A noite já avançava sobre o dia quando John Watson percebeu que os dois teriam que passar a noite ali. Na verdade, desde que voltaram da clínica debaixo do temporal que não cedia, a esperança de regressar a Londres, ainda aquele dia, era mínima.
E agora, embora a chuva tivesse diminuindo, ele não conseguiria fazer Sherlock Holmes parar com a análise dos arquivos para que pudessem ir embora. Mesmo sem encontrar nada sobre o centro de treinamento ou o arquivo de Audrey, a pilha com as pessoas mortas que estavam separando já acumulava 25 pastas e o entusiasmo dele parecia inabalado.
— Eu vou ligar para Audrey — John anunciou de repente fazendo o amigo olhar para ele. — Já percebi que não vamos voltar hoje — acrescentou.
— Pode apostar que não vamos — comentou Sherlock voltando a prestar atenção no que fazia.
Para esticar um pouco o corpo, John levantou da cama e caminhou até a janela. Audrey parecia animada quando atendeu e explicou que Molly estava com elas na Rua Baker brincando com a Rosie junto com a senhora Hudson enquanto ela preparava o jantar da pequena.
O pai ficou contente por saber que Audrey não estava cuidando sozinha da filha dele, mas ciente que a amiga certamente estava se ocupando da maior parte do serviço. John ainda conversou um tempo com Rosie e recomendou que a menina se comportasse. Ela garantiu que faria isso e encerrou a ligação para voltar a brincar.
— Eu não gosto disso, Sherlock.
— Como assim, John? Nós já dividimos um quarto de hotel antes... — o homem olhou confuso para o amigo.
— Não estou falando disso — John sorriu se divertindo com a conclusão dele enquanto andava até a mesa para deixar o celular sobre ela. — O que me incomoda é a Audrey fazendo tanto pela gente.
— Mas você paga ela... — argumentou ele ainda sem entender.
— Sherlock... Eu pago ela para trabalhar de babá durante o dia. Não para se responsabilizar pela Rosie por 24horas e ainda cuidar da minha casa e da sua! — John estava um pouco impaciente por precisar explicar.
— E você acha que ela se sentiria bem morando lá sem pagar aluguel e sem fazer nada para ajudar?
— Tudo bem, que seja — John ficou satisfeito por finalmente o amigo ter compreendido. — Mas na minha casa ela poderia cuidar só da Rosie, mas não tem nada mais que eu possa falar para evitar que ela cuide do resto. Não quero ter que obrigá-la a parar com isso ameaçando uma demissão.
— Não faça isso! Ela pode tentar ir embora de novo! — Sherlock parou de mexer nas pastas e encarou John.
— Eu sei... eu não vou fazer isso — admitiu ele. — Mas eu não acho justo e ela não aceita receber pelo trabalho extra...
— Interessante como ela dá conta de fazer tudo... — Sherlock voltou à atenção para os documentos.
— Bem, eu e a Rosie não conseguimos fazer muita bagunça, e as roupas ela coloca na máquina de lavar e tira tudo quase pronto para guardar, exceto o que fica muito amarrotado e precisa passar.
— Ah, então ela nem faz tanta coisa assim...
— É mais do que você já fez durante todo o tempo que a gente dividiu apartamento — provocou John.
Sherlock levantou o rosto e sorriu para ele.
— Eu vou pedir alguma coisa para comer... — comentou o homem pegando novamente o celular sem se dar ao trabalho de perguntar ao amigo se ele queria alguma coisa, pois já sabia que a resposta seria negativa.
Depois de descobrir que a única refeição oferecida pelo hotel era o café da manhã, John conseguiu com a recepcionista uma lista de restaurantes acostumados a entregar comida para os hóspedes.
Logo após uma conferida no cardápio de cada um, ele pediu uma Jacket Potato com feijão cozido e queijo. Quando o pedido chegou, John desceu para buscar e ainda comprou uma garrafinha de suco de maçã para ele e outra sabor morango para Sherlock da máquina de bebidas no saguão do hotel.
Já que ele não iria comer, pelo menos o amigo conseguia manter sua hidratação e glicemia dentro de uma faixa aceitável.
— Com esse já são 30 ex-pacientes mortos — anunciou o detetive colocando mais uma pasta sobre a pilha separada enquanto pegava a garrafa de suco.
— É uma taxa realmente alta para apenas 12 meses — comentou John. — Tem informação sobre a causa das mortes?
— Algumas foram por overdose, tem suicídio, ferimentos letais durante surtos psicóticos... — ele tomou um gole do suco e fez uma careta. — E ainda não sabemos se os pacientes que desistiram da clínica estão vivos.
— Verdade — concordou John sentando na cadeira e colocando a comida sobre a mesa que havia no quarto depois de tirar o sobretudo de Sherlock, já seco, do encosto e jogar sobre a cama vazia. — Será que a Audrey veio de outro lugar? Sei que ainda faltam alguns arquivos, mas organizamos por data antes de começar e esses são muito recentes para terem tido tempo de apagar a memória dela, treinar e obrigar a matar 4 pessoas — ele usava o garfo descartável que viera junto com o pedido para comer.
— Se não estiver aqui, assim que eu confirmar a ligação deles com o centro de treinamento volto na clínica e reviro o arquivo inteiro até encontrar o prontuário dela — ele virou a garrafinha quase vazia nos lábios. — Mas pensa comigo, e se a data de morte na etiqueta da pasta for de quando tentaram se livrar dela e não de quando ela entrou para o esquema? Ainda não fez um mês que ela veio pedir ajuda para a gente...
— Acho que levantaria suspeita — John tomou um pouco do suco de maçã. — Porque uma data recente nos arquivos com as informações de pessoas que foram retiradas da sociedade e da família a mais tempo?
— Tem razão — concordou Sherlock tentando esconder o descontentamento já consciente de que não encontraria nada sobre Audrey naquelas pastas.
Assim que terminou a refeição, John voltou ao trabalho praticamente sem pausas até quase uma da manhã, quando foi vencido pelo cansaço.
— Sherlock, eu não aguento mais. Preciso dormir um pouco — declarou ele exausto. — Ainda tem pelo menos 20 pastas para analisar. Eu trabalhei no hospital a manhã inteira...
— Não pode parar agora, Jawn... temos que descobrir a conexão entre a clínica e o centro de treinamento — protestou o detetive.
— Eu não reconheceria a minha irmã se ela tivesse em um desses arquivos do jeito que estou. Para mim não dá mais. Vamos parar e continuar amanhã cedo — sugeriu ele.
— Pode dormir se quiser. Eu vou continuar — afirmou Sherlock.
— Que a Audrey não fique chateada comigo por isso, mas eu cheguei ao meu limite — disse John indo para o banheiro e fechando a porta.
Tudo o que ele queria era um banho, mas nem a possibilidade de pegar uma muda de roupa antes de viajarem Sherlock havia permitido, com a promessa de que se fossem naquela hora voltariam no mesmo dia.
John riu por ainda cair nesse tipo de conversa. Com o kit de pasta e escova de dente oferecido pelo hotel, ele tentou fazer o mínimo da higiene antes de voltar para o quarto, tirar os sapatos, as meias e desabar sobre a cama sem se importar com o fato da luz principal continuar acesa.
Porém, o descanso de John não chegou a durar três horas, quando Sherlock, sem conseguir avançar com a investigação por conta de um detalhe que ele não conseguia desvendar nem mesmo com a ajuda da internet, decidiu que o amigo já havia dormido o suficiente e podia voltar a trabalhar no caso.
— John — chamou o detetive. — John, acorda — ele tocou seu ombro direito e o sacudiu.
Ele piscou os olhos algumas vezes e respirou fundo tentando não perder a paciência.
— Que horas são, Sherlock?
— Acho que três e meia, mas esquece disso e me ajuda aqui...
— Você encontrou a ficha da Audrey?
— Não, e já olhei todos os arquivos...
— Então porque me acordou? — John virou de lado e escondeu o rosto no travesseiro.
— Jawn... — Sherlock usou seu tom de voz suplicante para convencê-lo. — Eu não faria isso se não fosse importante!
— Vamos lá... — ele respirou fundo e virou de frente para o amigo sentando na beirada da cama e colocando os pés descalços no chão frio. A temperatura desconfortável o ajudou a despertar. — O que encontrou?
— Eu comecei a analisar os arquivos dos ex-pacientes mortos, e tem cinco aqui assinados pelo mesmo psiquiatra — o detetive sentou ao lado do amigo. — Na verdade, esses cinco são os únicos assinados por ele. Fiz uma busca na internet e descobri que ele é um dos três responsáveis pela clínica.
— E o que isso tem de mais? — John cobriu a boca com a mão escondendo um bocejo.
— Esse código estranho na frente da palavra tratamento — Sherlock passou os papéis que tinha nas mãos para ele. — É um código médico para algum tipo de tratamento? Eu não encontrei nada na internet...
— Não está me ocorrendo nada a respeito... — o médico observava os números e letras. — E.R. pode ser emergency room, mas não consigo ver sentido nisso...
— Concordaria com você se não fossem esses dois arquivos — Sherlock pegou as pastas na outra cama e voltou a sentar onde estava antes. — Reconhece essas pessoas?
— Tenho a impressão que sim...
— Talvez isso refresque sua memória — o detetive abriu a galeria de imagens do celular onde guardara a cópia das fotos que estavam com o atirador morto por Audrey. — E claramente como eu suspeitei, os dois passaram por procedimentos para mudar a fisionomia, mas não tenho dúvidas que sejam eles.
— Eles estão entre os corpos que o Mycroft resgatou no lugar onde jogaram a Audrey — raciocinou John. — Se encontrarmos as famílias e fizermos um exame de DNA, estará feita a ligação entre a clínica e o centro de treinamento.
— Eu não vou esperar esse tempo todo — Sherlock pegou o sobretudo de cima da cama e o vestiu.
— Como assim não vai esperar? — John levantou surpreso pelo anúncio. — O que você vai fazer?
— Tenho certeza que esses códigos serão prova suficiente quando descobrirmos o que significam.
— Você não está pensando...
— Eu não vou esperar amanhecer para perguntar ao psiquiatra o que esses números e letras significam. Vou até a sala dele e descobrir eu mesmo — o detetive fotografou o código com o celular e guardou o aparelho no bolso do sobretudo.
— Mande uma mensagem para o Mycroft avisando o que vamos fazer — ordenou John calçando de volta as meias e os sapatos. O detetive olhou para ele sem reação. — Se você não fizer isso, eu vou fazer! Seu irmão sabe muito mais do que tem nos contado, e já passou da hora dele compartilhar as informações com a gente.
Nota da autora: Mycroft, Mycorft... deixar seu irmão sem saber com o que está lidando é muito perigoso. Sherlock gosta de seguir as pistas e não se importa com o que precisa fazer para isso. O que será que eles irão encontrar na clínica? Qual será o significado dos códigos?
