Sherlock Holmes não foi direto buscar o remédio. Tinha bastante tempo para isso, já que Audrey Morgan só o tomaria à noite. Queria acertar a última parte do seu plano para ajudá-la. O caso era grave demais para ele contar apenas com sua capacidade de raciocinar e resolver.
Precisava de alguém que fosse capaz de se tornar confidente dela, algo que ele e John Watson não seriam capazes de conseguir da maneira urgente que a situação exigia. O homem bateu na porta e esperou pacientemente até Molly Hooper permitir sua entrada para só então tirar a chave do bolso, destrancar a fechadura e entrar.
— Sherlock, aconteceu alguma coisa? — Perguntou ela ainda de pijama e meias, com cabelo preso em um rabo de cavalo mal feito. — Sua mensagem não explicava muito. Quer dizer, não explicava nada, só dizia que precisava conversar comigo e que estava vindo para cá — ela deu uma risadinha antes de voltar à atenção para o chá que estava preparando.
— Aconteceu, e eu quero que você me ajude — Sherlock fechou a porta e tirou o sobretudo o deixando em cima de uma poltrona antes de sentar no sofá de dois lugares que ficava de frente para a TV da sala.
— Do que você precisa? — Perguntou Molly.
— De você — respondeu Sherlock com um sorriso no rosto.
Ela sorriu de volta entendendo referência que ele usou ao escolher as palavras. Molly terminou de preparar as duas xícaras de chá e sentou ao lado do amigo entregando uma delas para ele. Toby apareceu e começou a se esfregar nas pernas de Sherlock que usou a mão livre para acariciar o bichano.
Ambos permaneceram em silêncio enquanto bebiam o líquido quente se sentindo perfeitamente à vontade com a presença um do outro.
Não era novidade Molly receber Sherlock em casa sem estar em trajes mais formais. A primeira vez que ele a viu daquela forma, foi quando se hospedou em sua casa esperando a hora certa de ir atrás dos criminosos da rede de Moriarty depois de forjar a própria morte.
Ela ficou um pouco envergonhada na época, mas ao perceber o quanto o amigo conseguia permanecer confortável, ela também parou de se incomodar com o detalhe.
— Eu preciso que você seja a melhor amiga da Audrey — disse ele de uma vez sem cerimônia.
Molly engasgou com o chá e começou a rir alto causando espanto nele e em Toby.
— Sherlock! Eu não posso simplesmente reivindicar o posto de melhor amiga da Audrey.
— Eu reivindiquei o posto de irmão mais velho... — despreocupado ele levantou e abaixou os ombros.
O gato se cansou e foi deitar em cima do sobretudo de Sherlock que não pareceu se importar com o fato da roupa poder ficar com alguns pelos.
— Por que você fez isso? — Ela girou o corpo e dobrou as pernas uma sobre a outra em cima do sofá para ficar de frente para ele.
— Audrey contou para o John que gostaria de ter um irmão mais velho para protegê-la — informou.
— Isso ainda não explica por que você se ofereceu — Molly tinha as sobrancelhas franzidas enquanto o encarava.
— Dadas às circunstâncias e a forma como eu involuntariamente contribuí para o que aconteceu, precisei intervir — Sherlock olhava seu chá quase no fim.
— Como assim? Com o que você contribuiu e de quem a Audrey precisa ser protegida?
— Dela mesma — ele colocou a xícara vazia sobre a mesinha redonda ao lado do sofá, tirou os sapatos e se virou de frente para Molly em uma imagem espelhada dela.
Sherlock narrou os últimos acontecimentos e as evidências do dia anterior que haviam indicado para ele o que estava para acontecer enquanto todos estavam alheios aos sinais, ou apenas se negando a acreditar.
— O cachecol que ela me deu... — apesar de estar com os olhos úmidos, Molly conseguia conter as lágrimas. — Como não percebi o quanto ela estava sofrendo?
— Não se culpe tanto... já observei que a Audrey é muito boa em esconder o que está sentindo. Ela se preocupa demais em não incomodar ninguém. O que acabou por me envolver nisso.
Sherlock contou o quanto Audrey se sentia desconfortável por estar interferindo na rotina deles, sem deixar de falar nos pesadelos e o fato da mulher achar que estava atrapalhando as noites de sono dele.
Molly deu uma risadinha — Audrey acha que está te impedindo de dormir?
— Difícil de acreditar, né? — Ele quase se divertia com aquilo.
— Muito — Molly segurava a xícara, agora vazia, entre as mãos.
— Por isso me considerei involuntariamente envolvido e assumi a responsabilidade de tomar uma atitude, já que falhei em convencê-la de que não está me atrapalhando e esse ser um dos gatilhos para as ações dela.
— Por que isso, Sherlock?
— Segundo John, o tipo de amnésia provocada e a falta de lembranças sobre o motivo de terem feito o que fizeram com a Audrey a faz sentir que mereceu o que aconteceu e deixa a impressão que todos irão abandoná-la mais cedo ou mais tarde. Então ela tenta agradar todo mundo o tempo todo, mas já percebeu que é impossível fazer isso.
— Por isso você quer que eu finja ser amiga dela para conseguir vigiar mais de perto? — Molly sabia as consequências absurdas daquela ideia, mas entendia que não era por má intenção que o amigo a estava propondo.
— Isso! Senão vamos perder a Audrey antes mesmo de descobrir quem fez isso com ela! — Sherlock gesticulava com as palmas das mãos voltadas para cima enquanto falava, contente ao perceber que Molly estava acompanhando seu raciocínio. — O John disse que já considera ela uma amiga, mas eu tenho certeza que não dá pra se tornar amigo de alguém tão rápido — o sorriso presunçoso apareceu no rosto dele.
— Nem você acredita no que está falando, Sherlock! — Molly riu e segurou as mãos dele. — Você está gostando de ter a companhia da Audrey no apartamento! Nunca ficou satisfeito com a recusa do John em se mudar com a Rosie para a Rua Baker, mas como não conseguiu contra argumentar teve que aceitar a situação.
Quando percebeu Sherlock desviando o olhar, a mulher teve certeza que estava com a razão.
— No começo achou que a presença dela seria um incômodo, mas ao perceber que a Audrey não interferia nos seus hábitos, passou a gostar — Molly movimentava a cabeça tentando recuperar o contato visual.
— Bom, o fato dela gostar dos experimentos, do violino e ser mais esperta que o Lestrade ajudou um pouco na nossa convivência — o homem finalmente admitiu olhando para a amiga.
— Como assim mais esperta que o Greg? — Perguntou ela com curiosidade.
Sherlock contou sobre o caso que Audrey resolvera do incêndio acidental no apartamento e lembrou o quanto ela se interessou ouvindo o relato dele sobre o assassinato de alguns estudantes de moda.
Também falou do interesse dela em analisar as amostras de sangue que a patologista colheu dela e o fato de não se incomodar com dedos humanos na geladeira para um experimento com digitais.
— Também tem o fato dela ter salvado a vida do John e do Mycroft quando a gente invadiu o centro de treinamento — Sherlock cruzou os braços sobre o peito e tombou a cabeça para o lado a repousando no encosto do sofá.
— Ela me contou que jogou o John no chão antes de atirar no homem, mas não disse que tinha salvado a vida dele e do seu irmão com isso — Molly levou sua xícara até o balcão da cozinha e tornou a sentar de frente para o detetive.
— Talvez ela não tenha parado para pensar, ou não quer admitir, que se o atirador a tivesse matado, atiraria no John e no Mycroft logo em seguida. Esse tipo de gente não costuma deixar testemunhas.
— Tem razão — Molly também cruzou os braços na frente do corpo. — Olha, eu não posso fingir que sou amiga da Audrey — declarou por fim um pouco aborrecida por decepcionar Sherlock. — Como você acha que ela iria reagir se descobrisse que você me pediu algo assim e eu aceitei? Com certeza enganada e como se não merecesse ter amigos de verdade.
— E o que a gente pode fazer então? — Perguntou ele aflito.
— Eu acredito que seja possível se tornar amiga de alguém em um tempo tão curto sim, e vou prestar mais atenção na Audrey daqui para frente.
— Deixei ela ir muito longe — admitiu ele. — Se eu não tivesse chegado a tempo, me sentiria culpado — havia uma apreensão genuína em seus olhos.
— Eu sei — respondeu Molly com uma expressão serena no rosto enquanto tocava brevemente a bochecha direita de Sherlock recebendo um sorriso em retribuição pelo carinho. — Só tem mais uma coisa com a qual você precisa tomar cuidado — ela enfatizou o pronome de tratamento quando o pronunciou.
— Eu? — Ele levantou a cabeça do encosto do sofá.
— Sim, você — reafirmou ela. — Não projete a Eurus na Audrey com esse plano de irmão mais velho ou vocês dois vão acabar se machucando. Você tem ajudado sua irmã da melhor forma que pode e ela própria permite.
— Dessa vez você errou na dedução, Molly Hooper — um sorriso iluminou o rosto de Sherlock, no entanto não era presunçoso e sim quase tão sereno quanto um da própria amiga. — Não estava pensando na Eurus quando tive essa ideia, mas no Mycroft — ele descruzou os braços e juntou as duas mãos apoiando os dedos no queixo em sua posição clássica. — Por mais inconveniente e irritante que ele seja não sei onde estaria hoje se não fosse por ele. Eu certamente teria falhado sem vocês. Por isso quis que a Audrey tivesse a mesma rede de apoio que amigos e um irmão mais velho podem proporcionar.
Molly mordeu o lábio inferior enquanto sorria com a declaração de Sherlock. Ele pouco se dava conta de como suas palavras eram bonitas e carregadas de um sentimento puro e profundo.
— Se deu certo uma vez, há grandes chances de funcionar, não é mesmo? — Declarou ela por fim com um enorme sorriso no rosto.
— Espero que sim — concordou ele retribuindo o gesto na mesma intensidade.
— Agora preciso ir ver Audrey — Molly ficou de pé de repente acordando seu gato que desceu da poltrona e foi em direção ao quarto dela.
— Chegar assim lá comigo não vai parecer que foi tudo planejado?
— Não tem problema ela saber que você veio me contar, Sherlock — Molly se afastou indo na direção que Toby havia ido. — A única coisa que precisa ficar clara, é que eu decidi por minha vontade ir para lá depois de ouvir o que você me contou. E foi o que aconteceu — ela saiu do quarto e seguiu para o banheiro com uma muda de roupa.
O homem calçou os sapatos e pegou o sobretudo sobre a poltrona o sacudindo antes de vestir. Mesmo assim alguns pelos do gato continuaram grudados no casaco.
— O que acha de comprarmos algumas coisas para preparar o almoço? — Perguntou ela voltando para a sala de cabelo solto usando seu suéter de faixas coloridas horizontais e uma calça caqui.
— Eu preciso pegar um sedativo que o John receitou para ela antes de voltar para casa.
— Sem problemas — Molly sorriu. — Por falar nisso, manda uma mensagem para ele dizendo o que vamos fazer. Espero que John não tenha começado a cozinhar... — ela caminhou para o quarto onde calçou um par de sapatilhas, pegou o celular, a bolsa de tecido e um casaco azul marinho para vestir por cima. — Vamos?
Sherlock sorriu para ela em resposta, e depois de conferir se havia deixado água e comida suficiente para Toby e trancado bem todas as janelas e portas, Molly saiu caminhando na companhia do amigo em direção ao mercado mais próximo.
Nota da autora: Sherlock tirou os sapatos antes de apoiar os pés sobre o sofá da Molly... hahaha... o medo senhor! Para quem pisa em cima da mesinha de centro, é uma demonstração significativa de respeito!
Um capítulo que aconteceu no domingo, publicado no domingo! Adorei a coincidência! E ainda tem continuação! Espero que tenham gostado da conversa dos dois. Para mim, da mesma forma que John, Molly é capaz de fazer Sherlock entender melhor sobre como interagir com as pessoas e ele confia plenamente nela.
