Uma leve brisa soprava por entre os galhos trazendo consigo uma deixa de saudade da maresia e um fetum mortificante de coisa morta.
Sob o solo gravetos e folhas eram esmagados por sandálias e tamancos. Essas mesmas folhas vagarosamente caiam ao montes conforme troncos se reclinavam, abrindo caminho.
O som do quebrar da madeira - da menor para a maior - ecoava de maneira bizarra pelo ambiente escuro da floresta, por onde apenas alguns poucos toques de vermelho do sol da tarde conseguiam se esgueirar através das copas altas das arvores que os cercavam.
Ali oito pés eram ouvidos em marcha, uns mais leves, outros mais pesados, uns mais mancos e outros mais irritados, mas, ainda assim, quatro passos ecoavam um atrás do outro na densa floresta que resguardava Hakumai como um escudo que protegia a terra dos monstros que vinham do mar.
Engraçado, considerando que não haviam Reis dos Mares no mar superior de Wano.
Ainda assim, esses mesmos pares de pés recordavam-se bem da pequena aventura que haviam vivido no começo daquele dia.
Três deles fazendo um longo e tortuoso caminho por baixo de todo o país, saindo da Capital das Flores e sendo completamente arrastados por debaixo da terra e água apenas para descobrir queode alguma forma foram deixados a própria sorte no litoral.
O quarto destes após uma pesca um tanto quanto selvagem que se prolongou de Kibi até o outro lado de Wano.
Para este, é claro, o dia havia sido e ainda estava sendo maravilhoso. Ainda mais depois de seu encontro hilariante com o grupo na praia.
Talvez um pouco menos depois de ter que nadar todo caminho de volta até Udon atrás de alguns pedaços de pano e máscaras para os dois patetas e seu irmão, mas ainda assim fora um bom dia.
E agora aqui estavam os quatros, trajados dos pés à cabeça de roupas brancas, sobrepostas por imenso kimono também branco e com algumas máscaras penduradas em suas testas.
—Por que eu tenho que usar essa coisa?!- perguntou Koiko revoltada com a faixa apertada que fora obrigada a trajar na altura dos seios, amassando-os contra o torso de maneira à esconde-los, fazendo-a parecer um menino. —Sério! Não faz sentido nenhum! Só pode meninos nessa cidadezinha de merda, por acaso?!
—Não se preocupe, Koiko-chan, isso provavelmente é só um fetiche aleatório do cabeça de alho poró.- assegurou Menma, fazendo graça das longas mechas brancas com pontas desgrenhadas e esverdeadas do cabelo de Yamato.
—Ma-mas se isso for um fetiche... isso não seria pior?- perguntou timidamente Tanishi, quase se escondendo atrás dos ombros de Menma.
—Oh! É verdade! Nesse caso, se preocupe sim, Koiko-chan.
—VOCÊS, CALEM A BOCA!- esbravejou a donzela do grupo, ainda irritada que seus companheiros tenham deixado-a nua da cintura para cima apenas para tirar proveito da situação.
—Calem a boca vocês três! Isso não tem nada a ver com fetiche, mais tarde vocês entenderão porque que isso é importante.- inconformou-se com as acusações Yamato enquanto seguia observando o caminho que trilhavam da melhor maneira possível.
O que era um tanto quanto difícil, considerando a imensa carpa que ele matara mais cedo naquele dia e que o mesmo estava trazendo sobre sua cabeça.
De tão grande, o corpo do animal pendia para a frente e para trás do grupo, bloqueando completamente a visão dos quatro para o que quer que viesse a frente ou atrás, cobrindo-lhes também por completo a cabeça.
Desnecessário dizer também que com tamanho volume, a criatura empurrava as árvores próximas para todas as direções, entortando e partindo seus troncos e galhos, abrindo espaço floresta adentro, arrancando as raízes do chão enquanto que a cabeça e o rabo do peixe - que se arrastavam pela terra - deixando uma enorme lacuna onde não haviam mais árvores ou grama, cuja a terra fora completamente revirada.
E banhada em sangue, é claro, pois a ferida que tirara a vida da carpa seguia aberta verticalmente, atravessando o corpo do animal de uma ponta a outra, não só expondo suas entranhas como também deixando que as mesmas vazem conforme o grupo anda.
E ainda assim o grupo seguia a liderança de Yamato, este por sua vez seguia por um caminho que já não era visível, tentando às cegas encontrar o rumo certo para Shinkai.
Ele não parecia preocupado com isso.
Ninguém do grupo - a exceção de Tanishi - parecia realmente consternado com o fato de que o trajeto que era suposto levar alguns minutos já havia se extendido por algumas horas.
Ao invés disso, outra coisa passava pela mente de Yamato.
—Vocês pelo menos conseguiram pegar a ova?- perguntou ele pela enésima vez aquela tarde.
E com um suspiro cansado, Menma respondeu.
—Sim, como eu disse nas primeiras dezessete vezes que você perguntou, ela está bem aqui.- disse mostrando a evidência em suas mãos.
A ova parecia cintilar nas mãos do mais velho, a pouca luz vermelha capaz de alcança-los debaixo daquela carpa penetrava na superfície também avermelhada da ova e reluzia, tornando-se quase que uma lanterna que projetava um intenso brilho sobre todos os presentes.
Menma quase pôde sentir o ar deixando os pulmões de Tanishi diante da cena, mas ele estava mais interessado no desinteresse no olhar de Yamato e na determinação no de Koiko.
—Essa é a nossa passagem para fora de Wano...- comentou ela baixinho.
—Isso tá realmente seguro na mão dessa cobra?- questionou Yamato.
—De novo você com esse papo...
—Eu nunca roubaria dos meus amigos.- afirmou Menma irredutível.
—Do que adianta não roubar se você acabar perdendo?- rebatou o segundo mais velho do grupo.
—Ah, quanto à isso você não precisa se preocupar, a ova tá bem segura!- afirmou ele mostrando um pergaminho em branco.
—Isso não faz o menor sentido!- interpôs a mulher de cabelos ruivos.
—Se é assim, tudo bem.- desconversou o grisalho, voltando-se para o caminho.
—Pare de agir como isso fizesse algum sentido!- reclamou ela. —E porque você ainda tá carregando esse peixe estúpido?!
—Eu pesquei ele porque eu quero vender. Ouvi dizer que Tekiya paga bem pela carne de peixe, esse garotão aqui pode me reder uma boa grana!
—Primeiro eu descubro com os dois colegas em quem eu confio não passam de tarados tentando tirar proveito de mim, agora eu sou obrigada à ficar com o corpo inteiro fedendo a peixe! E eu ainda estou ficando com a roupa suja!- reclamou ela com um bufo e um crispar de língua, apontando o fato de que a parte de baixo de suas calças, outrora brancas, agora estavam começando a ficar num tom marrom avermelhado de todo o sangue que respingava no chão.
—A roupa nem é sua!- reclamou de volta Yamato, estupefato com a ousadia da mulher que agia como se as roupas que ele havia emprestado à ela fossem dela a partir de agora.
—Eu não sei se Tekiya vai gostar de sab- começou Tanishi, se cortando ao sentir o peso de Menma quando este jogou seu dorso por cima de ombro do pequeno garoto de cabelos verdes, fazendo-o estremecer de dor.
—Se eu disse que é minha, é porque é minha!- afirmou Koiko de peito estufado, porém abafado pela faixa amarrada sobre seu tórax.
E os dois continuaram a trocar ofensas e provocações, mas nem Tanishi ou Menma estavam prestando-lhes a devida atenção.
Tanishi podia sentir o leve gosto de ferro em sua boca quando mordeu seus lábios com força para prevenir que gritasse de dor.
Menma pôs uma mão sobre o outro ombro de seu companheiro em agonia e aproximou-se para sussurrar no pé de seu ouvido.
—Você está se descuidando demais, o seu machucado se abriu e tá manchando a perna de sua calça de sangue.
O rapaz de cabelos esverdeados arregalou de imediato os olhos, seu coração batendo trovejante em sua boca e imediatamente abaixou o olhar para verificar o estrago.
Ou tentou, pois na mera tentativa de abaixar sua cabeça sentiu os dedos de Menma se cravarem em seu ombro com tamanha força que pensou por um momento que ele estava ativamente tentando quebrar-lhe a omoplata.
—Se você olhar eles vão perceber!- repreendeu o Kouzuki. — E você não quer que o seu irmão coruja descubra que o irmãozinho favorito dele está com um buraco no lugar do joelho, não é mesmo?
Um aceno nervoso foi a única resposta de Tanishi, que ainda se recusava à abrir a boca pois sabia que no momento que o fizesse não conseguiria não gritar de dor.
—Pois bem, passe para o meu lado direito, se apoie no meu ombro, tente se manter longe da vista e fique quieto.
Tanishi apenas assentiu enquanto reduzia o passo, se permitindo ficar levemente atrás do grupo para que Menma ocupasse seu lugar ao lado de Koiko enquanto esta estava demasiadamente ocupada brigando com Yamato para que qualquer um dos dois notasse.
—Não é só porque eu tenho seis irmãos inúteis que você pode fincar suas garras horrendas no meu único irmãozinho que presta! Pode tirar o cavalinho da chuva! Até porque meu irmão sequer está preparado para esse tipo de relação, sua megera!- argumentou fervorosamente Yamato, deixando uma Koiko completamente estonteada e sem reação.
Menma não saberia diferir se de raiva ou vergonha, mas definitivamente vermelho era a cor que se sobressaia no rosto da caçula do grupo.
Sobressaindo-se mais até do que seu cabelo.
Ele pôde observar como os lábios da adolescente permaneceram entre abertos, abrindo-se e fechando-se na tentativa de produzir alguma palavra que seja, mas resignando-se em produzir grunhidos inteligíveis de indignação e surpresa.
Era até mesmo engraçado vê-la fechando os punhos, pronta para acertar um golpe em Yamato, mas abortando ao lembrar que era ele quem segurava a carpa que acabaria por cair sobre sua cabeça se ela assim o fizesse, limitando-se à agarrar a barra do Kimono contrário.
—O-o que voc-cê quer di-dizer com isso, seu... !?
De certa maneira era fofo presenciar o constrangimento alheio. Para a sorte da mulher, Tanishi estava completamente a par da cena que se desenrolava literalmente ao lado e que, aparentemente, envolvia uma disputa direta por sua mão.
—Tá, tá, de qualquer jeito, você ainda não disse porque quer deixar o país.- ignorando completamente os insultos e xingamentos de Koiko - que seguia amaldiçoando-o -, Yamato resolveu por mudar drasticamente de assunto da conversa, fixando seu olhar em Menma.
—Eu ainda não terminei de falar com você!- indignou-se a ruiva, tentando chamar sua atenção de volta para as suas insultas.
E uma mera risada áspera foi a resposta de Menma para a pergunta(também ignorando sumariamente a irritada e envergonhada mulher).
—Não é como se eu fosse dever explicações ao Demônio Boêmio de Wano, dentre todas as pessoas.- constatou com um sorriso simplório porém travesso no rosto, olhar perdendo-se sobre as pequenas pedras que se sobressaiam do chão revirado. —Mas...
A melancolia por trás da voz do Kouzuki chamou a atenção até mesmo do ensimesmado Tanishi e a constrangida Koiko.
Um mero resmungo pontou a atenção de Yamato.
E um suspiro marcou a retomada de Menma.
—Você consegue imaginar, Yamato, o que é ser irrelevante? Não invisível e nem inexistente, irrelevante. Você entende o que é ser visto mas mesmo assim não fazer diferença? Não é questão de ser negligenciado pelos meus pais - o que é completamente compreensível dado as circunstâncias em que o país se encontra - mas é não ter diferença entre estar lá ou não. A única diferença real que teria se eu estivesse morto hoje é que teria uma lápide a mais no cemitério da família.
Koiko franziu a testa enquanto que Yamato bufava.
—Frescura. Sua vida é um paraíso comparado com o que qualquer miserável que tenha que trabalhar duro por migalhas que mal conseguem sujar seus dentes. Além do mais você só pode tá de brincadeira pra dizer que sua existência é irrelevante quando você tem um casamento marcado!- apontou ele com desprezo na voz.
Foi a vez de Tanishi de franzir seu cenho enquanto Koiko bufava ao lembrar do casamento arranjado entre Menma e Toko.
—Mera formalidade.- cortou ele com com o lábio inferior levemente contraído em desgosto. —Quando se trata de questões politicas irão vender até mesmo os restos de comida como a salvação da pátria, um casamento arranjado nada mais é do que uma prisão. E não me leve a mal, privilégios quando acompanhados da ausência de direitos, deveres ou responsabilidades só servem para evidenciar a sua irrelevância. É como se dissessem "conte-se em existir ausente do mundo". Eu daria qualquer coisa pra sair da sombra do meu pai.
—Como se Momonosuke fosse deixar.- rebateu Yamato. —Deve ser realmente difícil ser o caçula da família mais poderosa do país... "eu tenho tudo que eu quero de mão beijada e não preciso fazer nada o dia inteiro". Cê não acha que tá reclamando de mais, não?
—Bom, os motivos dele não importam.- cortou Koiko. —Contanto que ele ajude, isso é o que interessa. De qualquer jeito, ele estará morto no momento em que pisar fora da linha.- afirmou ela com um olhar desafiador para o moreno do grupo.
—Oh! Se eu fosse você tomava cuidado, senhorita Pitbull, se olhar com cuidado verá que ele é claramente um guerreiro experiente!- zombou Yamato apontando para as cicatrizes no rosto do moreno.
—Ahn? Isso?- questionou Menma tocando as cicatrizes que trazia no rosto com a ponta de seus dedos.
A maioria partia do lado esquerdo de sua boca e ia em diferentes direções, subindo e descendo pela bochecha, uma começava pelo lado de dentro do nariz, cruzava a boca e ia até onde terminava o queixo, roçando o pescoço.
Haviam ainda duas que cortava a bochecha a direita como bigodes de gato e uma última cortava a testa de um lado a outro horizontalmente.
—Isso são alguns acidentes de treino.- continuou deixando seu devaneio, fechando os olhos, abrindo um sorriso leve e inclinando a cabeça de sua maneira característica. —Se quiser posso te arranjar algumas, elas lhe cairiam bem.
Imediatamente a cara do grisalho se contraiu.
—Nah, passo, isso não vai me ajudar muito com as garotas.- respondeu ele com claro desgosto.
—Garotas? Eu pensei que você só se interessasse por uma garota...
—Eu não tenho dona, sou de todas e todas são minhas!- respondeu ele num comentário que não interrompeu o raciocínio de Menma, mas ganhou uma careta de desgosto de Koiko.
—O que mais poderia interessar as mulheres do que as provas de que se é um guerreiro forte e honrado?- seguia ponderando.
—Muitas coisas!- argumentou a mulher entre os homens.
—Eu por inteiro.- argumentou também Yamato, que foi recebido com um "sério? você dentre todas as coisas?!" preenchido pelo desprezo de Koiko.
—De qualquer maneira...- retomou Menma assumindo um sorriso malicioso. —A sua "garota" sabe disso? Se não cuidar ela vai acabar parando na cama de um outro homem...
—Aham, aham, tá bom, se você diz, Scarface, eu confio em você.- rechaçou ele por fim, parando de andar.
Respirou fundo e arremessou a carpa que trazia em direção à algumas árvores.
Seus companheiros mal tiveram tempo de reagir quando uma pequena chuva vermelha manchou suas roupas brancas de sangue e excrementos enquanto que o pesado cadáver empurrava, entortava e quebrava as arvores sobre as quais fora jogado, abrindo uma clareira.
Uma nuvem de folhas e lascas de madeira subiu, fazendo com que, por segurança, Tanishi - ironicamente - se escondesse atrás de Menma.
A luz vermelha do sol poente lentamente trouxe calma para o caos repentino e os três puderam ver que a carpa havia aterrissado logo atrás de uma colina que ultrapassava o corpo falecido por alguns metros - o que até então eles não imaginavam que fosse possível.
A carranca na cara de Koiko não podia expressar mais a sua insatisfação.
—Você pode me dizer, porque diabos você arrastou essa coisa até o meio da floresta se você só ia deixar largado no meio do absoluto nada?!- reclamou ela, pisando sobre as escamas do peixe que havia sido morto aquela manhã.
Dava pra dizer, mesmo que ela não fosse especialista em pescados, que arremessar carne fresca no sujo chão de uma floresta não era exatamente o jeito mais adequado de tratar uma possível fonte de alimento.
—Você reclama de mais.- reclamou ele. —Não daria pra entrar na cidade com ela.- disse enquanto dava a volta na carpa e começava a escalar a colina que estava logo atrás dela.
—Mas pra que que você precisava trazer isso em primeiro lugar?!- seguia discutindo Koiko, escalando a colina logo atrás do homem de cabelos alvi-verdes.
Menma parou por um tempo, olhando na direção da floresta que os circundava.
Eles estavam claramente sendo vigiados.
Ainda assim não disse nada, apenas seguiu colina acima, Tanishi se apoiando em seus ombros devido ao ferimento no joelho.
—Eu já disse! Eu vou vender ela pro Tekiya. Um peixe desse tamanho vai dar um bom trocado!- reafirmou ele.
—Devo te lembrar, Yamato, que é mais fácil você conseguir, por algum milagre, casar com a Hyori do que você vender um peixe que você pescou "ilegalmente" pro homem que controla o mercado de açougue e pesca de Wano?- perguntou Menma levemente atrás da dupla.
O comentário rendeu um bufo irritado de Yamato.
—E-ele tá certo! Vo-você não deveria mexer com essa gente...- alertou com a voz quase muda o mais novo dos Hi'Kitsune.
Yamato chegou a abrir a boca, mas a fechou de imediato.
—É sério, você pode achar que consegue lidar com eles sozinho, mas você nunca pode subestimar os irmãos problema.- reafirmou Menma.
—Aham. tá bom, duas caras, será que você poderia, por favor, calar a porra da boca e apertar o passo?- reclamou parando no topo da colina e olhando pra dupla retardatária.
Menma não tardou em se afastar de Tanishi, esse por sua vez quase caiu ao perder sua muleta.
—E se eu fosse você eu colocaria a máscara. Já estamos chegando.- afirmou voltando seu olhar na direção oposta dos dois com um sorriso sublime no olhar.
De imediato o ar faltou para Menma.
Ele havia pensado que se tratava de uma cidade pequena, uma vila rebelde recém formada.
A realidade era que alguns quilômetros à sudeste, numa colina levemente maior da que eles estavam pisando neste exato momento, era possível ver que alguns navios piratas tão grande quanto os navios de guerra da marinha jaziam completamente destruídos e partidos, alojados na terra próximos ao topo rochoso da dita colina.
O que era de tirar o fôlego, no entanto, era a cidade que se erguia ao redor dele.
Diversas casas de diferentes tamanhos e formatos se alastravam em todas as direções a partir dos navios já citados, todas elas com seus tetos de telha pintados de azul, fazendo parecer que um profundo mar se abrira no meio da floreta, em plena terra firme.
A maneira como cada casa era diferente das outras em tamanho e no tom de azul sobre seus tetos parecia quase que propositalmente desenhada para simular as ondas do mar.
Tudo isso terminava abruptamente numa barreira murada que cercava toda a extensão fronteiriça da cidade, fazendo parece como a espuma de uma poderosa onda.
—Eu lhes apresento Aoi Shinkai - Shinkai pros íntimos. Uma cidade que começou como uma pequena vila que se ergueu ao redor das ruínas de navios quebrados que estavam ali desde a batalha de vinte anos atrás.
Menma olhou estupefato para Yamato que aparentemente agiria como o guia do grupo.
—Ela deve ter uns seis, oito anos, sei lá. Tem uma população de... não sei, quinze cabeça? Não sou bom em matemática. Nunca me importei muito com as atrações turísticas, vocês me conhecem, prefiro andar pelos becos sujos do que pelas ruas populares. Ouvi dizer que eles tem um bom comércio, mas nunca fui de fazer compras. O que importa é que ela tem recebido uns investimentos pesados da nossa duplinha Yakuza favorita.
Um sorriso travesso se abriu no rosto de Yamato enquanto que Menma desviou o olhar para encarar Koiko, cujo os olhos seguiam fixos e claramente espantados também com o absurdo tamanho da estrutura que se mostrava diante de si.
—E é claro, ela é provavelmente o maior núcleo rebelde do país de Wano, como vocês podem perceber pelos telhados azuis - nas cores da bandeira da rebelião. Favor colocar suas máscaras e tentar não chamar muita atenção. Até mesmo as crianças dessa cidade te reconheceriam, senhor cicatriz-de-treino-faz-sucesso-com-as-garotas-mas-eu-continuo-virgem, e ninguém vai desperdiçar a chance de cortar sua linda gargantinha.
Menma voltou a encarar a cidade, ignorando completamente a provocação de sua contra parte enquanto abaixava a máscara de raposa que trazia em sua testa.
Nada disso fazia sentido.
Se Shinkai fosse uma cidade pequena, Menma conseguiria entender perfeitamente bem como ninguém sabia que ela existia até agora, mas não.
Shinkai era gigante. Seu tamanho rivalizava com a própria Capital das Flores, então, como que ela podia permanecer fora do alcance dos ouvidos ou olhos de sua família por tanto tempo?
Não.
Nada disso fazia sentido algum.
Ele devia ter desconfiado antes.
Não fazia sentido que uma cidade pequena fosse receber negócios de Bakuto e Tekiya.
Principalmente o último.
Talvez Bakuto abrisse um casino ou outro numa cidade pequena que tenha pouco mais de um punhado de moradores, mas Tekiya? Não, Tekiya não. Ele já era experiente demais pra se precipitar e já controlava dinheiro demais pra se desesperar à ponto de se interessar por qualquer pedaço de chão que seus olhos pudessem encontrar.
Pros dois abrirem negócios em algum lugar, o negócio em questão teria que ser lucrativo.
Não bastava pagar o investimento necessário pra abrir e operar o negócio em questão.
Então definitivamente fazia menos sentido ainda.
Não fazia sentido que Yamato soubesse desse lugar antes de Raizou.
Um único homem não poderia ser mais inteligente que o serviço de inteligência da dinastia, podia?
Talvez se a cidade tivesse sido criada a pouco tempo, quem sabe.
Mas esse não era o caso e essa não era a questão.
A questão é que uma cidade rebelde conseguiu se manter anônima ao clã Kouzuki por quase uma década e eles não tinham sequer noção de que isso poderia acontecer.
Oito anos.
Quantos rebeldes permaneceram simplesmente invisíveis para eles durante todo esse tempo porque ninguém desconfiou que uma cidade tão grande quanto a capital do pais estava se erguendo clandestinamente? Qual o tamanho da força rebelde que estava concentrada aqui? Eles poderiam sequer pensar em enfrentar essa quantidade de inimigos? Ele duvidava seriamente disso.
Inferno, eles estavam completamente cegos para o que acontecia dentro de seu próprio país.
Só havia uma explicação plausível pra isso tudo.
Havia um traidor.
Claro que eles já sabiam disso há alguns anos, mas a confirmação ainda soava absurda aos olhos de Menma.
Era apenas surreal demais que alguém de dentro estivesse apunhalando-os pelas costas.
O lado bom, se é que havia algum, é que agora eles sabiam onde o traidor estava.
Cinco anos procurando por qualquer pista de quem poderia ser, agora eles finalmente tinham algo concreto que os levaria diretamente ao desgraçado, ele sendo quem quer seja.
Se uma cidade desse porte passou tantos anos fora dos faróis da dinastia isso só poderia dizer uma coisa: ou rebelião estava muitos passos a frente deles, ou o traidor era alguém da inteligência.
Caso seja a primeira opção, os rebeldes estavam recebendo ajuda externa enquanto eles estavam apenas batendo cabeça, mas ele duvidava disso.
Um grupo rebelde que ergue a bandeira do ultranacionalismo e que Wano deveria ser apenas para os cidadãos de Wano com certeza preferiria a morte à receber ajuda externa.
Sem contar que a mera suspeita de que um estrangeiro esteja ajudando a rebelião acabaria com o discurso de "Wano por Wano para Wano".
No segundo caso, o primeiro nome que lhe vinha a cabeça era Kaguya Raizou.
A testa de Menma chegava doer, tamanha a careta que ele fizera por debaixo de sua mascara só de pensar em Raizou como um traidor.
Mas ele era o chefe do grupo de espionagem e informação dos Kouzuki, nada deveria passar por ele.
Por outro lado, sendo justo, cabia ao setor de reconhecimento e mapeamento - outro braço do setor de inteligência - encontrar focos rebeldes como estes, e não tinha como eles não terem percebido isso.
Era dever deles checar cada palmo do território do país de Wano todos os anos, como eles poderiam cometer um erro desse tamanho?
Não havia como o traidor não estar no setor de reconhecimento, certo?
O coração de Menma afundou com a percepção do que isso verdadeiramente significava.
Ainda podia ser qualquer pessoa dentro desse departamento, disse ele para si mesmo, mas em seu coração ele já sabia o nome do culpado e por isso a mais profunda tristeza tomava-lhe a alma.
Ainda assim, não era momento para agir com o coração, mas sim com a mente.
Ser sentimental agora só o atrapalharia.
Finalmente tirando os olhos do chão lamacento que sujava suas sandálias, Menma encarou os homens de feições mal encaradas em Kimonos surrados que os observavam e gritavam perguntas por de cima de um grande portão circular, focados numa conversa que caia em ouvidos surdos para ele.
O que deveria verdadeiramente preocupa-lo agora é: quantas cidades como essas ainda haviam escondidas pelo país?
E com um suspiro ele viu o portão dos rebeldes se abrir para ele e seus amigos.
"O que você fez, Ju-san... ?"
Olhou a lua para tentar acalmar a dor de seu coração conforme o portão se fechava as suas costas.
Não havia mais volta.
Tampouco havia tempo pra se arrepender.
—Vai demorar muito ai, ou infeliz?!- questionou Yamato num deixe de irritação.
Menma fechou os olhos, respirou fundo e voltou a encarar seus amigos que o esperavam mais a frente, e com eles a cidade que o mataria se pudesse.
—Desculpe-me, eu estou um pouco distraído.- respondeu em tom morto enquanto voltava à andar.
Ele já estava dentro, o mínimo que poderia fazer e destrinchar cada pequeno pedaço dessa cidade, revirar cada vírgula e descobrir o que pudesse para ajudar sua família.
E assim os quatro recomeçaram sua caminhada à passos largos, porém indecisos, uma vez que era Yamato - em toda a sua glória com uma mascara de Oni e vestes brancas manchadas de marrom - o responsável por guiar o grupo nas ruas clandestinas.
E ele o fazia da maneira mais ineficiente possível, tomando caminhos longos, passando por meandros desnecessários e dando voltas sobre voltas apenas para trocar meias palavras com conhecidos.
—Ao menos as ruas são boas...- comentou baixinho Tanishi por debaixo de sua máscara de lesma, reparando que, ao contrario do que ele imaginara, o chão por debaixo de seus chinelos era composto de pedras polidas e bem encaixadas umas nas outras, ao invés da terra batida e seca que ele suporá que viria a ser o caso.
—Pelo menos isso, andei em terra e sujeira o bastante por um dia.- reclamou Koiko, sua voz saindo estranha através da esquisita - porém irônica - mascara de carpa.
Ao menos Yamato garantira que não havia nenhuma relação entre a mascara e cadáver que viria a ser arrastado por horas numa floresta.
Ainda assim, Koiko não aceitou sem dar-lhe um soco.
—É claro! Não é só porque estamos sobre a tirania de opressores que não podemos ser limpinhos!- comentou o já citado Oni.
—"Estamos"?- questionou sugestivamente Menma, enquanto erguia uma única e solitária sobrancelha por debaixo de sua máscara de raposa.
—Calado, Kouzuki opressor!- foi a resposta curta e rápida do demônio.
De imediato Tanishi passou a olhar ao redor, temendo por reações ruins dos populares enquanto que seus companheiros se envolviam numa discussão geopolítica, filosófica e social sobre a legitimidade de um governo que começou como um golpe em cima de um governo que começou como um golpe em cima de um governo que começou com u...
(não são todos os governos assim?)
E ele fora recebido com alguns quantos olhares irritados dos poucos ouvintes que ali haviam.
O que o incentivou a, mesmo manco, acelerar o passo de seus colegas para um lugar um pouco menos movimentado.
O que não adiantou de nada.
E as ruas eram bem movimentadas.
Toda e cada uma das ruas dessa cidade parecia haver ao menos um par de ouvidos para o grupo.
Mesmo nas mais estreitas era possível encontrar sempre pelo menos um punhado de pessoas passando.
As vielas onde os quatro mal cabiam lado a lado eram as únicas passagens desertas que encontraram, mas ainda assim era possível sentir o olhar curioso que descia pelas janelas e espiava pelas portas.
Nas ruas mais largas, por onde o grupo por vezes tinha que se espremer entre uma parede e uma charrete de passagem, eles estavam sempre esbarrando em um ou outro transeunte dentre as dezenas que se espremiam entre a rua, a calçada, as pessoas e as lojas que ali haviam.
Para o seu alivio, no entanto, logo eles chegaram nas grandes avenidas, por onde multidões se misturavam com charretes e animais, a aglomeração era tamanha que mal se podia enxergar o que havia mais a frente ou o que havia atrás.
Mesmo que ainda fosse possível ouvir seus companheiros argumentando uns contra os outros sobre coisas de estado, ali suas vozes já não se sobressaiam às das pessoas ao redor e eles tinham, enfim, alguma privacidade por ruído.
Com a tensão agora aliviada, Tanishi voltou sua atenção para as coisas e os detalhes do cotidiano, como ele sempre costumava fazer.
—Eles são bem organizados.- murmuro ele mais pra si mesmo do que qualquer coisa, apesar dos ouvidos atentos de Menma terem captado as palavras que capturaram sua atenção - mesmo que os desatentos olhos de Tanishi não tenham captado esse fato.
—Me pergunto como eles tiveram a ideia pra organizar estradas assim...
O olhar vagante da pequena lesma analisou meticulosamente a impecável organização do lugar feito única e exclusivamente para que as pessoas transitassem.
A estrada era dividida em três porções largas de terra de trinta e três shakus* cada, provavelmente para que pessoas armadas com espadas e armas longas possam caminhar normalmente e desembainha-las, se preciso.
As seções laterais eram dum tipo estranho de rochas cortadas, cimentadas e polidas à perfeição, de maneira à eliminar qualquer desnível tão bem que era difícil imaginar como alguém poderia tropeçar por ali.
Apesar de que era estranha a mistura de tons em azul e branco que predominava em ambas as partes de chão.
A faixa central, por outro lado, era cerca de três ou quatro pés abaixo do nível das porções vizinhas, com muretas que batiam pouco abaixo da altura do peito de Tanishi para evitar acidentes, e era totalmente recoberta com uma generosa camada de terra fina, tornando-a mais adequada para o trotar de cavalos e outros animais.
O que era mais surpreendente, no entanto, era como essas faixas organizavam o fluxo da multidão numa região tão agitada.
Do lado esquerdo, aonde eles estavam, aparentemente, as pessoas não podiam ir para o Norte, obrigando todas aquelas pessoas rumarem em direção ao Sul, em direção à praça principal onde os navios quebrados estavam.
Já no lado direito da avenida era o oposto, as pessoas só podiam seguir rumo ao Norte, nunca ao Sul.
Até mesmo o trafego de animais e montarias parecia seguir essa lógica, só que inversa: na parte mais à esquerda, enquanto as pessoas da seção vizinha só podiam ir para o Sul, as montarias só poderiam ir para o Norte, enquanto que do lado mais à direita, enquanto as pessoas iam para o Norte as montarias trotavam para o Sul.
Isso inteligentemente permitia que as pessoas pudessem voltar rapidamente, já que a cada tantos passos o parapeito que impedia que as pessoas - principalmente as crianças - caíssem ou invadissem à pista dos cavalos reduzia drasticamente, permitindo que as pessoas pudessem pegar carona à alguns cavaleiros e voltar por um trocado.
Para quem quisesse trocar de pistas por algum motivo, tinha uma chance a cada três entradas para ruas laterais havia uma ponte que cruzava a avenida em si de um lado ao outro, criando sobre a mesma uma agradável sombra que era iluminada apenas por algumas lanternas penduradas na parte de baixo das ditas pontes.
Tanishi realmente havia se encantado pela beleza da cidade.
Por outro lado, toda a arquitetura da cidade serviam apenas para enervar e preocupar Menma cada vez mais.
Os quarteirões dessa avenida principal eram constituídos desde casas de pequeno-médio porte, até prédios, alguns com bons vinte andares, todos variando de formato, sem muito critério, julgava ele.
A questão era a disposição em que isso acontecia.
Os prédios mais altos ficavam na parte mais baixa e afastada do centro da cidade - que ficava no topo da colina - e conforme subiam para a região alta da cidade os prédios iam gradativamente reduzindo sua altura.
Isso, percebia ele, era o que dava a impressão de que tudo não passava de um gigantesco oceano que inundou a floresta, como a rebelião inundaria Wano, ele imaginou que fosse parte da simbologia implementada aqui.
Era visível também como isso parecia criar uma espécie bem organizada de divisão social, onde as casa mais próximas à praça central eram menores, porém claramente de baixa densidade e num padrão mais elevado que as mais distantes.
Essa divisão era tal que em determinado ponto, na metade do caminho até a praça, as ruas laterais eram quase tão longas quanto a avenida principal em si, criando uma espécie de ramificação que parecia promover uma maior agilidade no fluxo urbano, ao mesmo tempo que servia como um ponto de referência em que marcava a parte mais abastarda da parte menos abastarda.
Isso era ainda mais perceptível a partir do momento que existia uma espécie de segundo andar da rua inteira que ia exclusivamente dali por diante.
É claro que isso não parecia fazer tanta diferença a partir do momento que aparentemente o térreo de todas as casas da avenida eram dedicados à atividade comercial, passando a ser residenciais de alta, média e baixa densidade do primeiro andar pra cima.
O que era verdadeiramente espantoso em toda essa organização era o fato de que para uma cidade se tornar tão organizada ou ela é muito antiga e passou por inúmeros processos de mudanças através das eras, ou ela foi erguida assim desde o começo.
Era tudo planejado.
Quem quer que tenha sido o fundador de Aoi Shinkai, sabia o que estava fazendo antes mesmo de colocar a primeira pedra sobre o chão.
Não tinha como isso não ter tomado pelo menos alguns quantos anos de planejamento antes mesmo de começarem.
Yamato havia dito que a metrópole clandestina existia há pelo menos seis anos, podendo chegar a oito, contando com os anos que deveriam ser necessários para planejar tudo isso e conseguir os materiais para fazê-lo sem serem notados, o processo de concepção desse lugar deveria existir há no mínimo doze anos.
E eles só perceberam que havia um traidor há cinco anos.
A seguinte questão que vinha a mente de Menma eram quantas.
Quantas pessoas viviam em Aoi Shinkai nesse exato momento?
Destas, quantas eram rebeldes e quantas não eram?
É claro que independente de serem ou não dos que empunham lâminas à eles, todo e qualquer residente de Shinkai não era nada senão traidor.
Talvez não o pior tipo de traidor, mas um traidor não por menos.
E os nascidos dessa cidade infelizmente carregavam em suas costas os crimes de seus pais. Uma dor que ele podia simpatizar, de certa forma, mas algo que não apagava os pecados que manchavam suas almas.
Nenhum deles era confiável e todos eram hostis em potencial.
E cada um deles adoraria a oportunidade de cortar a cabeça de um Kouzuki ou dois como ele bem se recordava serem as palavras de Yamato.
A seguinte questão, no entanto, era saber como diferenciar entre aqueles já tomaram o caminho da espada contra a dinastia e quantos não passavam de vadios que optaram por viver entre os ratos do país.
A princípio, não parecia ser possível descobrir qualquer diferença visível nas vestimentas das pessoas.
Claro que seria fácil identificar um rebelde pelo excesso de azul em suas cores, mas aparentemente tudo era azul em Shinkai.
Não por menos o nome da cidade era Aoi Shinkai.
Não era surpresa que todos vestissem algum tom da maldita cor, no fim das contas.
Talvez a diferença estivesse na separação de classes? Ele não saberia precisar.
A maior parte das pessoas parecia se contentar em trajar roupas surradas, sem se importar muito com moda ou estética. As poucas pessoas que pareciam minimamente bem vestidas e com trajes bem cuidados acabaram por ser os comerciantes.
Sequer era possível para ele assumir que aqueles que portavam espadas eram rebeldes, uma vez que, novamente, muitos comerciantes pareciam porta-las também.
A essa altura ele já suspeitava que os rebeldes dessa cidade haviam abandonado suas ideologias anti-Kouzuki se tornaram comerciantes.
Uma noção que seria decepcionante, conveniente e divertida caso fosse real.
Apesar da surrealidade dessa ideia, no entanto, a maneira como o comércio era feito nessa avenida o fazia repensar mais de uma vez se essa noção seria realmente estapafúrdia.
Afinal de contas, quem em sã consciência estaria gritando ofensas e ameaças para coagir o ouvinte alheio à comprar de suas mercadorias?
Menma já havia perdido as contas de quantas vezes tinham lhe chamado de coisas como panaca, trouxa, paspalho, salafrário, otário, corno, burro, que eram as palavras mais gentis usadas pelos vendedores.
"HEREGES DO DEMÔNIO QUE ARDERÃO NAS ETERNAS CHAMAS DO INFERNO" foi o mais inusitado que ele havia ouvido, mas ele não demorou pra perceber se tratar de alguém tentando vender uma nova religião de uma maneira um tanto quanto agressiva. Sem muito sucesso, se ele fosse apostar pela capela caindo aos pedaços... considerando a baixa adesão, não era surpresa que ele gritasse com desespero do topo de seus pulmões.
Talvez ameaçar todos, dizendo que sofreriam pela eternidade não fosse a melhor maneira de convencer alguém à orar para seu deus, afinal das contas.
Apesar disso, no entanto, parecia funcionar incrivelmente bem para todas as outras lojas.
—Um pergaminho por um Koku Shaku*! Sete por meio Koku Go*! Quinze por um Koku Go! Coleção de poesias ou estudos de autores locais por apenas um Koku Shou*! Se não lhes interessar, saibam que vós serdes a escória iletrada que se alastra pelas raízes de nosso país, apodrecendo nossa cultura e empoderando os despostas que arrasam com nossa terra! Isso mesmo! Serdes vossa a culpa de que o país esteja aos poucos sendo vendido para a escória estrangeira!
Gritava uma espécie de bibliotecário com a maneira mais elegante e politizada que ele já tinha ouvido alguém ofender outra pessoa desde que eles haviam entrado naquela avenida.
Ele ainda vendia bem, julgando pelo movimento da pequena biblioteca que se resumia à uma estante recostada na parede lateral de uma loja maior com alguns livros e pergaminhos distribuídos entre suas prateleiras enquanto outros permaneciam guardados em bolsas no chão ao redor.
A ideologia, a moeda, as ofensas e o kimono azul celeste recoberto com uma bata branca limpa e bem alinhada. Com certeza esse era o rebelde mais recatado e fino que ele já vira.
—Oni-san!- uma voz um tanto quanto juvenil.
Não surpreendeu Menma que logo após o chamado o que parecia ser uma criança de oito à nove anos de idade surgiu do seu lado esquerdo, correndo e saltitando feito uma lebre e se jogou nos braços de Yamato.
—"Oni-san"!?- questionou Koiko.
—O-Nami-chan!- respondeu Yamato com o mesmo entusiasmo da garota.
—Eu sabia que era você, Oni-san! Por que você demorou tanto pra voltar?- seguiu perguntando a criança.
—Namihara! Namihara!- uma senhora que aparentava ter algo entre dez à onze vezes mais dias de vida que a criança seguiu atrás da mesma, chamando-a enquanto se mantinha de pé com uma bengala com algumas moedas de prata penduradas por sua extensão.
—O-Kin'nawa-bachan!- respondeu Yamato uma vez mais, fazendo uma sobrancelha se erguer pode de trás da máscara de Menma.
—Oni-kun-kun! Há quanto tempo! Já falei pra me chamar de Kin-baba!- advertiu a senhora com um sorriso cheio de espaços vazios entre os quatro ou cinco dentes que ali haviam.
—Por que você demorou tanto pra voltar?!- tornou a questionar a criança, tornando-se impaciente.
—O quê? Eu nem demorei tanto tempo! Onde está sua mãe? Como ela está? Você tem obedecido ela direitinho como tínhamos conversado da última vez?- com um forte tom de rosa nas bochechas a criança acenou forte com a cabeça para a última pergunta antes de abrir a boca para responder as demais.
—Desde quando Yamato tem uma filha?- perguntou Menma para Tanishi num tom zombeteiro.
—Quê?! Eu sou tio?!- espantou-se ele com a possibilidade, ao que Koiko bufou.
—Ia acontecer hora ou outra!- argumentou ela com desprezo na voz.
De imediato a velha Kin-baba virou-se para os três com nada além de carnificina no olhar.
—O que vocês estão sussurrando aí?!- perguntou a mesma de maneira ameaçadora.
O que casou perfeitamente com o desaforo de Koiko.
—Ahn? Algum problema, velhota?!- de alguma forma a carnificina no olhar de Koiko parece ter trespassado sua máscara e encontrado com a carnificina no olhar de Kin'nawa, pois no meio do caminho entre as duas aparentemente uma guerra civil parecia se erguer e ambas pareciam prontas para um duelo.
Menma estava quase certo de que finalmente Koiko encontrou um parente biológico, como ela sempre quisera.
—Oni-aniki!- por outro lado, enquanto uma pequena multidão parecia se aglomerar para assistir enquanto Koiko e Kin se digladiavam, outra parecia se aglomerar ao redor de Yamato enquanto este parecia matar a saudade, aparentemente, cada morador que havia naquela metrópole.
—Por onde tem andado, aniki?!- quem perguntava era um homem moreno e de kimono aberto para exibir os mirrados músculos e a pequena Tanto.
—Oh! Tenzuku!- cumprimentou Yamato, que à essa altura já carregava a pequena Namihara nos ombros enquanto outras crianças pareciam se abraçar à suas pernas e braços, homens e mulheres se acumulando ao seu redor. —Foi mal não ter vindo antes! Passei uns dias em Aokaze! Você tem tirar uns dias de férias por lá! É inesquecível!
O cenho de Menma se fechou.
—Kibi, ahn?- o homem refletiu por um momento antes de negar. —Nah, até que a capital azul de lá é bonita, mas eu não gosto muito do clima. Sou mais o tipo de pessoa que prefere um bom chá e numa manhã fria em Ringo, mas Aoi Yuki não é lá uma grande capital...- respondeu um tanto decepcionado.
—Claro que não! Aoi Yuki só não é mais nova que Aoi Shirin, em Kuri! Compensa mais ficar nas pequenas vilas do que nessas capitais azuis.- retrucou casualmente Yamato.
Shirin? Kaze? Yuki? Vilas pequenas? Qual era o real tamanho do braço invisível da rebelião?
—ONI!- de repente uma voz verdadeiramente irritado foi ouvido e repentinamente a multidão na avenida se abriu entre eles e um grupo de homens com katanas desembainhadas alguns metros atrás deles.
Quem os chamara era um homem loiro com um cavanhaque por fazer.
—Ko-koba! Como vai!- respondeu nervosamente Yamato, retirando Namihara de seus ombros e dando alguns passos hesitantes para trás.
—Quem são?- perguntou num tom mortífero Menma, verdadeiramente tirado do sério pelo que ouvira.
—Um agiota pra quem eu fiquei devendo... !-
—Você o quê?!- espantou-se Tanishi, amendrontado.
—Ótimo.- foi a única resposta de Menma enquanto dava um passo na direção dos homens hostis.
A possibilidade de ver sangue não deveria anima-lo tanto, mas ele já havia visto azul demais por um dia.
—Eu seguro eles, aniki!- garantiu Tenzuku se colocando na frente de Menma.
—Ótimo, valeu!- agradeceu o demônio covarde, puxando Menma pela gola de seu kimono, dando meia volta e correndo na direção da praça central.
Seu irmão já estava em seus braços e ele agarrou Koiko com a mão livre no meio do caminho, tirando-a de sua luta enquanto fugia.
Claro que ele não perdeu a oportunidade de agarra-la pelos seios.
Claro que ela não perdeu a oportunidade de esbofeteá-lo todo o caminho de onde estavam até a praça.
E assim eles foram colina acima, arrastados pelo devedor enquanto que em seu encalce era possível ouvir os gritos e a confusão conforme o agiota e seus homens avançavam na mesma direção do grupo.
Em determinado momento as pessoas pararam de gritar e tudo ficou para trás, mas nenhum deles - talvez Tanishi - realmente pensou que o problema tinha se resolvido.
Todo o contrário, na realidade.
Um quarteirão antes deles atingirem a praça, pouco depois da avenida se mesclar com outras duas avenidas idênticas, eles foram surpreendidos quando do nada, no meio da multidão, a katana de seus perseguidores raspou pelo rosto de Yamato.
—PEGUEM ELES!- gritou o agiota em pessoa, quem havia montado uma emboscada.
Após desviar do primeiro ataque, Yamato simplesmente pisou na cara de seu segundo atacante e se levantou por cima de todos eles, pisando na cabeça dos capangas e pessoas comuns até chegar na praça.
Esta era, na realidade, um amplo espaço aberto repleto de caminhos em meio ao solo quase natural da colina, com apenas alguns toques de vegetação colocados aqui e ali na forma de arbustos e arvores de pequeno porte por entre as pedras que - no ângulo em que se encontravam, devido à inclinação da própria colina - serviam como pequenas varandas.
Também era possível notar - mesmo com a fraca iluminação que os postes ali proporcionavam - que o solo, outrora rochoso, havia sido coberto por uma camada de grama para as pessoas pudessem se sentar confortavelmente.
Haviam também alguns bancos e pequenas barracas vendendo comida.
Mas não havia muito tempo para admirar o lugar, uma vez que seus perseguidores ainda estavam em seu encalce.
Nessa nota, Yamato seguiu subindo a colina, pegando um caminho lateral para desviar das ruínas do navio quebrado - que aparentemente não eram acessíveis para a população - e se jogou, descendo ladeira abaixo o lado que até agora ainda era uma completa incógnita para os três que ainda não conheciam a cidade.
Eles só não esperavam se tratar de um penhasco.
