CAPÍTULO 5

A partir daqui, seguirei a linha temporal do Ômega. Gostei muito de terem dado um filho aos dois e acho Ryuho adorável, então fiquei imaginando como foi o início de tudo para os três.

Esse capítulo se passa treze anos antes do primeiro episódio do Ômega e doze anos após o capítulo anterior.

Música: Ashitaka and San

Artista: Joe Hisaishi

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Ela despertou, mas não abriu os olhos.

O ar ainda entrava fresco em suas narinas e a claridade não se insinuava forte em suas pálpebras, indicando que ainda estava cedo.

"Acho que acabou de amanhecer." Respirou fundo, mexendo um pouco o corpo sob os cobertores macios e sentindo novamente o movimento. "Parece que estamos animados hoje, hein?" Ela ainda não se acostumara totalmente a essas sensações, que tinham começado há poucas semanas, embora seu coração acelerasse sempre que acontecia e ela parasse o que estivesse fazendo para prestar atenção. Os longos dedos dele flexionaram, reagindo às ondulações bem próximas à superfície de seu corpo. "A sensibilidade dele continua alta."

Sentia o calor em suas costas, a respiração tranquila em seus cabelos e o braço dele pesando em sua cintura. "Agradeço aos Deuses." Era o primeiro pensamento dela todos os dias, desde que ele voltara.

- Ela está inquieta hoje. – Shiryu sussurrou com a voz sonolenta. Sua mão aberta sobre o abdômen crescido dela. – Calma, garotinha... Deixa a mamãe dormir mais um pouco, hum. – o corpo dela tremeu com a risada abafada.

- Gosto que você ainda pense que é uma menina. – Shunrei comentou, ainda de olhos fechados. Sem a visão, seus outros sentidos aguçavam, o que era perfeito para uma manhã como aquela. A bebê dentro dela continuou a se mexer por alguns minutos, cada vez mais profundamente, até cansar. – Quando ele se move, parece que é você dentro de mim. – sua mão apertou a dele. Sentiu os lábios em sua nuca, provocando arrepios.

- E você ainda pensando que é um menino. – ela começou a se espreguiçar para acordar de vez. – Fica um pouco mais. Nós só precisamos levantar daqui a pouco. – ele tentou detê-la, porém ela foi mais rápida, desvencilhando-se e sentando ligeira.

- Estou ficando mais pesada. Preciso de mais tempo para executar as tarefas. – Shiryu suspirou, passando as pontas dos dedos pelas costas dela por cima da camisola grossa. O inverno esse ano prometia ser tão rigoroso que eles resolveram acender um fogareiro dentro do quarto. Ele se sentou também, admirando a névoa dourada do lado de fora da janela. - O senhor Huang logo estará aqui. O que vocês farão hoje? – penteou rapidamente os cabelos, trançando-os e prendendo num coque.

- Precisamos reforçar as pedras da parte baixa da trilha. – ele se levantou, escolhendo um dos conjuntos de trabalho verde-escuros que ela trouxera semanas atrás. A calça de lã crua tinha amarras nas pernas para proteger do frio e a camisa de mangas compridas tinha um forro duplo para impedir a entrada do vento que fustigava a montanha nessa estação do ano. - Semana passada nós levamos as pedras, lembra? – Shunrei assentiu com uma interjeição, vestindo suas habituais calça e camisa, em tons azuis dessa vez, ajustadas para o corpo da gravidez. – Vamos assentá-las para garantir que não haja nenhum acidente como no ano passado. – os olhos dela arregalaram ao lembrar do deslizamento que deixara-os sem comunicação direta com a aldeia por semanas.

Os dois saíram juntos do último quarto do corredor, dirigindo-se à porta imediatamente à esquerda. Ali, no antigo quarto do Mestre Ancião, erigiram o pequeno altar em memória dos ancestrais, com uma foto do saudoso Dohko e uma vela sempre acesa. Todas as manhãs, seus singelos rituais de incenso e troca da tigela d'água saudavam e homenageavam todos os seus ancestrais, conhecidos e desconhecidos.

Após o falecimento do Mestre, souberam que ele fizera um testamento nomeando Shunrei como sua herdeira. Ela pôde manter a casa e eles se mudaram para lá, deixando o casebre de Shiryu como depósito e oficina. A primeira providência foi uma solicitação à prefeitura da aldeia para levar energia elétrica e linha telefônica para a montanha, reunindo os outros moradores para enviar petições até que os postes levaram as novidades e um pouco mais de conforto. "Sei que houve uma pequena interferência da Fundação."

- Não vou ficar até muito tarde. – ele comentou, ligando a chaleira elétrica. Ela cuidava de esquentar os bolinhos de macarrão e o molho agridoce. – Estaremos em quinze.

- Conseguiram que os rapazes da infraestrutura ajudem vocês? – comeram com calma, ambos conscientemente valorizando cada momento rotineiro. – Está muito apimentado? – ela sorriu, feliz por sua única preocupação ser com a quantidade de pimenta e se ele precisaria de uma alimentação mais forte ou leve dependendo da atividade do dia.

Shunrei ainda se lembrava do desespero que fora a última vez que Shiryu partira, no encalço do Mestre, e a lenta recuperação depois. Ela passara meses no Japão até poder trazê-lo de volta para os Cinco Picos Antigos. Com o telefone, a comunicação com a Fundação Graad e os demais cavaleiros ficava mais fácil, isso foi acalmando a ansiedade de todos e Shunrei conseguiu o sossego que precisavam para construir uma vida o mais normal possível.

- Shiryu, você está aí? – o vizinho apareceu com seu chapéu de abas largas na porta do jardim de ervas. – Bom dia para vocês!

- Bom dia, senhor Huang. – ela levantou, convidando-o entrar e tomar uma xícara de chá. – Como está Satsuki? – a amiga tinha dado à luz há três luas, um menino rechonchudo e chorão.

- Ela está muito bem! Finalmente pegou o jeito com o pequeno. – ele declarou, agradecendo pelo chá quente na manhã fria. – Essa noite nós todos dormimos bem. E você, como está, Shunrei? Preparados para umas noites animadas aqui no alto?

- Acho que não teremos problemas. – Shiryu respondeu. – Ela faz tanta festa agora, provavelmente será uma garotinha tranquila quando estiver aqui fora.

- Você ainda acha que é uma menina? – o senhor Huang sacudiu a cabeça. Shiryu ergueu uma sobrancelha diante do leve tom de censura e incredulidade. Para os chineses, filhas mulheres não eram muito bem-vindas. Lembrava-se de Shunrei, ainda criança, lhe explicando que talvez fosse por isso que fora abandonada na montanha.

- Não é uma previsão, é um desejo. – sentenciou, pegando o próprio chapéu atrás da porta. Eles se despediram de Shunrei e foram descendo animadamente pela trilha.

Ela conseguiu fazer todas as atividades pela manhã. Caminhou até o banquinho de pedra perto do local de treinamento do Mestre para tomar sol. Organizou as compras que fizeram na semana anterior: as roupinhas, fraldas e cueiros, o berço com duas flores marchetadas em madeira clara e os dois dragõezinhos de pano que tinham deixado Shiryu enlouquecido. Eles trouxeram também as meias de compressão que aliviaram as dores nas pernas e a cômoda baixa onde ela estava dispondo tudo e serviria de apoio nos cuidados ao filho.

"Ou filha..." Ela se divertia com a suposta predileção dele por uma menina. "Incrível que alguns dias só quero dormir e outros me sinto tão disposta." A cozinha ficara menor com a máquina de lavar roupa que ele fizera questão de trazer também. "Ainda bem que insistiu... Vai ser uma mão na roda." Terminou cortando os vegetais e a carne para a refeição do final do dia. Depois de tomar mais uma xícara de chá, colocou os pés inchados para cima perto da lareira da sala. "Quando ele voltar, vou pedir outra massagem."

Enquanto observava o fogo crepitando, seus olhos pareceram encher de areia. Ela começou a piscar e piscar, até que as piscadelas demoraram mais e mais.

Dessa vez, não obteve nenhuma notícia por vários dias. A solidão na montanha começou a se tornar insuportável e ela pediu para passar uns dias na casa da família Huang. Isso dificultou o emissário a localizá-la. Ele demorou dois dias em idas e vindas entre a aldeia e a casa do Mestre.

Assim que Shunrei o viu, foi buscar a mala e partiu. Durante a viagem, ele a informara que a senhorita Kido também ficara hospitalizada, por isso tiveram que esperar a recuperação e as ordens dela para vir até Rozan.

- Agora a senhorita está fora de perigo e voltou aos seus afazeres. Ela pediu que fôssemos primeiro para a mansão.

- Eles ainda estão no hospital? – ele confirmou. "Da última vez não foi assim." Ela se incomodou de não poder ir vê-lo antes. "O que pode ser tão importante?"

O carro que a esperava no aeroporto foi rápido para a mansão. Shunrei gostava de ver o edifício se destacando branco em meio ao verde da propriedade. "Até poderia gostar daqui, se não viesse sempre por um motivo aflitivo."

- A senhorita Kido a espera no escritório. – o mordomo a conduziu apressado, abrindo a porta. Saori estava sentada junto à janela e veio cumprimentá-la assim que ela entrou.

- Bem-vinda, Shunrei. – fez uma pequena mesura. – Obrigada por ter vindo aqui. Imagino que você queira ir ao hospital o mais rápido possível.

- Senhorita Saori, agradeço por ter me trazido. – as duas já haviam se visto em outras oportunidades, mas não eram íntimas. Shunrei procurava tratá-la com muito respeito, pois ela era a Deusa Atena.

- Você quer uma água, um chá? – Shunrei negou. – Algo mais forte? – ela estranhou a sugestão, franzindo a testa. – Pode trazer dois chás bem fortes, com um pouco de saquê, Tatsumi. – agora as sobrancelhas dela se ergueram. Saori a guiou para as duas poltronas próximas à janela alta.

A anfitriã ficou em silêncio, contemplando os jardins bem cuidados e o bosque mais distante. Shunrei estava impaciente, embora conseguisse se controlar o suficiente para analisar a mulher à sua frente. Saori parecia pálida e preocupada. Seus olhos não tinham a vivacidade e o desafio de que ela se lembrava. Na superfície havia preocupação. Ao olhar mais atentamente, Shunrei viu uma profunda tristeza. "Como será que eu mesma aparento para ela?" Saori só se mexeu quando Tatsumi trouxe as bebidas e as deixou na mesinha de centro.

- Por favor, prove o chá. – a dona da mansão insistiu, embora não tenha tocado na própria xícara. Sem conseguir mais suportar a situação, Shunrei chamou a atenção para si.

- O que aconteceu, senhorita? – ela viu os olhos de Saori brilharem, sem derramar nenhuma lágrima, o tórax mostrando o esforço para respirar.

- Shunrei, eu posso falar sobre isso com poucas pessoas. – engoliu em seco. – Você é uma delas. É filha do Mestre Ancião e, portanto, consegue compreender sem que eu precise explicar os detalhes. Você viu o eclipse no céu. – Shunrei assentiu, sentando-se muito ereta na poltrona. – Quem fez aquilo foi Hades, o Deus do Submundo. Para proteger a Terra, nós tivemos que lutar contra ele. Tivemos que ir aos domínios dele. – passou a relatar os eventos que conhecia, às vezes com a voz embargada. "Shiryu está certo. É uma Deusa com sentimentos humanos." Ela falava devagar, até que chegou na ação dos cavaleiros de ouro no Muro das Lamentações. – Então, todos eles queimaram seus cosmos além do limite máximo, se sacrificando para abrir caminho para os cavaleiros de bronze passarem... – ela olhou para Shunrei como a pedir desculpas. – Você sabe o que isso significa?

A única reação que Shunrei conseguiu ter foi balançar a cabeça. Sua vista turvou e o coração ficou minúsculo, batendo loucamente na garganta fechada de dor. Ela tentou respirar e não conseguiu. As lágrimas inundaram seu rosto e sua camisa e ela apertou as mãos em punho, tentando não tremer. Abriu a boca para puxar o ar e um lamento escapou. Seu peito todo doía, sentia um frio irradiando para seus braços e pescoço. Imagens do Mestre Ancião brotavam em sua mente em alta velocidade. Era dele o rosto de sua lembrança mais antiga. Era dele a voz que ela se lembrava de ouvir desde sempre. Era dele o carinho que ela sentia protegendo-a em qualquer lugar da montanha dos Cinco Picos Antigos.

Em meio à escuridão do seu sofrimento, ela viu uma luz ao longe. Sentiu um cosmo de gentileza e serenidade a envolver. Saori tinha se inclinado e tomado suas mãos entre as dela. "O cosmo de Atena transmite tanta paz."

- Jamais me esquecerei deles, Shunrei, eu prometo. – ouviu a voz soar na sua mente. – Eles deram a vida para manter a Justiça, a Bondade e a Beleza desse mundo. Dohko, o Mestre Ancião, é um verdadeiro Cavaleiro de Atena. – ela falava direto com o seu coração e Shunrei compreendeu o que Shiryu não conseguira explicar, que às vezes Saori era Saori e às vezes era Atena. "É nítida a diferença". – Eu quis dar a notícia a você porque sei como é perder um pai e porque eu quero pedir o seu perdão. – "Agora é a Saori." – O Mestre Ancião e Shiryu a deixaram para me proteger. Você tem sido arrastada para situações quase impossíveis. Peço que me perdoe por fazer você passar por tudo isso. Eu queria que fosse diferente. O Mestre Ancião e eu queríamos que os cavaleiros de bronze levassem uma vida como outros jovens da idade deles, mas isso não é possível. – Shunrei respirou fundo várias vezes, querendo absorver o cosmo de Atena que a rodeava.

- É o destino deles... É o seu destino. – as mãos dela ainda tremiam entre as mãos da Deusa. – E é o meu também... Não posso escolher o meu destino, posso apenas viver o melhor possível, fazer o meu melhor, sempre. Assim como vejo todos fazendo. – com cuidado e firmeza, sem querer parecer desrespeitosa, retirou as mãos e afastou-se um pouco. – O Mestre queria que Shiryu e eu vivêssemos uma vida boa e feliz nos Cinco Picos Antigos. É isso que pretendo fazer para honrar a memória dele. – Saori assentiu, recostando-se na poltrona, sem parar de envolver Shunrei com seu cosmo dourado.

- Farei de tudo que estiver ao meu alcance para que isso aconteça. – os olhos marejados de Shunrei miraram o rosto franco dela. – Os cinco estão no hospital da Fundação que você já conhece. Eles estão na UTI. O quadro deles é estável, embora os ferimentos sejam graves. Se não fossem as Kamui, os corpos deles não teriam resistido. Assim que voltamos e as armaduras retornaram às condições normais, a energia que os sustentava sumiu também.

- Você também foi ferida?

- Eu participei. – ela contou como foi a batalha final nos Campos Elísios. – Consegui me recuperar antes deles e estive trabalhando na reforma e manutenção do Santuário e em cuidar dos cavaleiros e habitantes lá. Voltei hoje para o Japão, pedi para trazê-la e agora vou poder me dedicar aos cinco. Gostaria de contar com a sua ajuda. Sei que veio por Shiryu, mas pensei que,talvez, consiga fazer algo também pelos outros quatro cavaleiros de bronze, afinal, eles lutaramjuntos todo esse tempo. – Saori pegou a xícara e bebeu um gole do chá com saquê. – Até que não está tão ruim. Não quer mesmo? – Shunrei provou e não gostou nem um pouco.

- Quando poderemos ir ao hospital? – pensou no pedido e a conhecida disposição com propósitopreencheu seu coração.

- Antes de irmos, gostaria de lhe apresentar uma pessoa. Pode me acompanhar? – Saori conduziu-a ao jardim, onde uma jovem estava sentada em um banco em frente à fonte que elas viam do escritório. "Então era ela que a senhorita estava observando."

Ao ouvi-las se aproximar, a jovem desviou o olhar da fonte e levantou-se. Parecia um pouco mais velha do que elas, com seus cabelos castanhos claros emoldurando um rosto de olhos gentis. "Parece um pouco confusa." Vestia uma saia xadrez de vermelho e preto chegando aos joelhos e uma blusa branca.

- Senhorita Saori. – ela cumprimentou com uma leve mesura. Saori retribuiu o gesto.

- Conseguiu se recompor da viagem, Seika?

- Sim, senhorita. – a jovem olhava as duas recém-chegadas com curiosidade. - Estava pensando quando iremos ao hospital.

- Já estamos de partida. Quero apenas apresentar vocês duas. Está é Shunrei, amiga de Shiryu, você se lembra dele? – Seika assentiu. – Está é Seika, irmã de Seiya. – as duas se cumprimentaram. "Mas, pelo que me recordo, Shiryu me disse que ninguém sabia onde ela estava. Que extraordinário!" – Sei que as duas serão fundamentais para a recuperação deles. – elas confirmaram.

- Vamos as três? – Shunrei tentava não demonstrar espanto pela presença da irmã de Seiya. "Em algum momento, a história será esclarecida."

- Agora mesmo. – Saori pediu a Tatsumi para preparar o carro. No caminho, voltou a ficar silenciosa, embora o desconforto inicial de Shunrei tivesse desaparecido. Seika parecia tão ansiosa quanto ela e as duas trocaram um olhar de cumplicidade.

- Senhorita Saori. – chamou e a jovem desviou o olhar da paisagem. "Ela está mais sozinha do que eu." – Obrigada por ter me contado. Significa muito para mim. E obrigada pelo que está fazendo por Shiryu e os outros.

- É o meu dever, Shunrei. – ela constatou simplesmente, seus lábios formando um sorriso resiliente.

- Muitas pessoas têm deveres e não os cumprem. A senhorita é uma pessoa boa e generosa. – Saori sorriu genuinamente, aceitando o elogio com um meneio de cabeça.

- Seika voltou comigo da Grécia hoje também. – olhou para a jovem de rosto sério.

- Fui atrás de Seiya quando ele foi enviado ao Santuário para seu treinamento, mas não consegui chegar até lá. – Seika esclareceu a Shunrei. - Apenas cavaleiros ou quem já nasceu nas vizinhanças é que consegue transpor as barreiras daquele lugar. Acabei perdendo a memória e passei anos na vila próxima ao Santuário, sem saber que Seiya estava ali. – Shunrei viu a garganta dela engolir, mas a voz estava firme. – E quando o reencontro é nessa situação. – Shunrei assentiu, contraindo os lábios. "Ela é muito forte."

- Ele logo estará recuperado. – ofereceu um meio sorriso à jovem. – Os rapazes já passaram por tanta coisa e sempre conseguem se reerguer. E nós vamos ajudá-los a voltar para nós.

A situação no hospital requeria a atenção total das três e Shunrei agradeceu silenciosamente a presença de Atena. Elas iam todos os dias visitá-los e Saori ficava um tempo com cada um, emanando seu cosmo para trazê-los de volta à vida, enquanto Shunrei e Seika cuidavam dos corpos, observando, tocando e tratando as feridas em todos, não os deixando esquecer do calor humano.

Os olhos de Seika marejavam sempre que se aproximava do irmão. Seiya sofrera o ferimento mais difícil de tratar, pois a espada de Hades perfurara seu coração. Mesmo com Atena atuando fortemente sobre ele, foi o último dos cavaleiros a recobrar a consciência. Cada um dos rapazes que abria os olhos era motivo de alívio para as três.

Foi um trabalho que as aproximou bastante.

A história de Seika tocou bastante Shunrei, que fazia questão de estar sempre perto da jovem, principalmente quando Saori se ausentava da mansão ou estava ocupada com assuntos da Fundação Graad. Contava a ela como era a vida em Rozan e foi com ela visitar o orfanato, aproveitando para rever Miho e Eiri. Como ela estava se inteirando da situação agora, Shunrei não a sobrecarregava. "Vai demorar para a mente dela estar totalmente saudável." Procurava conversar assuntos mais cotidianos com a jovem, para ela ir se acostumando aos poucos com o universo dos cavaleiros.

Com Saori conversava sobretudo sobre os ensinamentos do Mestre Ancião, pois a curiosidade dela sobre ele era grande. Um dos sobreviventes da Guerra Santa anterior, com centenas de anos de experiência. Saori lamentava não ter tido a oportunidade de sentar com ele e conversar frente a frente. Mais de uma vez, ela perguntou sobre o relacionamento de Shunrei e Shiryu e a chinesa viu-se conversando amenidades de Rozan com a Deusa, as duas rindo na cozinha da mansão ou armando planos de futuro nas idas e voltas ao hospital.

Ao final de uma semana, os cinco foram transferidos para quartos duplos e puderam receber mais visitas. Miho e Eiri, Kiki e os outros cavaleiros de bronze movimentaram os corredores do hospital e mansão Kido.

Em poucos dias, puderam ir para a mansão, embora ainda precisassem comparecer regularmente ao hospital por mais quinze dias. Nesse período, os laços entre eles se fortaleceram em todos os sentidos, o que perdurava até hoje. Mesmo à distância, procuravam se manter em contato e algum deles sempre passava pelos Cinco Picos Antigos, onde ficavam dias. Duas ou três vezes, Shunrei e Shiryu visitaram os amigos. O telefone os ajudou a não se isolarem do mundo que também era deles.

Quando os dois fizeram seus votos de união, todos compareceram à cerimônia simples...

"Mas eu não entrei no rio hoje." Ela estranhou a sensação de umidade. "E não sou mais criança para fazer xixi na roupa." Sua consciência forçou-a a acordar.

Sua calça estava encharcada, assim como a cadeira. Havia uma poça no chão. Assim que ela levantou, sentiu uma dor pontuda no pé da barriga.

"Não, é muito cedo!" Os olhos dela deviam estar do tamanho de pires. A bolsa tinha rompido. "Mas ainda não completei a oitava lua... Preciso encontrar Shiryu... Eu ainda não organizei a bolsa do parto... Preciso guardar a comida, senão vai estragar... Será que eu aguento descer até a aldeia?..." Ela ficou zanzando pela casa, indo de um lugar para o outro, sem realmente ver nada à sua frente, paralisada pelas contrações que a faziam perder o fôlego. "Calma... Se acalma, mulher!" Foi até uma janela e viu que o sol passara um pouco da metade do céu. "Ele vai chegar a qualquer momento... Lembra do que a senhora Huang fez com Satsuki... Não precisa ter medo... As mulheres fazem isso desde o início dos tempos."

Começou a caminhar pela sala, contando o tempo entre uma contração e outra e a duração delas. Tão espaçadas que ela conseguiu fazer o caldo de vegetais, a carne frita e o arroz de jasmim que planejara. Respeitando a contração quando vinha e voltando às panelas depois. "Não pare de caminhar... Não fique deitada até que suas pernas não aguentem mais..."; se lembrava da voz da senhora Huang, as duas revezando em caminhar com Satsuki pelo quarto.

Tinha trocado a roupa por um vestido amplo e longo, de mangas 3/4. Colocou lenha no fogareiro do quarto e foi ao quarto do Mestre. Assim que entrou, seu coração acalmou-se e ela acendeu varetas de incenso, caminhando em círculos lá, onde se sentia segura. Podia sentir a presença do Mestre. "O senhor veio ver o seu neto?... Por favor, traga logo o seu discípulo."

- Shunrei? – a voz dele soou no jardim. – Acho que ela está dormindo. – ela gritou o nome dele e saiu para o corredor no momento que uma contração a fez se dobrar.

- Shiryu! – ele a viu e correu até ela. Estava com as roupas empoeiradas. Teve que esperar ela voltar a respirar. – Que bom que você está aqui... Já começamos há quatro horas. – ele franziu o cenho, abrindo e fechando a boca sem conseguir falar, amparando-a. Shunrei endireitou-se e foram andando para a sala.

- Mas, agora? – ela pediu para eles caminharem ao redor dos móveis. – Shunrei, é muito cedo! – ele a apoiou pela cintura quando ela agarrou sua camisa. – Ainda faltam mais de dois meses!

- Eu não tive escolha. – ela fez outra careta de dor. – As contrações estão vindo a cada quatro minutos... O senhor Huang veio com você? – Shiryu assentiu, pedindo para ela sentar enquanto falava com o vizinho, que observava da porta da cozinha, cauteloso, a movimentação.

- Ele foi buscar a senhora Huang. – Shiryu ajoelhou-se na frente dela e segurou suas mãos geladas. – Vamos ao hospital. – ela negou, respirando rápido para tentar dissipar a dor. Viu o desespero nos olhos dele.

- Ele é um rapazinho apressado. – tentou sorrir, apertando os ombros dele. – Me leva para caminhar. "Não há nenhum sangue, nem nada de preocupante... É só um parto prematuro." Não consigo descer a montanha agora... Se fosse mais cedo, talvez... Vai ser como a Satsuki.

- Eu vou ficar com você. – Shiryu garantiu e ela riu.

- Se você não ficar, eu arranco esse seu cabelo com uma pinça! – apertou a mão dele na próxima contração. – Você ainda acha que é uma menina?

- Claro. Uma linda chinesinha como a mãe. – ele a fazia caminhar devagar, seu braço firme em volta dela. Shunrei conversava para focar a consciência, pois temia estar perdendo o controle também.

- Isso mesmo, você aprendeu. – a senhora Huang chegou, indo até ela imediatamente. – Passou uma tarde e tanto aqui, hein? – olhou para os dois jovens assustados.

- As contrações dela estão em dois minutos. – foi o cumprimento de Shiryu. A senhora Huang examinou o rosto de Shunrei, dizendo para levá-la para o quarto. Ele ajeitou os travesseiros para que ela apoiasse a cabeça e as costas. Ajudou-a a tirar o vestido. "Troço insuportável!" Pegou os lençóis que ela organizara naquela manhã e ajudou a senhora Huang a cobri-la. – Vou ferver água.

- A senhora teve três filhos assim? – Shunrei perguntou, o rosto suado e os cabelos empapados. Precisava se lembrar de respirar para tentar diminuir as dores das contrações. A vizinha confirmou por entre seus joelhos. Sentiu que ela a examinava. – E não quis bater no senhor Huang? – a mulher mais velha riu e levantou o rosto.

- Todas as vezes! – procurou sinais de alerta na expressão da mulher mais velha, mas não encontrou. – Você está indo bem. Sua dilatação está boa. A qualquer momento agora, fique tranquila. – Shunrei balançou a cabeça, tentando concentrar-se no bebê e não na dificuldade em controlar seu corpo. – Não lute contra, filha. Deixe seu corpo agir, ele é sábio. Respire quando tiver que respirar e empurre quando tiver que empurrar. - assim que Shiryu voltou com a água quente, as contrações aumentaram exponencialmente. A senhora Huang pediu que ele jogasse numa tigela d'água folhas secas de pinheiro, jasmim e cerejeira. – Para manter os espíritos malignos longe. Deixe perto da cabeça dela. - Shunrei sentia que seu corpo se partia em dois. Tentava erguer o tronco e não conseguia. – Fique atrás dela e apoie as costas. – ele obedeceu, os olhos verdes arregalados. – O senhor Huang esteve comigo todas as vezes. – a vizinha informou ao vê-lo acomodar com delicadeza a jovem com o rosto compenetrado e os olhos decididos.

Shunrei encostou-se nele e sua energia voltou. Quando a senhora Huang dizia para empurrar com força, ela apertava as mãos dele e ia. Suspeitava que suas veias fossem se romper eventualmente. Sentia Shiryu enxugando o suor do seu rosto e utilizando o cosmo para transmitir energia e segurança a ela. Murmurava pequenas palavras de carinho em seu ouvido nos intervalos em que ela recuperava o fôlego. A senhora Huang tocava suas coxas e seus joelhos num manifesto silencioso de que estava ali por ela. Emitia as palavras de comando que a faziam direcionar sua energia apenas para o essencial.

A presença dos dois a tranquilizou. "É só um parto prematuro... Está tudo bem com o bebê... Ele se mexeu ainda hoje de manhã... Eu vou conseguir."

Então, com um esforço e um empurrão final, sentiu o bebê deslizando de dentro dela. Caiu completamente exausta nos braços de Shiryu.

- Você está sendo uma guerreira. – ele a beijou no rosto, os olhos brilhantes. A boca dela estava seca e a mente queria vaguear, embora seus sentidos estivessem aguçados, todos voltados para o que ocorria entre as suas pernas.

A senhora Huang o aparou e limpou sua boquinha, depois virou-o de costas e deu palmadinhas suaves. Após o que pareceu uma eternidade, ouviram um resmungo, seguido de um choro fraquinho. Shunrei e Shiryu começaram a respirar de novo. A senhora secou a criancinha miúda e a colocou em cima de Shunrei.

- É um menininho. – ela anunciou, com voz trêmula. Shunrei olhou para o pequenininho que se mexia lentamente sobre ela, piscando loucamente para espantar as lágrimas. Achava que o movimento do bebê era devido ao seu coração que estava saindo pela boca. Os olhinhos inchados ainda fechados no rostinho vermelho pelo esforço de respirar pela primeira vez. As perninhas e bracinhos testando o mundo.

Viu a mão de Shiryu pousar em cima do corpinho do filho, quase cobrindo-o todo.

- Olá, meu pequeno dragão. – a voz emocionada saiu num murmúrio. – Você é muito bem-vindo, meu filho... Sua mãe e eu estávamos ansiosos para conhecê-lo.

O contato entre os três fez uma onda de alegria e contentamento percorrer seu corpo. Cada movimento do bebê acelerava mais o coração de Shunrei e ela estava hipnotizada.

- Ele é um rapazinho corajoso, desejando nascer tão rápido e em pleno inverno. – A senhora Huang a ajudou a expelir a placenta e Shiryu cortou o cordão umbilical. – Quer se ajeitar para aprender a dar de mamar? – sinalizou para Shiryu ajudá-la a apoiar nos travesseiros. – Isso, a cabecinha na dobra do braço. Vire o corpinho dele para você, a barriguinha encostada na sua. Agora, coloque o máximo de peito na boca dele... – Shunrei olhou para aquela boquinha minúscula e seu peito pareceu enorme. - Não precisa ter medo, ele sabe. – ela se maravilhou quando o filho abriu a boquinha e começou a sugar. – Se quiser, ajude ele assim. – ensinou como segurar o seio, guiando o bebê a encaixar corretamente a boca. – Tem que fazê-lo pegar o mamilo todo, senão pode machucar você. Lembra que Satsuki teve problema? - colocou um travesseiro para ela apoiar o braço. – Está vendo como ele sabe? – emitiu um meio sorriso observando a performance dos dois.

Era uma sensação estranha sentir os lábios do filho na pele muito sensível do mamilo e o leite sendo sugado de dentro dela. Ouvia-o engolir e sentia seu útero reagir, contraindo. Procurou o rosto de Shiryu, que estava ao lado dela, igualmente maravilhado. Beijou sua testa.

- Bem-vinda também, mamãe. – Shunrei sorriu de pura felicidade.

- Você quer segurá-lo? – o bebê parara de mamar e adormecera. Shiryu pareceu desconsertado. Tentou negar, mas já era tarde, ela o acomodou em seus braços e viu que ele mal respirava.

- Ele é tão pequeno. Tenho medo de machucá-lo. – passou a mão pelo corpinho e a cabeça, cercando-o com o braço. Engoliu em seco várias vezes, tentando miseravelmente vencer as lágrimas.

- Não vai machucar, não se preocupe. – a senhora Huang terminara de limpar a cama e recolher os lençóis sujos. – Ele nasceu antes do tempo, então seu corpo é frágil, mas sei que vocês vão cuidar bem dele. – os dois assentiram juntos. – Shiryu, é importante que ela coma bem para se recuperar o quanto antes e ter bastante leite. – passou uma lista de alimentos nutritivos para ele, que prestou muita atenção. – E vocês não podem esquecer de colocá-lo para arrotar. Agora passou porque estava ensinando como pegar o peito, mas não podem deixar senão ele vomita e fica fraco. Vá com o senhor Huang lá em casa agora e traga um pouco da pomada que fiz para o filho de Satsuki. Eu fico aqui com os dois. – pegou o bebê e o embrulhou num cueiro, devolvendo-o para a mãe.

- Muito obrigada, senhora Huang. – Shunrei declarou quando ficaram sozinhas. – Não sei o que faria sem a senhora.

- A natureza faria, não se preocupe. – Shunrei sorriu, o bebê aninhado em seus braços. Não sabia definir os sentimentos que explodiam dentro de si apenas por vê-lo. – E o seu marido é como o meu, não tem medo de sangue. Você já escolheu a árvore onde vai plantar a placenta? – Shunrei negou. – Escolha uma forte, mas com galhos flexíveis. Ele é um bebê que vai precisar de muita força e cuidado, por isso as raízes precisam ser profundas, mas ele não pode ser duro e inflexível, então os galhos não devem quebrar com o vento. Um bebê tão pequeno consegue sobreviver ao inverno, mas os pais precisam plantá-lo em um bom terreno. Perdi dois filhos para aprender isso. – ela era a figura mais próxima de uma mãe que Shunrei conhecera, por isso seus conselhos lhe eram preciosos. – Será melhor levá-lo ao posto de saúde da aldeia o quanto antes também, mas não hoje. – a vizinha aproximou-se, tocando o rostinho com a ponta do dedo e sorrindo. – Hoje ele está descobrindo o mundo. Hoje nasceram um filho, uma mãe e um pai.

Shunrei desconfiou que era por isso que ela queria ter essa conversa a sós. A senhora Huang acreditava que o destino das pessoas está ligado à natureza e à terra onde nasceram.

- Não precisa se preocupar, vamos fazer conforme a senhora está ensinando. – ela garantiu, sentindo o cansaço chegar. – E eu não vou deixar nada ruim acontecer com meu filho. Ele e seu netinho vão correr muito por essa montanha.

Shiryu voltou e a senhora Huang partiu, prometendo voltar no dia seguinte. Agachou à frente deles na cama e Shunrei admirou sua expressão ao mesmo tempo maravilhada e determinada ao olhar para o filho. O amor que o cosmo dele transmitia era tão grande que parecia irradiar por toda a montanha. Ela lhe entregou o embrulhinho que movia as mãozinhas e entreabria os olhinhos. Shiryu sorriu, a palma de sua mão envolvendo a cabecinha coberta por finos fios escuros.

- Sempre soube que você seria um excelente pai. – Shunrei passou os dedos em seu rosto. Shiryu ergueu os olhos que escondiam algo, lá no fundo, por trás da alegria que transbordava.

- Não sei se estarei sempre aqui. – ela o ouviu confessar o que mais o afligia na vida. Era o preço que um cavaleiro de Atena pagava por tentar ter uma vida normal.

- Enquanto você estiver conosco, esteja inteiro, para que possamos tê-lo quando estiver longe. – e sentiu o preço a ser pago por amar um cavaleiro de Atena. – Nós não somos sua fraqueza, somos sua fortaleza.

- Cada vez mais. - ele sorriu, de repente se lembrando que ainda estava sujo do trabalho na trilha. - Vou me limpar e já volto. – trouxe mais lenha para o fogareiro e abriu o bercinho. – Ainda bem que nos antecipamos em muitos preparativos. – ajudou-a a tomar banho e se alimentar, trazendo a refeição quente para o quarto. O sono foi se apoderando dela.

- Ainda não decidimos o nome. - Shunrei beijou a cabecinha deitada nos braços do pai. – Você pensou em algum nome de menino? – ele negou com a cabeça, sem tirar os olhos do bebê. – Que tal Ryu? - Shiryu experimentou a sonoridade do nome. Chamou o bebê algumas vezes. Pensou um pouco.

- Que tal Ryuho? – foi a vez dela testar. Quando falou em voz alta, o bebê abriu mais os olhinhos. O sorriso de Shiryu ficou mais largo.

Até o dia seguinte e pelas próximas semanas, foram muitos cochilos e muitos acordares espantados, muitas conferidas se o pequeno estava respirando e especulações quanto ao significado de cada gesto do bebê. A rotina deles mudou completamente, com Shiryu assumindo todas as tarefas de organização da casa e ambos empenhando-se para que o bebezinho nascido na boca do inverno florescesse na primavera.

- Você me faz o homem mais feliz do mundo. – ele segredou na madrugada alta, acomodando-a em seus braços. Ela esticou o pescoço para beijá-lo, recordando a conversa que tivera com Saori há tantos anos. "Estamos construindo nossa vida boa e feliz."

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Olá!

Foi sem planejar que esse capítulo seja publicado durante a Páscoa. É de se pensar que coincidências não existem, né? As festividades que deram origem à atual Páscoa cristã são as celebrações pela chegada da Primavera no Hemisfério Norte, que em uma chave de interpretação é o nascimento/renascimento da Natureza após os meses de inverno. E aqui temos as duas coisas.

Agradeço a quem está acompanhando e escrevendo reviews. Espero que tenham gostado! Digam aí como imaginam o nascimento e o renascimento.

Até o próximo capítulo!