Considerações finais

Considerar a alfabetização e o letramento como domínios diferentes da educação científica, mais do que ser uma discussão semântica, evoca processos escolares que busquem formas de contextualização do conhecimento científico em que os alunos o incorporem como um bem cultural que seja mobilizado em sua prática social. Ao adotar uma nova terminologia ainda não conhecida pelos professores, busca-se destacar que se trata de uma concepção de educação científica por meio de uso social.

Assim como se busca em processos de letramento da língua materna o uso social de sua linguagem, reivindicar processos de letramento científico é defender abordagens metodológicas contextualizadas com aspectos sociocientíficos, por meio da prática de

leitura de textos científicos que possibilitem a compreensão das relações ciência-tecnologia-sociedade e tomar decisões pessoais e coletivas. Nesse sentido, o conceito de letramento científico amplia a função dessa educação, incorporando a discussão de valores

que venham a questionar o modelo de desenvolvimento científico e tecnológico. Em outras palavras, o que se busca não é uma alfabetização em termos de propiciar somente a leitura de informações científicas e tecnológicas, mas a interpretação do seu papel social.

Isso implica mudanças não só de conteúdos programáticos como também de processos metodológicos e de avaliação.Tornar a educação científica uma cultura científica é desenvolver valores estéticos e de sensibilidade, popularizando o conhecimento científico pelo seu uso social como modos elaborados de resolver problemas humanos. Para isso, torna-se relevante o uso de meios informais de divulgação científica, como textos de jornais e revistas e programas televisivos e

radiofônicos em sala de aula. Além disso, visitas programadas a espaços não-formais de educação, como museus de ciência, jardins zoológicos, jardins botânicos, planetários, centros de visita de instituições de pesquisa e de parques de proteção ambiental e museus virtuais, entre outros, são importantes estratégias para inculcar valores da ciência na prática social. Não se trata de apresentar um conhecimento esotérico, mas de transformá-lo em conhecimento exotérico, como preconiza Chassot (2000). Nem se

trata de imposição cultural, mas sim de reconhecê-la na prática social abrindo as portas da formalização ritualística das fórmulas acadêmicas de sala de aula para seu uso por meios informais. Como já se vem discutindo, a educação científica tem de ser difundida também em espaços não-formais (Krapas Rebello, 2001), que podem ser usados não simplesmente para a contemplação, mas também para o entendimento de seu papel social (Marandino, 2006; Leal Gouvêa, 2002).

O letramento científico significa também buscar uma educação científica que propicie a educação tecnológica. Muito se tem discutido no meio educacional brasileiro sobre o papel dessa educação, levando em conta argumentos sociológicos. Estando fora do propósito deste artigo uma reflexão ampliada sobre a

educação tecnológica, o que se buscou foi apresentar contribuições advindas de estudos de ensino de ciências sobre como essa educação pode ser pensada em

disciplinas científicas, por meio de uma abordagem temática contextualizada.

Propiciar, portanto, a educação científica como um processo de domínio cultural dentro da sociedade tecnológica, em que a linguagem científica seja vista como ferramenta cultural na compreensão de nossa cultura moderna, é o grande desafio na renovação do ensino de ciências. Conforme a concepção que se tenha do papel da educação científica, teremos diferentes concepções de ensino. Se a alfabetização/letramento na educação

básica for vista com o papel restrito de ensinar a linguagem científica para realizar exames ou obter certificados, pode-se considerar que o modelo convencional de escolas mais tradicionais atende ao seu

propósito, ainda que não propicie aprendizagem significativa nos moldes esperados pelos teóricos de aprendizagem.

Se a função da educação científica na educação básica for a formação de cidadãos letrados em ciência e tecnologia, no sentido que Shamos (1995) considerou "true" scientific literacy (letramento autêntico), será necessário instituir uma ampla reforma no sistema educacional. A situação socioeconômica de nosso país, com mais de 20 milhões de iletrados na

própria língua nacional, indica ser esse um objetivo que ainda demandará longo tempo para concretizarse. Na verdade, esse nível elevado de letramento, no sentido do domínio da capacidade de compreensão

de modelos científicos, talvez não se venha consolidando nem mesmo em cursos de graduação em ciências, que em geral também mais enfatizam domínio vocabular e resolução de problemas do que compreensão da natureza da atividade científica.

Dentro desses dois extremos de pobreza formativa e mito utópico de letramento ideal, existe um espaço curricular a ser ocupado por meio de ações educativas transformadoras em sala de aula, que está no resgate da função social da educação científica. Para isso, não são necessários laboratórios sofisticados, grade horária ampliada e incorporação de novos conteúdos, mas sim mudanças de propósitos em sala de aula. Com a caracterização apresentada para o ensino

atual de ciências nas escolas, evidenciou-se o que já foi constatado por Barros (1998): a popularização do letramento científico é ainda um mito não atingido e o efeito do currículo formal de ciências parece ser desprezível. Todavia, ao contrapor letramento ao processo elementar de alfabetização, buscou-se demonstrar como esse mito ainda pode ser realizável. Shamos (1995) também chega a considerar que tornar o público sensível e informado em ciência talvez seja um mito difícil de alcançar. No entanto, refletir sobre concepções de educação científica que estão sendo demandadas pela nossa sociedade pode, de alguma forma, contribuir com aqueles que acreditam que ainda é possível transformar o ensino vocabular ritualístico de preparação para exames em uma educação científica para o domínio da compreensão da ciência como prática social. Afinal, esse é um desafio para curriculistas, avaliadores do sistema educacional, filósofos, sociólogos da educação e, sobretudo, para os professores de ciências que desejam mover-se de uma alfabetização descontextualizadabpara o letramento científico como prática social.

Certamente não será o modelo de ensino por transmissão do conhecimento como um ornamentobcultural para legitimar uma determinada posição social de exclusão da maioria que propiciará a formação de cidadãos conscientes de seu papel na sociedade científica e tecnológica. Nem seriam também livros didáticos –sobrecarregados de conteúdos e socioculturalmente descontextualizados, que apenas ilustram as maravilhas das descobertas científicas, reforçando a concepção de que os valores humanos estão a reboque dos valores de mercado – que iriam contribuir para a formação de cidadãos críticos.

Nesse sentido, mais importante do que a discussão terminológica entre alfabetização e letramento está a construção de uma visão de ensino de ciências associada à formação científico-cultural dos alunos, à formação humana centrada na discussão de valores.