Quando cheguei, alguns poucos clientes ainda estavam por lá. Sirius empilhava algumas cadeiras. Um sinal claro de que estava perto de fechar. Parei em uma das pilastras, próxima a ele.

- Se você soubesse a minha história você não me acharia tão interessante. Acredite.

Ele se assustou ao ouvir minha voz. Mas quando se virou eu vi que seu rosto relaxou ao me ver.

- Eu duvido.

Eu me aproximei e ele se recostou no balcão do bar.

- Então você conhece o James?

Ele riu.

- James é meu irmão. – Ele disse com um sorriso no rosto. - A anos ele me fala da ruiva dele. Não sei como não desconfiei antes.

- Você largou a faculdade?

Ele ergueu uma sobrancelha.

- Alguém andou perguntando sobre mim? – Um meio sorriso surgindo em seus lábios.

Dei de ombros.

- Você fez o mesmo. – Disse retribuindo o olhar.

Nos encaramos em silêncio por um momento. Então ele continuou.

- Ok. Eu te digo o que quiser saber. Mas eu quero respostas também. E amanhã a gente pode fingir que esqueceu tudo. Amnésia. Eu tenho a impressão que você tem muita coisa pra desabafar. Confesso que eu também tenho.

Eu estreitei os olhos.

- Com uma condição. – Ele me devolveu um olhar intrigado. - Quero o melhor sexo da minha vida depois.

Ele gargalhou.

- Combinado. – Ele disse me estendendo a mão. Quando a apertei ele me puxou pra perto. Muito perto. - Mas você vai ficar a noite inteira.

Eu suspirei com a proximidade. E com o sorriso sacana que pairava nos lábios dele.

- A única chance de eu ficar a noite inteira é se você me mantiver acordada.

O sorriso dele se alargou.

- Aceito o desafio.

- Porque você saiu pra viajar pelo mundo?

Nos acomodamos no balcão do bar, agora vazio. Os últimos empregados já haviam se despedido e fechado a porta ao saírem.

- Ei, pega leve. Precisamos começar devagar. – Sirius pegou uma garrafa com um whisky fino e dois copos. - Uma pergunta de cada, combinado?

Vi ele servir doses generosas e me entregar um dos copos. Quando peguei de sua mão, ele não soltou.

- E eu começo.

Era justo.

- Ok.

Brindamos a isso e tomamos o primeiro gole juntos. Agradeci a queimação do líquido âmbar descendo pela minha garganta. Eu precisava daquilo.

- Então, qual é a história com o amigo do James?

- Ex-namorado. Um ano e oito meses juntos. Terminamos a cinco meses. – Falei a verdade, da forma mais sucinta que eu conseguia. - O que você estudava na faculdade?

- Direito. – Ele sequer piscou. - Porque terminaram?

- Me toquei que eu merecia mais. – Nos encarávamos agora. - Porque Direito?

- Tradição de família. – Sua expressão era indecifrável. - Porque ele ainda te chateia tanto?

- Porque é a quarta vez que ele me procura depois do término e me irrita ele achar que tem o direito. – Sirius assentiu em aprovação. - Porque você largou a faculdade?

- Não era o que eu queria pra minha vida. – Sirius tomou um longo gole do seu whisky antes da próxima pergunta. – Você o amava?

Eu suspirei.

- Amei. – Admiti. E me surpreendi ao perceber que não foi tão difícil admitir aquilo em voz alta. – O quão próximo você é dos seus pais?

Ele demorou um pouco mais pra responder essa.

- Não muito. – Eu vi um brilho frio passar pelos seus olhos. Então um sorriso maroto apareceu. – Você pensa em se casar um dia?

- Não exatamente. – Eu abri um leve sorriso. Então voltei para minha pergunta original. – Porque saiu pra viajar?

Eu vi o sorriso sumir do rosto de Sirius.

- Eu precisava me distanciar da minha vida aqui.

Ele abaixou os olhos para o próprio copo. Eu fiquei aguardando a minha pergunta. Mas ela não veio. Eu sabia que estávamos somente aquecendo. Nenhum de nós tinha respondido coisa alguma de fato.

- Me desculpa pelo meu comentário que fiz sobre o cara ter partido seu coração. Foi inapropriado. Você devia falar disso quando e se tiver vontade.

Aquelas palavras derreteram algum pedaço esquecido dentro de mim.

- Não se preocupa com isso. – E eu fui sincera. – Eu peço desculpas também por ter sido grossa com você. Eu realmente tava chateada com o cara e você não tinha nada a ver com isso. Eu não esperava que ele viria hoje, me pegou desprevenida.

Ele levantou os olhos pra mim e eu senti como se ele tivesse enxergando mais de mim do que eu queria deixar transparecer. Me lembrou Lily, novamente.

- Quero brincar de outra coisa. A gente vai fazer suposições sobre o outro. Se estiver certo, o outro bebe.

Eu gargalhei, mas concordei com a brincadeira.

- Eu começo. – Ele estreitou os olhos na minha direção, como se quisesse arrancar as verdades de mim. – Você é extremamente desapegada, mas aconteceu alguma coisa e você achou que precisava ter alguém.

O sorriso morreu nos meus lábios. Não disse nada, mas virar minha dose de whisky foi a confirmação. Minha vez.

- Ter largado a faculdade é o motivo de você não ser mais próximo dos seus pais.

Sirius bebeu sua dose sem hesitar e serviu nossos copos novamente.

- Você não tem raiva do cara. Tem raiva porque ele te faz lembrar um lado seu que você quer a todo custo esquecer que existiu.

Ele tava ouvindo minha conversa com a Lily? Não é possível.

- Você devia ser psicólogo. – E virei a minha dose.

- Eu te disse que sou bom com as pessoas.

- Você não cursou Direito só pra agradar seus pais, mas pra que eles gostassem de você.

O sorriso dele definitivamente se desfez. Ele bebeu e ficou olhando o fundo do próprio copo vazio. O silêncio se estendeu por segundos desconfortáveis demais.

- Uau. Bem animada essa sua brincadeira. – Disse transbordando sarcasmo. - Talvez agora a gente possa brincar de cortar os pulsos.

O rosto dele relaxou e ele renovou nossas doses. Mas o clima havia definitivamente mudado. Ambos parecíamos perdidos nos pensamentos que a brincadeira trouxe à tona.

No nosso silêncio, a música que tocava no sistema de som tomou conta do ambiente.

- Ah. Eu amo essa música.

Call out my name do The Weeknd tocava.

Eu voltei minha atenção para Sirius que ainda parecia ver o mundo no fundo do seu copo.

- Me diz algo sobre você que ninguém saiba.

O olhar de Sirius encontrou o meu. Ele pareceu pensar por um momento.

- Eu toco piano desde os quatro anos.

- Quatro?!

Ele assentiu.

- Fazia parte do treinamento Black.

- Porque eu tenho a sensação que você gostava?

- Eu gosto. Embora lá eu não pudesse tocar o que eu gostava, eu amo tocar piano. E você?

Eu sorri. Então me levantei da banqueta e tirei os sapatos. Sirius acompanhava, intrigado, cada movimento. E o fato de estar completamente à vontade com o que ia fazer deixou claro que eu já tinha tomado whisky demais. Comecei a me movimentar ao som da música.

- Eu sou dançarina. – Declarei.

Ele abriu um sorriso enorme enquanto me observava.

- Sério?

- Se lembra da paixão não convencional que você me perguntou outro dia? Tenho algumas. – E não tive problema alguma em revelar pra ele aquele lado meu que eu escondia de todo mundo. Exceto de Lily. – Eu quase virei astróloga há alguns anos. Eu adoro trabalhar com arte. Mas a minha maior paixão é dançar.

E nos próximos segundos me deixar levar pela música. Deixei aquela sensação que eu amava se apoderar de mim. Onde tudo o que eu sentia se expressava pelos meus movimentos. Transbordando pela minha pele.

E eu não liguei se estava descalça num bar. Se o barman que eu levei pra cama antes de saber o nome estava me observando e provavelmente achando que eu era doida. Nada disso importava. O que eu sentia era maior do que isso nesse momento.

- Você é incrível.

Eu parei e encontrei os olhos dele. Ele estava sério enquanto me observava. Seus olhos tinham um brilho impossível de ignorar.

- E porque você não trabalha com isso? – Sirius perguntou.

- Não estava nos planos do meu pai.

Eu me surpreendi novamente com a facilidade que essa revelação deixou os meus lábios. Voltei a me movimentar, me sentindo leve novamente.

- Então o que? Ele te proibiu?

- Não. Ele só me apontou outra direção. E eu queria tanto a aprovação dele que simplesmente segui sem questionar. E eu não me conhecia o suficiente pra saber o que eu realmente queria. Não era forte o suficiente pra seguir meu caminho sozinha.

O olhar de Sirius assumiu outra profundidade com as minhas palavras. Ele se levantou do balcão e trouxe a garrafa para uma mesa no salão, mais próxima de onde eu ainda dançava.

- Você era próxima dele?

- Sim. Eu idolatrava o meu pai. E quando ele morreu eu meio que tentei continuar orgulhando ele, da forma que eu sabia fazer isso. Mas eu perdi um bom pedaço de mim fazendo isso. Parecia mais fácil ser leve e espontânea quando ele estava por perto, sendo o responsável por mim, sabe?

Sirius assentiu.

- Porque eu tenho a sensação que o amigo do James chegou nessa época?

Novamente, extremamente perspicaz.

- Ele chegou. Ele apareceu nesse momento da minha vida onde eu tudo que eu queria era me encaixar. Eu o conheci assim que meu pai morreu. Acho que eu queria um substituto. Foi muito intenso, desde o começo. Eu me joguei de cabeça. Começamos a namorar e eu confesso que já tinha até imaginado o dia do casamento. O que é bem estranho, já que eu nunca quis casar. E aí ele deixou de me achar interessante. E eu estava tão perdida que não percebi como aquilo era ruim pra mim. E eu, ao invés de me pegar pela mão e ir embora, fiquei. E mudei. Tentei ser algo diferente do que eu sou. Algo que eu achava que ele queria que eu fosse. Porque naquele momento era muito mais importante estar com alguém do que ser feliz. E o pior é que eu não vi isso acontecer.

E então entendi. Tudo o que passei, tudo o que Lily disse fez sentido naquele momento.

- Você sabe o que é estar rodeado de pessoas diferentes do que você quer? Que simplesmente não conseguem entender porque você quer as coisas que quer?

- Você nem imagina o quanto. – Aquele brilho frio novamente.

- Eu cresci rodeada de mulheres que fazem do seu objetivo de vida encontrar um marido. Como se de alguma forma a vida delas não estivesse completa sem um. Elas se moldaram para encontrar um. Mulheres que se sentem bem sendo submissas e servindo. Satisfeitas de colocar um monte de gente a frente delas mesmas. E tudo bem, se for isso que elas querem. Mas eu nunca fui assim.

- E como você é, Marlene?

Eu senti mais do que percebi o enorme sorriso que se abriu no meu rosto.

- Eu sou alguém que quer encontrar algo que faça meu coração vibrar. Quero fazer as pessoas sentirem coisas que não se sente todo dia. Eu não quero ser encarregada da casa, ou de cuidar do marido como se ele não fosse um adulto. Eu quero ser livre. Eu quero ter escolhas. Eu quero viajar. Quero fazer besteiras, criar minha própria rotina. Quero mudar de idéia. Eu ouvi a vida inteira que isso era uma fase, que mais cedo ou mais tarde eu ia me render e ser como elas. Em algum momento acho que eu acreditei nisso. Eu esqueci que eu era suficiente e independente. Esqueci que eu mesma podia me proporcionar segurança e estabilidade e que isso nem é tão importante assim pra mim. Esqueci que eu era diferente, e estava tudo bem ser assim.

- É. – A voz de Sirius estava rouca e ele me olhava com uma expressão totalmente diferente. Parecia admirado. – Você é bem única mesmo.

- Bom, você queria um desabafo. Aí está.

Ele sorriu. E foi um dos sorrisos mais lindos que eu já tinha visto tomar o rosto dele. Era uma daqueles sorrisos que chegavam até os olhos.

- E qual a história com a sua família?

Ele tomou um longo gole da sua bebida antes de responder.

- Minha família sempre foi muito exigente. Eu nunca tive escolhas. Eu acordava, desde pequeno, e tinha o dia inteiro programado. Eu costumava admirar isso no meu pai. Sempre ocupado, sempre correndo, nunca se satisfazia com nada ou se acomodava. Achava que ele era invencível, meu protetor. Até me dar conta que essa proteção toda era controle, imposição. Até perceber que essa correria toda era só ambição vazia.

Eu me sentei e servi outras doses pra gente. Ele continuou.

- Como você sabe, meu sobrenome é Black. – Ele hesitou por um momento. – A minha família é dona da Black Law.

Meu queixo caiu. Aquela era simplesmente a firma de advogados mais poderosa do país.

- Quando você nasce numa família assim você já tem um destino traçado. Então eu segui as regras, mesmo que não me sentisse feliz. E mesmo com todo o meu esforço, eu não era bom o bastante, como meu pai não deixava de me dizer. E a minha mãe, justificava o comportamento dele ao invés de me acolher. E aí eu conheci James. E ele parecia tão livre. Os país dele eram tão amorosos que seriam capazes de apoiar qualquer carreira que James escolhesse. Foi ali que eu entendi o que era um mundo com escolhas. Mas ainda era difícil demais pra mim fazer essas mesmas escolhas sem apoio. E adivinha? Foram os pais do James que me apoiaram.

Fez todo sentido o carinho que ele tinha por James.

-Então um dia acordei e vi que já não era só o meu dia que estava programado. Era o restante da minha vida. Estava numa faculdade que eu não queria fazer, já tinha um emprego esperando por mim quando me formasse e minha mãe já tinha até a filha de algum rico e poderoso que eu deveria me casar. Um dia o medo de ficar foi maior que o de ir embora. Então eu fui.

O rosto dele se fechou e uma expressão dolorida passou no seu rosto. E algo dentro de mim simplesmente reclamou. Eu queria tirar aquela expressão dali.

- Eu larguei a escola e meus pais viraram as costas pra mim. Então eu virei as costas pra eles também. – Ele levantou os olhos tristes de encontro aos meus. – Eu fui embora e meio que virei um andarilho. Sem raízes. E foi tão fácil, porque a verdade é que eu não tinha raízes. Porque eu sempre fui um estranho dentro da minha própria família. Eu precisei de anos pra calar a voz deles no meu ouvido e começar a ouvir o que realmente fazia sentido dentro de mim.

Ele suspirou e alcançou a garrafa, que estava quase no fim.

- Então – Servindo as últimas doses nos copos. - Eu entendo completamente o que você sentiu, e entendo bem o seu esforço pra tentar ser igual a todos a sua volta. Eu fiz o mesmo.

Eu estava sem palavras. Como nossas histórias eram tão diferentes e tão parecidas ao mesmo tempo.

- E porque voltou?

- Pareceu o momento. Minha irmã, está passando pelos mesmos problemas e me pediu ajuda. E eu não queria perder o casamento do meu melhor amigo.

Ele abriu um enorme sorriso ao pensar nisso.

E foi a minha vez de admira-lo. Talvez a gente estivesse mais na mesma página do que eu tinha esperado.

- Droga, Black.

Ele me olhou de cenho franzido, a pergunta implícita.

- Eu sabia que você era uma encrenca.

Ele sorriu e se aproximou. Estávamos sentados, cada um em uma cadeira. Eu ainda descalça desde que tinha me levantado pra dançar. E então ele me beijou.