Sherlock Holmes fez sinal para o táxi e depois de algumas quadras, lá estava ele de volta ao parque onde Audrey Morgan tinha iniciado sua busca. Ela estava sentada sozinha no mesmo banco onde conversara com o mendigo e conseguira o endereço do detetive.
O homem quase começou a correr quando viu sua arma sobre o colo da mulher, mas a inércia dela o fez manter o ritmo. Sherlock se sentiu um pouco mais aliviado quando a viu, com um movimento rápido, guardar o objeto no bolso do casaco.
— Como você me achou? — A mulher olhou rapidamente para ele sem dar tempo para uma resposta. — Que pergunta idiota. Você é o Sherlock Holmes. Claro que você saberia onde me encontrar.
— Você deixou pistas... queria ser encontrada — o homem sentou ao lado dela.
Nenhum dos dois fazia contato visual com o outro.
— Não deixei — contestou ela.
— A porta do armário estava entreaberta — expôs Sherlock.
— Nem percebi... — explicou ela. — Você sabia desde o começo o que eu estava planejando?
— Sumir das nossas vidas, sim. Se matar, não. Na verdade, não quis acreditar que você seria capaz — Sherlock mantinha as mãos dentro dos bolsos do sobretudo. — Não depois de ter lutado a noite inteira para se manter viva enquanto era arrastada pela correnteza.
— Não era isso que eu ia fazer — Audrey olhou para o céu. As lágrimas silenciosas ainda desciam pelo seu rosto. — Só queria desaparecer como se nunca tivesse existido.
— Então para que precisava da arma?
— Deve ter gente atrás de mim e mesmo sem me lembrar, tenho certeza que não quero voltar para o lugar onde estava — ela abaixou a cabeça.
— Queria se proteger?
— Da maneira que fosse necessária — concordou ela.
Os dois trocaram um breve olhar e Sherlock tentou deduzir a informação não dita escondida nas palavras. Era óbvio que com apenas uma bala, Audrey não seria capaz de se livrar de um grupo de pessoas.
— Você não iria conseguir desaparecer das nossas vidas da maneira que queria — atestou ele.
— Eu sei, mas ontem acordei com vontade de tentar — o tom de voz dela alternava entre a irritação e o desespero. — Sei que você e o John iriam acabar me encontrando... seja em qual condição fosse...
— Não era sobre essa parte que eu estava me referindo, apesar de ser verdadeira também.
Audrey inclinou a cabeça levemente para o lado de Sherlock vendo seu perfil apenas pela visão periférica.
— Por mais que nunca a vejamos novamente, você nunca sairá das nossas vidas. Nunca deixará de existir.
— Meus pais tentaram... — retrucou ela.
— E tenho certeza que falharam.
— Eu não queria ter arrastado vocês para essa confusão...
Sherlock não conseguiu segurar o riso. Aquilo finalmente fez com que ela olhasse para o homem à sua direita.
— Você já leu o blog do John? — Perguntou ele.
— Quando a Molly me falou a respeito, comecei a ler. Terminei ontem. Mas a maior parte das histórias é invenção dele, não?
— Na verdade ele tende a romantizar tudo e deixar algumas coisas de fora para não chocar a audiência.
— Mesmo assim, não acho que vocês precisem de mais problemas do que já tem... — Audrey passou a olhar para os pés enquanto os escorregava pelo gramado debaixo do banco arrancando alguns tufos.
— Me responda, — Sherlock se virou de frente para a mulher. — O que você acha que iria acontecer se você tivesse "desaparecido"? — Ele gesticulou as aspas com os dedos.
— Vocês iriam investigar e...
— Não..., estou falando do que as pessoas iriam sentir — Sherlock havia aprendido muito sobre sentimentos nos últimos anos. — Superficialmente óbvio. Sentimentos são imprevisíveis demais para se estimar com precisão.
— Bem, a Sra. Hudson ficaria triste... acho que ela gosta quando apareço na casa dela para ajudar com alguma coisa — apesar de Sherlock não desviar o olhar do rosto de Audrey, ela não retribuía o gesto. — O John... Coitado já sofreu com a sua morte, a da esposa... acho que muitas lembranças desagradáveis viriam à tona. E a Rosie, mesmo tão pequena, perceberia a tristeza dele... E a Molly ficaria mal também... eu me diverti bastante no dia que fizemos comprar juntas.
— Está indo bem, continue — incentivou o detetive.
— Mycroft não se importaria — ela sorriu pela primeira vez desde que eles haviam começado a conversar. Sherlock a acompanhou. — A menos que isso afetasse você... — a mulher voltou a ficar séria. — Minha presença não te incomoda?
— O pior é que você está sendo sincera me perguntando isso — o homem voltou a fitar as árvores à sua frente. — Eu faço experimentos malcheirosos na cozinha, toco violino de madrugada, não me controlo quando estou entediado e vez ou outra falo coisas bem desagradáveis de se ouvir, embora nunca sejam mentiras — expôs ele. — Você é que deveria se incomodar por dividir o apartamento com alguém como eu.
— Gosto de ouvir você tocar.
Os dois se encaram por alguns segundos e sorriram.
— Tem ideia de como John e eu nos conhecemos?
— Só o que li no blog... — ela voltou a fitar o chão.
— Eu precisava de alguém com quem dividir o apartamento, ele precisava de alguém com quem dividir o apartamento e tínhamos um colega em comum que sabia disso.
— Pelo menos ele não apareceu na sua porta com um corte na cabeça e sem memória...
— Ele usava uma bengala e estava consideravelmente perturbado por conta da guerra — Sherlock balançou os ombros. — Lembra quando falei que ele tinha pesadelos todas as noites?
— Devo ter deixado ele preocupado — lamentou ela. — Mande uma mensagem para o John avisando que estou com você.
— Fiz isso assim que desci do táxi — o detetive deu um meio sorriso. — Você se empenha demais em fingir que está bem ao invés de pedir ajuda.
— Não quero incomodar...
— Ajudar os amigos não incomoda, mesmo que dê trabalho.
Audrey sentiu um aperto no peito como se uma mão invisível comprimisse seu coração.
— No entanto, relações de amizade levam um tempo para se desenvolver e racionalmente falando tenho certeza que pouco mais de 15 dias de convivência é um período muito curto para se considerar sinceramente amigo de alguém. Mesmo que nossos sentimentos digam o oposto.
Sherlock comprimiu os lábios um contra o outro atento às reações dela antes de continuar.
— Por isso queria te propor um acordo enquanto estiver com a gente — o homem esperou até que a mulher olhasse para ele. — Quero a permissão para assumir temporariamente o posto de seu irmão mais velho.
O coração de Audrey disparou e ela não sabia se sorria ou chorava com a proposta.
— John me falou sobre você querer ter um irmão mais velho que te proteja antes mesmo de você perceber que está em perigo — o homem explicou a fazendo se lembrar da conversa com John no elevador do hospital quando ele a levou para fazer a ressonância magnética. — E isso inclui te proteger de tomar decisões tolas como essa.
A mulher deu uma risadinha com a maneira dele falar, mas sem se ofender com aquilo.
— E então, aceita? — Perguntou Sherlock ansioso.
— Eu... ah... aceito — respondeu ela com as lágrimas imediatamente embaçando sua visão.
— Então, sendo seu irmão mais velho, com licença — o homem se aproximou o suficiente para colocar a mão dentro do bolso do casaco de Audrey. — Armas estão proibidas para você — anunciou ele resgatando sua pistola.
Sherlock ergueu levemente as sobrancelhas ao perceber que a arma estava pronta para ser disparada. A dúvida sobre as reais intenções dela ainda pairava em sua mente, mas ele não quis discutir o assunto no momento. Depois de acionar a trava de segurança ele a guardou no seu próprio bolso.
— Desculpa... — a mulher cobriu o rosto com as duas mãos. — Eu estou tão cansada...
Sherlock passou o braço esquerdo por cima dos ombros dela. Era a primeira vez que os dois se tratavam com tanta intimidade. Assim como havia se sentido protegida por John na primeira vez que o viu, agora ela se sentia da mesma maneira em relação ao detetive de quem teve tanto medo a princípio.
O homem esperou pacientemente até que o pranto se transformou em um choro silencioso para voltar a conversar.
— Eu realmente gosto de tocar violino de madrugada — comentou ele sem tirar o braço dos ombros dela.
— A música no meu sonho me traz a certeza de que eu não estou sozinha e vou conseguir escapar da cela de concreto — ela soluçou.
— Qual você gosta mais?
Audrey levantou o corpo, limpou um pouco as lágrimas e inspirou pensando nas vezes que ouvira as melodias tocadas por Sherlock.
— Acho que aquela que você tocou umas três noites atrás.
— Era o Nocturne Opus 9 Número 2 de Chopin — comentou o detetive. — Mas eu achei que não tivesse adiantado quando vi você correndo para o banheiro...
— Eu estava fingindo — admitiu ela olhando para ele com um sorriso envergonhado.
— Conseguiu me enganar — o homem sorriu franzindo os lábios. — E como você fez na noite seguinte? Não ouvi você gritar.
— Acordei meia hora antes das 4 e só fui dormir quando já estava amanhecendo.
— Isso explica o porquê o John te encontrou dormindo com Rosie no sofá da casa dele.
— Foi depois disso que eu desisti — novamente ela desviou o olhar. — Nem para cuidar da pequena eu sirvo mais...
— Talvez seja a hora de pedir ajuda a ele.
Audrey olhou para Sherlock. Já havia falado com ele sobre o não querer contar a John seu problema por receio de acabar precisando de passar novamente por uma ressonância.
— O que aconteceu no exame que te deixou tão abalada? — Perguntou ele percebendo o medo nos olhos dela.
— Eu entrei em pânico. Meu coração disparou e não conseguia controlar as lágrimas — respondeu. — E nem sei explicar por qual motivo. Acho que isso é o pior...
— John me contou que você se sentiu meio desconfortável, mas não imaginei que fosse tanto.
— Ele tem sido muito paciente comigo.
— John gosta de ajudar as pessoas. Mesmo as mais difíceis — um sorriso caloroso apareceu no rosto dele.
Audrey percebeu que, assim como quando dissera sobre a habilidade de Molly para compreender e cuidar das pessoas, Sherlock falava dele próprio outra vez.
— Já podemos voltar para casa? — Perguntou ele.
— Sim — a mulher se levantou.
Sherlock também ficou de pé e eles caminharam em direção à rua entrando no primeiro táxi que parou ao sinal do homem.
Nota da autora: Não deixem de procurar a Nocturne Opus 9 Número 2 de Chopin para violino no Youtube. Já tinha ouvido a música no piano, mas fica muito bonita também com esse instrumento.
Sherlock conseguiu salvar a Audrey, apesar de ainda ter dúvida de qual perigo realmente a salvou. Sua dedução aponta um caminho, mas ele preferiu não a confrontar. De qualquer forma ela está indo de volta para casa, sã e salva.
