentindo, seu merda, eu juro que arranco sua língua e furo a merda dos seus olhos! — rosnou Hagen.
— Eu juro, chefe, eu vi ele... duas noites seguidas — disse o homem, que embora estivesse gaguejando um pouco tinha um olhar convicto e firme — na primeira vez achei que era um fantasma, porque era grande e... parecia uma fumaça branca... até me ajoelhei e pedi perdão pelos meus pecados, mas então ele pousou no telhado de uma mercearia, aquela lá do seu Noronha, sabe?
— Foda-se o velho caduco do Noronha, porra! — berrou Hagen nervoso. — Você tem certeza que era ele?
— Tenho... quer dizer... eu tive mais certeza na noite seguinte, quando vi ele de novo, dessa vez beirando as árvores lá nas bandas da pousada dos viajantes, perto da Feira da Lua. Eu tentei chegar perto dele, mas quando ele me viu ele se espantou e fugiu... e essa pena aí caiu do rabo dele — apontou para a bolsa sobre a mesa.
Hagen soltou o colarinho do homem da juba, que aprumou-se na cadeira e correu abrandar o nervosismo com mais uma golada de vinho.
— A gente não ia brincar com uma coisa séria dessa não. Depois, eu ouvi dizer que alguns viajantes deixaram a pousada de tanto que esse bicho grita de noite e não deixa ninguém dormir... — disse ele limpando a boca com as costas da mão — Se for mesmo ele, essa pode ser a nossa única chance de sair da merda.
— É. O Conde ofereceu uma bolada e tanto para quem levar o bicho para ele — falou Caniço empolgado.
Hagen Caolho respirou fundo e recostou-se nas costas na cadeira. Pensou por um momento não muito longo, então meteu a mão na cinta de couro e dela tirou um punhal afiado, o qual com um só golpe ele cravou com toda força na mesa, rasgando o couro da bolsa e também transpassando a pena da cauda do pavão branco que estava dentro dela.
- Juntem o bando - disse Hagen com um sorriso sádico no rosto medonho. - Amanhã nós vamos caçar um pavão!
