Sherlock Holmes e John Watson estavam juntos na fila do mercado com duas garrafas de vinho tinto em uma cesta.
— Tudo bem, você me convenceu Sherlock — declarou ele. — Tem alguma coisa acontecendo. Mas tem certeza que é algo ruim? Ela pode apenas estar conseguindo lidar melhor com tudo.
— Audrey acorda às quatro da manhã desesperada com mais um de seus pesadelos, mas por algum motivo no dia seguinte resolve personificar a cozinheira empolgada — declarou ele um pouco impaciente.
— Que pesadelos? — John franziu a sobrancelha.
Sherlock percebeu que falara demais e o segredo de Audrey que guardou por tanto tempo de repente não era mais segredo.
— Ela não queria que eu te contasse — justificou ele. — Algo entre medo de você pedir novos exames e não querer incomodar com o problema, pelo que eu deduzi.
— Você devia ter me contado mesmo assim — retrucou John.
— Estou contando agora — ele não queria abrir mão de ter razão.
— Me diga exatamente o que está acontecendo — a expressão aborrecida no rosto do amigo fez o Sherlock contar tudo em detalhes.
Eles já estavam a caminho da Rua Baker quando o relato terminou. O médico ficou um tempo em silêncio digerindo as informações sobre os sintomas clínicos muito relevantes apresentados por Audrey que eram um tanto preocupantes por conta do que havia sido feito em seu cérebro.
— Tem ideia que poderia acordar com ela morta no apartamento um dia, Sherlock?! — O tom de voz de John foi aumentando até gritar o nome do amigo no final da frase.
— John, você está exagerando — retrucou ele sem se alterar. — O sangramento parava rápido, eu mesmo pude observar. E a própria Audrey me garantiu que a enxaqueca não era tão intensa. Um comprimido era suficiente para fazer a dor passar.
— Você deu remédio para ela? — O tom de voz de John era passivo agressivo.
— O que queria que eu fizesse? — Perguntou Sherlock sem compreender o que mais poderia ter feito naquela situação. — Deixar ela agonizando de dor?
— Podia ter ligado para um médico! — mais uma vez ele se exaltou. — Você conhece duas pessoas bem mais capacitadas do que você para receitar alguma coisa!
— Molly! — Disse Sherlock lamentando não ter tido aquela ideia antes. — É verdade! Audrey me proibiu de contar para você, mas não falou nada sobre a Molly. Eu devia ter contado para ela.
— Nós vamos levar a Audrey para o hospital agora! — Informou ele.
— Não, — o tom solene da voz do amigo fez John esperar para saber o que ele tinha em mente. — Vamos deixar a Audrey terminar o que começou. E de preferência não diga a ela que eu te contei. Ela não estará correndo risco com você e a Molly no apartamento. Estará bem monitorada. Amanhã, se quiser, pode sugerir a ela que cuide disso em um hospital.
John bufou, mas concordou em seguir conforme Sherlock sugerira.
(...)
— Quem vai querer pizza? — Perguntou Audrey tirando a primeira assadeira do forno e colocando sobre a mesa enquanto John colocava outra para assar.
Todos esperavam ansiosos e cheios de apetite para experimentar a iguaria.
Depois que terminou de dar um banho em Rosie e vesti-la com o vestidinho azul marinho de bolinhas brancas com filhotes ouriço pigmeu de pelo rosa e espinhos brancos bordados na barra, a mulher deixou a menina aos cuidados da senhora Hudson para que ela mesma pudesse se arrumar.
Escolheu a camiseta pink de mangas curtas e estampa de unicórnio em prateado, sua calça preta, o trench coat bege de lã que tinha ganhado de Molly e completou o visual com um cachecol amarelo de poliéster comprado recentemente.
— Cuidado que está quente — Audrey dividiu a pizza em seis e serviu os pedaços.
— Quenti — repetiu Rosie sentada em um cadeirão infantil ao lado da cadeira de John.
— Deixa a madrinha cortar para você — Molly que estava à ponta da mesa ao lado esquerdo dela puxou o prato para cortar a fatia em pequenos quadradinhos para a menina pegar e comer.
Ela não sabia por que Audrey estava oferecendo o jantar, mas se vestiu com a saia de lã cinza na altura dos seus joelhos e o tricô azul marinho justo com decote em V que havia comprado no dia que as duas saíram juntas. Completou o visual com um cinto fino, meias calças pretas e um par de Oxford caramelo de salto baixo.
— Senhora Hudson, — a mulher serviu um pedaço para ela.
A idosa estava com uma blusa preta de bolinhas brancas e uma saia lápis que ia até um pouco abaixo do joelho, mesclando com as meias finas pretas.
— Obrigada, querida — ela respondeu.
— Molly — ela sorriu para a mulher que agradeceu depois de receber seu pedaço.
Audrey olhava para cada um memorizando aqueles sorrisos, consumida pelo desejo de manter os amigos em sua memória pelo maior tempo que fosse possível.
— John — ela sorriu para ele que já estava sentado ao lado da filha e sorriu de volta agradecendo.
Ele foi o único que não teve oportunidade de trocar a roupa que usava para algo mais solene, mas nem por isso estava malvestido com suas calças escuras de brim e uma camisa social azul.
— Sherlock — a mulher sentiu um nó na garganta ao olhar para ele sentado à outra ponta da mesa.
Com uma camisa roxa que nunca o vira usar antes, o homem a encarou observando cada movimento. Audrey teve medo que ele tivesse percebido o que ela estava se preparando para fazer e a impedisse de sair do apartamento no dia seguinte.
— Obrigado — Sherlock sorriu.
— Agora o meu, por que eu também mereço — a mulher colocou em um prato vazio, entre a senhora Hudson e Molly o último pedaço de pizza que estava na assadeira e sentou para comer.
— Vinho? — Ofereceu John.
— Não sei se já bebi antes...
— Fica tranquila, você não pode ser mais fraca para bebida do que esses dois — comentou a senhora Hudson sorrindo.
A mulher riu enquanto o amigo enchia sua taça.
— Não somos fracos para bebida, — John retrucou. — Basta não misturar como fizemos...
— E prestar atenção ao que colocam no seu copo — resmungou Sherlock.
Audrey, Molly e a idosa precisaram segurar o riso enquanto os amigos se encaravam.
— Beba devagar — disse o John passando a ignorá-lo enquanto instruía a mulher.
— Muito bom — comentou ela juntando os lábios depois do primeiro gole.
Ele continuou servindo a bebida até chegar a Sherlock.
— Estou dividindo o suco com a Rosie — ele olhou para a afilhada e sorriu para ela.
— A coisa deve ter sido séria mesmo — Audrey sussurrou para Molly.
— Você não faz ideia! Depois te conto — ela falou de volta em voz baixa. — Bonito esse cachecol — continuou em um tom normal de fala.
— Gostou? Comprei numa feirinha no caminho vindo para cá uns dias atrás — a mulher tirou a peça do pescoço e colocou nela. — Combina mais com sua roupa. Fiquei com ele.
— Ah, não Audrey...
— Por favor, Molly. Faço questão! Ficou bem melhor em você do que em mim — afirmou ela sorrindo.
— Tá bunita Moy! — Reforçou Rosie.
Audrey mandou um beijo para a menina do outro lado da mesa em agradecimento pelo apoio.
— Já que você insiste, obrigada — Molly sorriu enquanto seus olhos confusos encontraram os de Sherlock que acenou para ela aceitar o que estava acontecendo sem questionar.
Ninguém além dele tinha conseguido reparar na relevância do que estava acontecendo. Mas o homem não pretendia fazer nada a respeito, nem deixar ninguém interromper o que estava por vir. Pelo menos não por hora.
Ao invés disso, estava tentando se esquivar da sessão de fotos que começou a acontecer quando Audrey tirou o celular do bolso do casaco.
A segunda fornada de pizza agradou todos tanto quanto a primeira. Já a terceira encontrou algumas desistências. Sherlock, a senhora Hudson e Rosie não queriam mais. Principalmente a bebê, sonolenta no cadeirão ao lado do pai.
— John — Audrey chamou a atenção dele indicando a filha.
— Oh pequena... Papai vai ter colocar na cama — antes que John conseguisse levantar, a babá já estava do lado da menina.
— Não se incomode — pediu ela já tirando Rosie do cadeirão.
— Audrey, hoje é Sábado...
— Por favor, John — havia um pouco de tristeza no fundo dos olhos de Audrey.
— Tudo bem — respondeu ele.
A mulher foi para o banheiro com a menina sonolenta onde faria o melhor que pudesse para escovar seus dentes.
— Está tudo bem com a Audrey? — Perguntou Molly com a voz baixa assim que ouviu o barulho da água quando a torneira foi aberta.
— Tenho certeza que não... — respondeu John da mesma forma. — Mas ele, — o homem indicou o amigo com um aceno de cabeça. — Não quer que façamos nada por enquanto.
Molly olhou para Sherlock do outro lado da mesa tentando descobrir o que ele estava planejando.
Com os dentes escovados, ela levou Rosie para o quarto e a colocou sobre a cama de casal onde vestiu uma fralda nela para evitar imprevistos desagradáveis.
Toda aquela movimentação fez a menina despertar um pouco e Audrey a pegou no colo e começou a andar pelo cômodo a embalando suavemente.
— Vou sentir muito a sua falta pequena — ela sussurrava passando uma das mãos com carinho pelas costas de Rosie. — Queria tanto te ver crescer e se transformar na pessoa maravilhosa que eu sei que você vai ser. Mas preciso ir embora. Seja uma boa menina e ame muito seu papai, seu padrinho e suas madrinhas. Os quatro merecem todo o amor do mundo.
Quando Rosie dormiu, Audrey a colocou no meio da cama, tirou seus sapatinhos e a cobriu com uma manta infantil que pegou na última gaveta da cômoda de Sherlock. Depois a cercou com o edredom dobrado, formando uma parede em volta dela para que a menina não rolasse para o chão. Após dar uma última olhada nela, limpou a lágrima que havia escorrido pelo seu rosto e saiu do quarto.
Nota da autora: Audrey está decidida a se afastar do grupo para sempre. Sentia-se grata por todo o carinho recebido, mas além de se considerar um incômodo, algo dizia a ela que mais cedo ou mais tarde representaria um risco para os amigos. Será que Sherlock a deixará simplesmente ir embora?
