************************************* Cap 44 Setenta e sete animais e uma Tubaína **************************************

Templo de Áries - Sábado - 11h30

Com a solenidade e seriedade que espelham os atos dos verdadeiros monges tibetanos, um homem ajoelhado orava enquanto recitava mantras de frente à enorme estatua de Buda que outrora residira na Casa de Virgem, e que mesmo em pedaços não perdera a imponência.

Em um canto escuro e silencioso do vasto pátio que compõe a primeira casa zodiacal, Mu terminava de executar sua série de agradecimentos enquanto dedicava oferendas aos deuses. Ele escolheu aquele lugar em seu templo para erguer seu próprio altar de preces, isso depois de salvar todas as dezenas de estátuas de Buda das garras de um furioso Shaka. Tinha sido ali também que se prostrara de joelhos altura para rogar, não apenas um Buda, mas a todos os deuses de que tinha fé, para que salvassem a vida de seu amado filhote.

E era por isso que, mesmo sendo sábado, seu sagrado dia de descanso, no qual se recusava a sair da cama antes das duas da tarde, Mu tinha acordado cedo para oferecer frutas, acender incensos, velas e decorar com colares de flores cada imagem de seu altar improvisado, em especial o pequeno Ganesha de barro, divindade pela qual sentia-se particularmente agradecido, especialmente depois de ter visto, semanas antes, quando estava perdido em desespero, a estatueta emanar um brilho intenso; pouco depois foi às lágrimas ao sentir um toque divino que lhe trouxe conforto e esperança.

Se aquilo foi um aviso ou uma resposta às suas súplicas ele não sabia dizer, mas por ter sido criado em meio a tantos deuses e crenças diferentes, o deus elefante agora teria para sempre um lugar especial no coração devoto do ariano.

Após ter feito à última oração de agradecimento, Mu se pôs de pé, fez uma reverência final e partiu; afinal, não somente Buda e Ganesha ganhariam louvores e honras naquele dia tão especial.

Caminhando de volta em direção ao átrio do Templo de Áries, Mu já podia ver à distância os raios do sol por entre as colunas. Ele seguiu andando calmamente até que o som de seus passos, antes o único ruído ouvido ali, passado a ser acompanhado por muitas vozes e de música alegre e agitada. Logo ele teve a sensação de que cada passo que dava era como se fosse um reflexo daquele momento exato de sua vida, pois que saia da penumbra e fazer silêncio das incertezas passadas, do medo da morte e da tristeza sem fim, diretamente para a luz , para vida e a vitória.

Suas súplicas foram ouvidas. A doença de Kiki estava em remissão, e hoje, quase uma semana após o início do tratamento, seu filho amado estava tão bem que tivera permissão dos médicos para retornar à casa.

Como o legítimo Santo de Atena que era, um homem que serve aos deuses e também de muita fé, Mu naquele dia estava pronto para cumprir sua palavra e pagar as promessas que fizera. Assim, foi com um enorme sorriso no rosto e com o coração retumbando de alegria no peito que enfim chegou ao pátio, o estava qual estava lotado de pessoas em festa.

Naquela manhã de sábado, o cavaleiro de Áries abria as portas de seu templo para todos os habitantes do Santuário, sem distinção; estão desde os seus irmãos de armas dourados até o mais humilde dos servos, todos reunidos para um grandioso banquete ofertado em homenagem aos deuses, uma celebração como há muito não se via por lá, e para a qual Mu não poupara economias.

Foram feitas três dias inteiros para conseguirem organizar tudo, isso sempre contando com a participação de todos os envolvidos, e embora diversos os atrativos gastronômicos, uma grande atração principal do banquete eram de 77 animais abatidos e ofertados aos deuses; alguns deles Mu fizera questão de caçar e abater ele mesmo com a ajuda de Aldebaran, que desde o dia anterior comandava uma equipe para o preparo das carnes. Os animais que não foram caçados custaram um bom punhado de Euros, dinheiro que Mu gastou de bom grado e que já fez parte da primeira parcela do reembolso que exigira a Saga de Gêmeos pelos seis anos cuidando e não deixando faltar nada a Geisty.

Em respeito aos costumes enraizados em Shaka, que apesar de não ser hinduísta era muito apegado às crenças indianas, a carne de boi e de vaca foram evitadas, mas isso não era problema, pois Mu fizera questão de incluir toda sorte de animais na oferenda, um bisão, um iaque, quatro avestruzes, três carneiros, dois veados, dez faisões e o que mais ele conseguiu caçar. Aldebaran tinha pedido até um jacaré, vindo do melhor criadouro do Brasil; tudo do bom e do melhor para agradar os deuses, alimentar abundantemente a "pequena multidão" e principalmente comemorar a boa saúde de Kiki, que finalmente retornava ao lar.

O cavaleiro de Áries não se esquecera de nada, nem de ninguém. É certo que a linha primordial de todos ali era a pagã, em especial tinha Atena como sua deusa maior, mas cada um também depositava sua fé e esperanças em divindades particulares por diversos motivos, como herdado familiar ou simplesmente gratidão. Assim, aquele banquete tinha um caráter bastante ecumênico, já que todos os deuses eram bem vindos. Máscara da Morte, por exemplo, surpreendeu a todos depositando num altar improvisado ao lado da mesa de bebidas uma imagem de Santa Rita de Cássia, uma freira italiana a quem foram chamados extraordinários milagres e a quem intercedera pela saúde de Kiki, no entanto, uma surpresa não se dava pelo fato do terrível cavaleiro de Câncer confessar sua fé numa santa católica, mas no fato da imagem moldada em bronze não possuir a cabeça. Outra pessoa que fizera questão de dar graças à sua entidade de devoção para Afrodite, a quem suplicara pela vida de Kiki tantas vezes que certamente ficaria em dívida pelo resto da vida. Contudo, para aquela ocasião em especial, Peixes depositara no altar uma grinalda para Dadá, feita com rosas brancas, bordada com contas de madrepérola, lantejoulas e conchas do mar que ele mesmo coletara dias antes, quando retornou à Atenas. Já Aldebaran tinha a mais sortida gama de oferendas dispostas no altar, desde muita cachaça e farofa para as divindades de matriz africana, como quais intercedeu por Kiki e julgou ter seu pedido de socorro atendido, a velas brancas acesas aos pés de uma imagem de Nossa Senhora da Cabeça e outra de São Judas Tadeu, como o bom flamenguista daquela época. Destinados aos espíritos de luz infantis, os erês, ele ofertara brinquedos,

Saga por sua vez, como o regente atual do Santuário da deusa Atena, em agradecimento a esta depositou no altar flores de oliveira e uma bela peça de tapeçaria bordada feita às pressas por todo o contingente de servas, como quais se revezaram noite e dia para terminar a tempo. Geisty e Shina também seguiram a milenar tradição e fizeram libações a Leto, deusa protetora das crianças e mãe de Ártemis, para quem elas ofertaram cada uma ou par de galhadas de um cervo caçado na noite de lua cheia. A carne do animal seria servida no banque. Como última homenagem, Serpente também ofereceu uma pena de pavão à Hera, que com toda a sua benevolência suas preces permitir que aquela linda família se mantivesse unida.

Com toda certeza os deuses estavam felizes, mas muito mais feliz estava Mu, conectar boas novas dos céus percebia não terem agraciado apenas à sua família. Seus olhos lemurianos podiam ver uma aura reluzente de Afrodite vibrando em sintonia com a de Camus, mesmo distantes um do outro a fim de manter as aparências. Nem a presença de Misty de Lagarto, que sempre azedava os ânimos de Peixes, e que insistia em manter-se por perto do aquariano para puxar qualquer conversa fiada, parecia afetar a forma como a energia astral do casal se apresentava em perfeito comunhão. Mu fez uma nota mental para mais tarde trocar algumas palavras com Afrodite e saber em detalhes que acontecera com Camus na Rússia.

Já Geisty e Saga, ao contrário, sequer disfarçavam mais que estavam juntos.

Dias antes a amazona e o cavaleiro fizeram um acordo fadado ao fracasso, já que logo no primeiro dia foi impossível para Geisty esconder a novidade de Mu e também de Shaka, que assim que a viu chegar no hospital para ver Kiki notou os cabelos molhados e um brilho diferente em seu olhar. Poderia ser a alegria em saber que Kiki se recuperaria? Sim, mas a chegada repentina de Saga ali minutos depois, também com os cabelos molhados e com o mesmo brilho no olhar, só comprovava que estava certo. Eles estavam entendido, finalmente, embora o tempo todo que passaram ali tentaram fingir que não, que ainda estavam brigados. Tolos, proposta Mu em dado momento que as auras de ambos passaram a brilhar numa sincronia tão perfeita que o fez revirar os olhos. Shaka riu discretamente do leve aborrecimento do marido, que logo voltou toda atenção para Kiki,

De Afrodite, então, Geisty não conseguiria esconder nada nem que se esforçasse muito. Assim que chegou ao Santuário, alguns dias depois, já quando Camus recebera alta e voltara para casa, Afrodite foi primeiro visitar Kiki no hospital e lhe entregar todos os presentes e quitutes que trouxera para ele da Rússia, ainda que a maioria ele não pode comer , e depois seguiu direto para o Templo das Bacantes; tinha muito trabalho acumulado e ele precisava desafogar Geisty o quanto antes. No entanto, quando ele entrou no escritório e deu de cara com uma amazona, uma coisa diferente chamou sua imediata atenção. Um cheiro. Não qualquer cheiro, mas o cheiro específico de alguém, ou melhor, de uma loção pós barba que só uma pessoa determinado Santuário todo usava. Sem fazer qualquer esforço para parecer discreto, e já deixando escapar um risinho malicioso, Afrodite caminhou até a amiga que o normalizar com um abraço cheio de saudades e sem que ela esperasse ele cheirou seu pescoço, ombros e boca, como um cachorro fareja o dono quando este acaricia outro animal na rua sem sua permissão. Bingo! Os gritos, risos e palmas estaladas no ar que se seguiram não deram chance a Geisty de negar que tinha reatado seu casamento com Saga. Não a Afrodite. Ela nunca conseguiria esconder nada dele.

Agora ali no banquete, amazona e cavaleiro abriram de vez para todos as cortinas de seu relacionamento. Agarrados um ao outro eles cochichavam em completa intimidade enquanto suas auras os envolviam numa nuvem escarlate de amor que fazem com que Mu revirasse ranheta os olhos toda vez que estes esbarravam neles.

E nem era preciso ter o dom de enxergar auras, pois que o amor de Gêmeos e Serpente transbordava em seus gestos e olhares, tornando-se evidente até aos olhos fechados.

E por falar em olhos fechados ...

Os olhos de Mu logo recebem a aura mais brilhante e forte de todas, a qual se destaca majestosa entre as outras. Seu coração então aqueceu-se em festa.

Com as pálpebras bem abertas, Shaka andava de lá para cá, sendo sempre seguido por um serelepe e xereta gato preto, enquanto demandava ordens e mais ordens a seus fiéis pobres discípulos, Shiva e Ágora, que como cumpriam desesperados em não cometer nenhum erro que desagradasse o exigente mestre. Juntos eles organizavam numa enorme mesa posta no centro do pátio todo o restante da comida seria servida como acompanhamento do churrasco, a qual muitos ali fornecem a preparação dando à celebração um tom ainda mais familiar.

Enquanto os discípulos faziam uma nova corrida até a cozinha para trazer mais guarnições, Shaka abriu um espaço no centro da mesa já farta de travessas e depositou ali quatro grandes cloches de prata. Ali estava toda a comida que Kiki poderia comer, já que ainda passava por restrições alimentares devido ao transplante de medula e ao tratamento com a infusão alquímica que seguia a todo vapor. Todavia, no que dependesse de Shaka, seu pequeno não passaria deseja de nada.

Com todo amor e o perfeccionismo virginiano que lhe cabia, ele passou a noite na cozinha de Virgem reproduzindo vários dos pratos que seriam servidos na celebração, especialmente aqueles que sabia que Kiki iria querer comer, porém usando apenas os ingredientes liberados pela dieta que doutor Adônis passou . Assim, os doces vistosos, os petiscos de dar água na boca, os quitutes apetitosos e até as carnes mais fortes e gordurosas estavam ali, naquelas quatro cloches especiais, reproduzidos com maestria. Quando acabou de alinhar perfeitamente como quatro na mesa, Shaka suspirou e como uma faísca tudo de terrível que passou nos últimos meses veio à sua mente, porém agora sentindo uma sensação reconfortante de alívio.

Nessa hora ele virou-se e como se fosse a coisa mais natural do mundo seus olhos encontraram os de Mu no meio daquela multidão toda de gente feliz; o cantinho esquerdo de seus lábios então fez uma curva para cima. Um sorriso, singelo e quase imperceptível, mas cheio de amor e paz finalmente, e que era compartilhado com Mu até a hora em que Ágora chegou todo atrapalhado com uma travessa de salada de palmito e Shaka precisou reassumir sua postura séria e austera para orienta-lo.

Ao longe, o cavaleiro de Áries acompanhava a cena aos risos e suspiros. Era indescritível a sensação de paz e felicidade que lhe preenchia o peito, acalentava a alma e fazia ter sede de viver de novo.

Mu passou um tempo ali totalmente distraído, olhando para o marido radiante ao longe, para Saravá Ebó sibilando para os convidados que insistiam em querer invadir seu espaço pessoal e lhe acariciar, coisa que somente alguns privilegiados tinham permissão, quando de repente uma voz infantil ecoou alta no pátio e também dentro de sua cabeça.

— Papai!

Do alto dos ombros largos de Aldebaran, a uns bons passos de distância Kiki chamou por Mu telepaticamente e ao mesmo tempo verbalizando em voz alta. Estava sentado de cavalinho, aproveitando a vista privilegiada que os mais de dois metros de altura do padrinho lhe proporcionava.

Logo que ouviu a voz de seu pequeno o coração de Mu saltou frenético no peito e todo seu ser explodiu em alegria. Quando olhou para ele o viu sorridente acenando para si por sobre a cabeça de Aldebaran.

— Papai, vem aqui! Vem ver! — Kiki chamou agitando o bracinho, depois apontou para a mesa de doces abaixo dele e emendou esbaforido: — O Baba fez um bolo de dinossauro! Vem ver o bolo de T-Rex do Kiki! Vem ver!

Ah, que sensação incrível vê-lo cheio de vida de novo, pensou Mu. Kiki ainda não estava totalmente recuperado, mas seu corpo estava se regenerando e sua aura voltara a brilhar trazendo com ela a luz da esperança de que precisava para iluminar os seus dias.

Atendendo ao pedido, Mu saiu de seu estado contemplativo e caminhou até eles, no caminho ia cumprimentando os convidados que chegaram no intervalo de tempo em que saíra para fazer as oferendas no interior de seu templo. Logo estava junto deles diante da mesa de doces, onde um grande bolo decorado no formato de uma cabeça de Tiranossauro Rex atraía não apenas atenção de Kiki, mas de Hyoga, que estava ali com eles e também dos aprendizes mais jovens; todos rodeavam a mesa ansiosos para comerem a sobremesa antes do almoço.

— Olha, papai, o Baba fez até os dentes afiados! — disse um deslumbrado Kiki mostrando os dentinhos de leite enquanto imitava a carranca feroz do bolo.

— Pois é! E adivinha do que os dentes são feitos? — disse Mu com um sorriso.

— Bala de coco! — respondeu Kiki animado.

— O seu Baba não decepciona — riu Mu. — E ele não iria perder a oportunidade.

— Fala cumpadi, já fez tuas reza? — Aldebaran perguntou sorridente.

— Opa! Já sim! — Mu respondeu ao amigo, depois fez um cafuné nos cabelos do filho de Camus e aproveitou para cumprimenta-lo: — Oi, Hyoga! Que bom te ver aqui.

— Olá, senhor Mu. Não perderia isso por nada! — sorriu ele.

— E aí, meninos, estão gostando da festa? — quis saber o ariano.

— Sim! — eles responderam quase ao mesmo tempo.

— Nunca vi tanta comida — falou Hyoga empolgado — nem um bolo tão legal assim.

— O Shaka preparou esse bolo especialmente para você, filhote, com tudo que você pode comer, mas tem mais bolo na cozinha, para todo mundo — disse Mu orgulhoso dando uma piscadinha para Hyoga.

— O Kiki amou! É o melhor bolo de T-Rex de todos!

Mal terminou de falar, o pequeno graciosamente se soltou de Aldebaran e levitou até o colo de Mu, que prontamente estendeu os braços para com todo amor segura-lo.

Admirado Aldebaran arregalou os olhos.

— Rapá! Espia só pra isso, mermão! O molequinho já tá voando! Mal pisquei e pulou pro teu colo – exclamou com a boca aberta, bobo de admiração.

Mu sorriu vibrante e Kiki, brincalhão que era, mostrou os muques ao padrinho, cheio de brio.

— Kiki está forte! Já não sente mais canseira quando usa os poderes.

— Sim, agora com o organismo dele funcionando bem, os poderes do meu filhotinho parecem mais fortes do que nunca! — disse Mu.

— Ó, mas tu cuidado, heim! Já pensou se ele faz igual tu quando era moleque, que ligou o flutuador sem querer e despirocou pelo ar, tipo pipa avoada, e eu tive que subir na coluna da arena pra te derrubar no tapa quinem mosquito?

— Vish! Nem me lembra... Pensando bem, acho que vou amarrar uma cordinha nesse meu filhote, vai que ele vira um menino balão.

Curioso Hyoga quis saber do que falavam.

— Que história é essa do senhor Mu flutuar por aí feito balão?

Mu e Aldebaran trocaram um olhar rápido e depois caíram na risada.

Touro deu dois tapinhas no ombro do amigo ariano e disse:

— Aí, cumpadi, tu conta esse causo pros moleques que eu já me afastei demais do meu posto. Vou lá ver se tá tudo bem com a brasa, aproveitar pra biliscá um negocinho e dar uma lambida numa gelada. Já é, já é!

— Vai lá, Debão. Daqui a pouco vou lá te dar uma ajuda — disse o ariano animado, então voltou-se para os dois garotos: — Então vocês querem saber do dia em que Aldebaran me derrubou do ar no tapa, heim?

— Sim! — responderam os dois em uníssono.

Nessa hora Shaka chegou ali trazendo um copo de Tubaína, importada do Brasil pelo próprio Aldebaran para a ocasião, em cada mão. O gato preto viera junto com ele e agora esfregava-se nas pernas de Mu e de Hyoga enquanto ronronava baixinho.

— Foi quando ele era um rapazote. Um dia teve um surto hormonal e seus dons lemurianos ficaram meio atabalhoados — disse Virgem entregando o refrigerante aos garotos. — Aqui está a bomba de açúcar e corantes que vocês me pediram.

— O Kiki não entendeu, Baba — disse Kiki com uma expressão confusa, depois fartou-se do refrigerante com goladas generosas.

— O que você não entendeu? A parte do surto hormonal ou do atabalhoado? — Mu brincou caindo na risada.

— Eu sei o que é um surto hormonal! — disse Hyoga lambendo os beiços adocicados de refrigerante. — É quando hormônios passam a ser produzidos em alta escala pelo organismo em determinadas fases especificas da vida, como na adolescência e na maioridade, mexendo com o comportamento e as emoções da pessoa. Eu li sobre hormônios e puberdade num livro.

Mu arregalou os olhos, admirado, e Shaka encheu o peito de orgulho.

— Muito bem, Hyoga! É isso mesmo — disse o virginiano. — Ah, como é inteligente esse garoto!

— Mas... o atabalhoado eu não sei o que é não — concluiu Hyoga dando outro gole no refrigerante.

— Traduzindo — disse Mu olhando para ele — quando eu fiquei mocinho a minha telecinese ficou doida e às vezes eu saia voando por aí sem querer.

— Ah, agora o Kiki entendeu — disse Kiki rindo.

O clima alegre e de descontração das crianças era observado de longe por Geisty, que na mesa das guarnições se servia de mais uma azeitona retirada de um prato de aperitivos. Com o coração leve como há muito não sentia, ela pegou mais uma e a serviu na boca de Saga, que aceitou com um sorriso satisfeito e iluminado. Em seguida ele a puxou pela cintura e lhe deu um beijo estalado nos lábios tingidos de carmim.

O casal ainda não tinha voltado a viver juntos. Geisty manteve sua posição e preferiu continuar na Vila das Amazonas até que sentisse que era o momento certo de voltar a dividir um teto com Saga, pois estava certa de que esta seria sua derradeira tentativa. No entanto, não era mais necessário esconder de ninguém que estavam novamente em sincronia, amando-se como sempre, e aquele banquete para celebrar a recuperação de Kiki era o ensejo perfeito para revelarem seu segredo nem tão secreto assim.

— Atrevido — disse com um sussurro sorridente a amazona, depois bebeu um gole da limonada que Saga estava bebendo — gosto assim!

— Eu sei — respondeu galanteador o cavaleiro.

— Hum... Você já reparou nas caras dos nossos amigos hoje? Juro pela deusa que já flagrei a Marin suspirando ao nos ver, e Shina já me mandou uma piscadinha maliciosa — conclui gargalhando — Shina não muda.

— Hoje? Você reparou nisso só agora?

— Eu não sou tão observadora quanto você — brincou ela.

— Arianos... — Saga provocou sorrindo — Mas se eu te contar você não vai acreditar. Aldebaran já está há três dias me sondando como quem não quer nada, naquela discrição costumeira dele, sabe?

— Aldebaran discreto? Aquele lá falha miseravelmente no quesito discrição, a começar pelo tamanho — gargalhou alto.

— Pois então, ele veio várias vezes me perguntar se eu estava passando bem porque não tem me visto com frequência no Templo das Bacantes nos últimos dias, e no fim acabava sempre me perguntando se eu tinha notícias, como ele diz, da dona patroa.

— Olha só que fofoqueiro!

— Ohhhh, aquele lá adora uma fofoca.

— Mas é o roto falando do rasgado, né Saga?

— O quê? Eu não sou fofoqueiro! — protestou indignado o grego, então disfarçou bebendo a limonada enquanto encarava Geisty que gargalhava alegre.

— Imagina!

Subitamente a conversa dos dois foi interrompida por um dos discípulos de Shaka, que chegava ali todo atrapalhado trazendo uma travessa cheia de amêndoas assadas a qual por muito pouco não deixou cair no chão.

— Ui, Shiva! — fez Geisty o ajudando a segurar a travessa — Cuidado, garoto! Quer ajuda?

— Ah, não... não obrigado, senhora Geisty. Não quero incomodar — disse o rapaz olhando encabulado para o casal.

— Não é incomodo nenhum — respondeu a amazona se desvencilhando dos braços de Saga.

— Mas mestre Shaka disse...

Ma che mestre Shaka disse nada! — ranhetou Geisty tomando a travessa das mãos dele e a colocando na mesa. — Eu ajudei a preparar a maioria dessas comidas todas e não vai me cair as mãos se ajudar você a servi-las.

— Mas mestre Shaka pode achar que sou um imprestável — disse o pobre discípulo, visivelmente desesperado.

Saga nessa hora não se conteve e riu alto.

— Bem-vindo ao clube, garoto! — disse o grego.

Geisty deu um cutucão no marido e tentou acalmar Shiva lhe pegando pelo punho e o puxando para a cozinha.

— Não liga para ele, venha. Vamos buscar as outras travessas.

Saga os acompanhou com os olhos por um momento, depois sozinho ali passou a observar reflexivo todas aquelas pessoas ao seu entorno. Eles agora lhe pareciam bem mais leves, com seus espíritos abrandados, as fisionomias amistosas, e ele sabia bem por qual motivo.

Desde que reassumira o controle de sua mente e de seu corpo, foi com aterrador espanto e indizível vergonha que se deu conta do caos que o Outro instaurou naquele lugar onde a vida já era, por si só, uma verdadeira prova de resistência. Como suas primeiras providências ele deu cabo dos abusos e absurdos implantados e assim os terríveis treinamentos exaustivos que levavam à morte jovens aprendizes foram abolidos por completo. O treinamento ainda era pesado e rígido, como sempre fora, mas agora livre da intolerância, truculência e crueldade trivializada por alguns dos mestres antes incentivados pelo Outro. Os campos de treinamento mortais, como a temida Garganta de Tifão, foram desativados e as torturas proibidas. O serviço à deusa da justiça se daria agora unicamente por vocação e amor à causa de defender a humanidade e a Terra, e não mais por medo e coação.

A mudança do Patriarca já era bem nítida para todos, mas Saga quis provar sua boa vontade e recuperar a confiança dos amigos acatando de bom grado ao pedido que Mu lhe fizera para que permitisse que servos, aprendizes e cavaleiros de todas as patentes pudessem participar do banquete. Para ele era reconfortante saber que mesmo em um gesto tão pequeno podia trazer um breve momento de alegria a todos e isso o ajudava também a lidar com suas próprias dores internas, embora sabia que dessas talvez nunca se livraria.

Em dado momento Saga se pegou olhando para Kiki, Hyoga, Mu e Shaka, que conversavam animados sobre as façanhas não tão gloriosas do ariano na juventude. Era tão melhor a vida com crianças por perto, pensou ele suspirando. Poder ver que o pequeno lemuriano estava salvo e que teria pela frente uma longa jornada lhe encheu de alívio e de orgulho, afinal tivera participação em sua recuperação, mesmo que minúscula, em seu próprio e equivocado julgamento.

Entretanto, nem tudo estava definitivamente resolvido. Não para Saga, nem para todos os outros cavaleiros e amazonas, mas principalmente para Mu.

Saga sabia que ainda existia uma barreira entre ele o lemuriano. Sua vontade de esclarecer os maus entendidos, se redimir e conseguir o perdão de Mu era enorme, mas antes de qualquer coisa precisariam primeiro se reaproximar. Sentia falta da amizade de anos atrás. Achou que o episódio da câmara secreta bastaria para isso acontecer, mas este não passou de uma breve trégua. No entanto, não desistira de recuperar o apreço que Mu sempre tivera por si, e viu naquela ocasião uma oportunidade para tentar começar a quebrar a barreira.

Aproximando-se deles vagarosamente Saga logo inteirou-se do assunto enquanto fazia um cafune nos cabelinhos cor de fogo de Kiki, que agora estava no chão e junto de Hyoga faziam festinhas com Saravá Ebó. Este, por sinal, reagiu à presença do Patriarca eriçando os pelos da coluna, abaixando as orelhas e sibilando alto.

— O papai era mais grande que o Kiki quando a telecinese dele ficou abacalhauzada — disse o garotinho levantando os olhos para olhar no rosto de Saga.

— Atabalhoada. E não se diz mais grande, filho, se diz maior — corrigiu Shaka imediatamente, depois abaixou-se e trouxe Ebó para seu colo. Sabia que o gato ficava sempre nervoso na presença do geminiano.

— Olha só, pequeno Kiki, não pense que o seu pai era muito maior que você não, viu! — disse Saga sorridente — Ele foi baixinho por muito tempo. Um verdadeiro tampinha.

— Epa! — fez Mu.

— E nem acredite se ele te disser que era um exemplo de bom comportamento, porque ele era bem dissimulado, e como o bom ariano que é, um espoleta também — concluiu Saga.

Shaka e Kiki balançaram a cabeça ao modo indiano ao mesmo tempo, ambos surpresos com informação, enquanto Mu deu uma encarada no geminiano intrometido e disse:

— Olha aqui, ô Saga, eu não tenho culpa se a minha puberdade foi tardia, e nem se demorei a crescer. Além disso, eu era carente de amigos, passei a infância sem ter ninguém para brincar, por isso o que você chama de dissimulação eu chamo de empolgação. Era óbvio que eu iria ficar empolgado quando chegaram tantas crianças no Santuário ao mesmo tempo.

Shaka repreendeu o marido com um beliscão traiçoeiro na nádega. Saravá Ebó, que parecia ter até entendido algo, ou talvez agido por puro mimetismo, esticou o bracinho e deu várias patadas com as garrinhas distendidas no ombro de Mu como se também o tivesse repreendendo.

— Aow vocês dois! — fez Mu dando um pulinho, tanto pelo susto quanto pela dor do beliscão, a qual tentou aliviar esfregando a região com a mão enquanto encara os olhos azuis o julgando.

— Não começa com isso, Mu de Áries — murmurou Shaka.

De repente Kiki levitou até à altura do rosto de Saga e encarou firme seus olhos.

— Os olhos do tio Saga mudaram... O Kiki lembra deles vermelhos, não dessa cor — disse ele pegando a todos desprevenidos.

Saga pigarreou encabulado e surpreso, então se ateve ao fato que mais chamou sua atenção:

— Pelos deuses, pequeno Kiki, você já pode levitar! Mu, ele acabou de se restabelecer e já consegue flutuar assim? Isso é incrível!

Mu não conseguiu conter um suspiro.

— Para você ver, né Saga. Apesar do corpo dele estar ainda fraco e em recuperação, os poderes psíquicos de Kiki estão mais fortes do que nunca. Sua única dificuldade com seus poderes era a falta da enzima metabelinaze. Agora, por conta da fraqueza muscular após dias de internação, para ele está sendo mais fácil levitar do que andar. Não é incrível?

— Sim, é sim! É absolutamente incrível! — disse Saga sorrindo.

— E pensar que mal faz uma semana ele estava em coma... O meu filhote sempre foi um prodígio e mesmo assim você o chamou de retardado — disse ele mordaz recordando as inúmeras injúrias sofridas pelo filho ao longo dos anos.

O rosto de Saga corou na mesma hora.

— Eu... eu sinto muito... Eu jamais diria uma coisa dessa estando no meu juízo perfeito, você sabe que não — disse ele encarando constrangido os quatro rostos que o fitavam.

— Se no juízo perfeito já falava sandices, imagina fora dele — resmungou Shaka disfarçadamente, porém alto o suficiente para se fazer ouvir, depois disso segurou o gato num braço só e com a outra mão tomou o copo de Tubaína das mãos de Hyoga, imediatamente o levando à boca para assim evitar deixar que mais verdades escapulissem por ela.

— Me perdoem — Saga pediu consternado.

O clima pesou e Hyoga, que já tinha idade para entender o que estava acontecendo, fingia não estar a par do assunto roubando docinhos da mesa e os enfiando aos montes na boca, enquanto Kiki, percebendo as auras dos adultos turvas e agitadas, interveio sem hesitação:

— Ó, não é para brigar na festa do Kiki... Ele sabe de toda a verdade e perdoa o tio Saga.

— Verdade? Que verdade? — Saga perguntou curioso.

— Que o tio Saga saiu para comprar cigarro... Mas como ele sabia que ia demorar muito para voltar ele deixou o Grande Mestre Ébrio Proxeneta Possuído no lugar dele.

Nessa hora Shaka cuspiu toda a Tubaína que tinha na boca. Saravá Ebó novamente sibilou para Saga e deu três patadas em Mu.

Hyoga por sua vez, olhou espantado para Kiki, pensando em como ele havia chegado aquela conclusão absurda, já que Camus sempre o inteirara de tudo a respeito de Saga e sua outra personalidade maligna, mas no fim não conseguiu conter o riso quando imaginou quantas toneladas de cigarros seriam necessárias para manter o Grande Mestre ocupado por seis anos. Ademais, não seria tão absurdo assim pensar que nesses seis anos em que tivera sob o domínio de seu lado maligno, Saga e seu pai tivessem feito uma parceria em algum grande negócio envolvendo o contrabando de tabaco.

— O quê? Ci... cigarros? — retrucou Saga indignado. — Mas eu nem fumo!

— Fuma sim — afirmou Kiki — e deve fumar muito para ter demorando tanto!

— Não, eu... eu não fumo!... Quem te disse esse absurdo, menino?

— O Baba.

Shaka agora fingia um ataque de tosse, sinalizando para que Mu lhe desse uns tapinhas nas costas, enquanto Saga o encarava com os olhos arregalados e a face contorcida pela perplexidade.

— Mas isso é mentira, Shaka! — protestou o geminiano.

— Não é não. O Baba nunca mente, não é Baba? — disse Kiki firme e convicto.

Mu contraiu os lábios segurando o riso, e Shaka, que estava mais corado do que frango ao colorau, fez o que sabia fazer de melhor, deu as costas a todos e fingiu que não era com ele.

— Arê! Shiva e Ágora são mesmo dois néscios tardos. Estão arrastando a cara de Shaka no pátio — resmungava ele apertando o passo e saindo pela tangente com gato, Tubaína e tudo. — Uma lesma ressequida se movimentaria mais rápido que eles. Ainda há muito o que trazer da cozinha... Shaka precisa fazer tudo. Tudo!

— Ei, o meu refrigerante! — gritou Hyoga, que perdera a bebida.

— Shaka de Virgem volte aqui e desminta essa asneira que você disse, seu maluco da língua peluda! — gritou Saga.

— Xiii, desista... mais fácil nascer pelo no meu sovaco ou Hades entregar a Guerra Santa para nós — disse Mu já conformado.

— O Baba não vai desmentir porque ele está sempre certo, não é verdade, Hyoga? — falou Kiki.

— Claro que é — confirmou um risonho garotinho russo que não perdeu a oportunidade de entrar na brincadeira e emendou: — Senhor Saga deve pitar muito, bem mais que o père, por isso demorou tanto. Comprou cigarro para a vida toda.

Saga encarou Hyoga, que o encarou de volta, então o geminiano não teve alternativa senão aceitar a derrota. Respirando fundo ele olhou para Kiki, depois para Hyoga e vendo os dois juntos ali tudo o que conseguiu pensar foi no quanto tinham crescido nesses seis anos; e olhar para aquelas crianças era como esfregar o tempo na sua cara.

— Enfim... — Saga suspirou tentando mudar o foco para prosseguir com o diálogo com Mu de maneira mais objetiva — do maluco do Shaka eu não podia esperar nada a meu favor mesmo, mas de você, Mu, eu espero que possamos conversar com calma para resolver essa e tantas outras questões que estão pendentes entre nós. Eu sei que causei muitos danos a você, o magoei, coloquei sua família em risco...

— Você tem toda razão — interrompeu o ariano cruzando os braços enquanto mantinha um olhar rígido para Saga — Mas agora não é o momento, porque não quero que nada estrague esse dia.

— Sim mas é que...

— Eu sei muito bem que há vários pontos sem nó a serem acertados entre a gente, muitos mais do que você imagina até. Tudo que está dentro daquela câmara que descobrimos juntos eu sei que tem a ver comigo, com meu passado e talvez até com meu futuro, mas de nada adiantaria descobrir qualquer segredo ou tesouro quando o meu presente é que era incerto. Agora que meu filho voltou para casa e está se recuperando eu estou pronto para lidar com todas essas outras questões, e isso inclui minhas desavenças com você.

— Sim, você está certo.

— Hoje eu quero que nós dois festejemos a vida. Curta a festança e não pense mais nisso por hoje — disse Mu, e nesse ponto teve a atenção desviada por dois braços enormes erguidos ao longe cujas mãos que seguravam, uma um espeto de carne, e a outra uma latinha de cerveja brasileira, lhe acenavam ansiosas. — Aldebaran precisa da minha ajuda. Com licença.

— Toda — respondeu Saga em voz baixa seguido de um suspiro. No momento seguinte ele sentiu um puxão em suas calças e olhando para baixo encontrou o sorriso radiante de Kiki.

— Liga não, tio Saga, o papai está chateado, mas logo passa — disse ele.

Saga lhe sorriu de volte e fez um cafuné em seus cabelos.

— A tia Gê fala que a gente que é ariano não guarda nem dinheiro, que dirá raiva. Por isso o Kiki não guarda raiva do tio Saga — continuou Kiki.

— Geisty fala isso é? — Saga riu.

— Sim! E é verdade, porque o papai briga direto com o Baba, mas logo depois esquece e dá ouro para ele... E depois, se o senhor chatear ele de novo é só ele te tacar uns tijolos que a raiva passa.

— Não, não, não! — Saga abanou as mãos no ar — Chega de tijolos!

— É só o senhor não abandonar a gente de novo e deixar o Grande Mestre Ébrio Proxeneta Possuído no seu lugar — Kiki sorriu.

Saga então agachou-se diante dele e lhe estendeu a mão.

— Eu prometo a você que nunca mais os abandonarei — disse ele, e também estendeu para Hyoga a outra mão. — Combinado?

Kiki e Hyoga apertaram ao mesmo tempo, e com toda a força que tinham, as mãos que eram muito maiores que as suas.

— Combinado! — responderam em uníssono.

Ainda segurando as mãozinhas deles, um filme passou na mente de Saga; cenas de um passado nublado, mas ainda tão fresco que parecia ter acontecido dias antes.

— Puxa, vocês cresceram tanto... e que crianças lindas e talentosas vocês se tornaram... Parece até que foi ontem que eu te peguei no colo, pequeno Kiki... e você, Hyoga... Pelos deuses! Nem parece aquele garotinho vestido de Batman correndo atrás dos inimigos com uma energia e alegria contagiantes.

— Seis anos é muito tempo, Patriarca — Hyoga respondeu ferino, deixando claro para Gêmeos que os anos de infância estavam ficando para trás — Logo começarei meu treinamento na Sibéria e irei disputar a armadura de bronze de Cisne.

Saga arregalou os olhos.

— Já? Camus não me disse nada...

— Provavelmente ele ainda vai dizer — disse Hyoga.

Saga suspirou. Camus o vinha ignorando desde o dia em que recobrara a consciência, e sabia bem por qual motivo. Mesmo que não parecesse, Aquário fora um dos mais afetados por sua perda de controle e Escorpião era uma cicatriz dolorosa entre eles.

— Sim... eu sei que ele vai... Mas vamos falar de coisa boa? Tenho um presente para você, Kiki.

— Oba! O Kiki adora presente!

— Ei! — Geisty se aproximava deles sorridente enquanto Saga se levantava — Nós temos um presente! Não esquece que a ideia foi minha, Saga — brincou ela.

— Presente da tia Gê é sempre gostoso. É de comer?

— Ah, dessa vez não, mas... é um presente muito mais legal do que super bolão de chiclete de kriptonita.

— Eu também te trouxe um presente, Kiki. Está ali com meu père, vamos lá pegar? — revelou Hyoga.

— Vamos! Aguenta aí que o Kiki já volta — disse ele a Saga e Geisty.

Os dois garotos saíram correndo e o casal ficou aguardando ali. A amazona então aproveitou para saber como foi a conversa do marido com Mu. Ela estava ansiosa para que os dois se acertassem o quanto antes.

— Sem grandes avanços — Saga respondeu a ela com um muxoxo, metendo as mãos nos bolsos da calça. — Pelo menos ele não tentou me dar uma tijolada dessa vez.

— Eu já diria que isso é um avanço e tanto, isso se tratando de um ariano puto da vida — disse Geisty com um expressão de pura ironia no belo rosto, depois percebendo que a situação era deveras importante para o marido se aproximou dele e lhe fez um carinho na nuca — Ei, não fica assim, amore mio. Lembra o que o conversamos na sua última seção de terapia?

— Aquela que quebramos o pau no consultório na frente do terapeuta?

— Não, Saga! — disse ela carrancuda.

— Ah... tá falando daquela nossa conversa depois da consulta, enquanto estávamos presos no engarrafamento da avenida principal? — cochichou Saga com voz melosa no ouvido dela e aproveitou a deixa para lhe beijar o pescoço — Aquela conversa dentro do carro foi muito boa, mas você não exatamente falou... Você mais...

— Não, Saga! — Geisty o interrompeu. — Tô falando sério... Não pode querer recuperar exatamente o que você perdeu no passado, porque tudo mudou... Você vai criar novos laços com as mesmas pessoas, e precisa esperar o tempo delas. Dê o tempo necessário para que tudo volte ao seu devido lugar, mesmo que o lugar não seja o de antes.

Saga suspirou desanimado, ainda que repetisse aquela verdade dentro de si como um mantra.

— Sei que você tem pressa, mas tenha paciência. Mu vai perdoa-lo, ele é ariano e arianos não guardam nem dinheiro, que dirá rancor.

— Eu já sei disso. O pequeno Kiki me disse.

— Falando nele... lá vem os dois — disse Geisty sorrindo e apontando para os garotinhos que vinham correndo em sua direção.

— Olha o presente legal que Hyoga deu para o Kiki, tia Gê! — falou um alegre ruivinho que segurava em ambas as mãos um tabuleiro de xadrez ricamente trabalhado em madeiras nobres e peças de pedraria.

— Ah, pela deusa! Que coisa mais linda! — exclamou Geisty apreciando o presente — E que bom gosto, Hyoga! É uma peça de colecionador!

— Obrigado — respondeu o russo estranhando a amazona conhecer a peculiaridade daquela peça, já que Camus vivia lhe dizendo que ela era uma brutalhona sem modos e sem nenhum erudição. — É para Kiki praticar enquanto eu estiver fora, treinando na Sibéria.

— É uma ótima ideia! — disse Geisty.

— Se o pequeno Kiki quiser, eu posso ensinar algumas jogadas — disse Saga animado.

— O Kiki quer sim! — disse o ruivinho, mas de repente seu riso murchou e ele olhou melancólico para Hyoga. — O Kiki vai sentir falta do Hyoga, mas ele também está feliz que o Hyoga vai se tornar um cavaleiro!

— Eu também vou sentir sua falta — disse Hyoga pousando a mão no ombro de Kiki — Então aproveite para treinar bastante que quando eu voltar vou te desafiar, e eu duvido que você me vença.

— Vai sonhando! — provocou Kiki balançando a cabeça ao modo indiano e voltando a sorrir animado. — Agora o Kiki quer o presente da tia Gê e do tio do pito — intimou.

— Como é que é? Tio do pito? — Saga estava indignado. — Eu já falei que não fumo!

O protesto do geminiano foi interrompido pelas gargalhadas altas de Geisty e de Hyoga.

— Ai, Kiki, você é uma peça rara! — disse ela tentando se conter, mas sem muito sucesso.

— Não nega que é filho do Shaka para ter essa língua afiada...

— Para de resmungar, Saga — disse Geisty pegando Kiki no colo — Olha, meu amor, você pode chama-lo só de tio Saga mesmo, porque ele na verdade é seu tio no papel e tudo, já que eu e seu pai somos irmãos de criação e Saga é meu marido.

— O verdadeiro né?

— Sim, o verdadeiro — afirmou Geisty aos risos enquanto trocava um olhar com Saga.

— Então tá bom. Tio Saga, mostra o presente que você e a tia Gê trouxeram. Kiki está curioso. — sorridente balançava as perninhas agitadas no colo da italiana.

— Está lá na sala, vamos lá! — disse Saga já tomando a dianteira.

— Vamos! Vem você também, Hyoga. — Geisty chamou e eles seguiam Saga sorridentes. — Ah, mas eu acho que você não vai gostar do presente, Kiki.

— Por que não?

— Porque eu me enganei na hora de comprar... Você não gosta de dinossauros.

— O Kiki adora dinossauros!

— Mas gosta de T-Rex?

— O Kiki adora o T-Rex!

Animados todos seguiram para o interior do Templo de Áries, enquanto a alguns metros dali, acompanhando o desenrolar da cena com desdém e até um tanto de repulsa, um cavaleiro de Prata bebia uma cerveja numa rodinha de amigos. Enquanto a bebida descia-lhe mais amarga que o natural pela garganta, ele observava as pessoas ao seu redor, aprendizes, soldados, servos confraternizados com guerreiros de alta patente e pisando no sagrado solo do Santuário.

— Isso é um absurdo — resmungou Algol de Perseu para Jamian de Corvo, que estava ao seu lado degustando uma caipirinha — será que ninguém é capaz de perceber que o Patriarca está fora de si? Que desse jeito ele vai nos levar ao fracasso e condenar a Terra?

Alguns cavaleiros que estavam por ali começaram a olhar atravessado para Algol, que continuou:

— Se continuar assim, em breve deixaremos de treinar técnicas de luta para aprender a trocar fraldas de bebê... O poderoso Santuário de Atena, que já viveu dias de glória, está se tornando uma colônia de férias para crianças mimadas, e quando Hades e seus espectros se levantarem do Submundo nós iremos fazer o quê? Convida-los para brincar de casinha? Hades irá nos esmagar como baratas e...

— Ma cala a boca, pazzo! — interrompeu Shina lhe dando um tapa ardido na nuca cabeluda. — Quer saber? Para mim já deu. Cansei de ouvir as merdas que você fala. Você está indignado porque não pode mais brincar de carrasco e descontar seu sadismo nos mais fracos. Por mim o Patriarca até podia exonerar você, mas ele te deu um voto de confiança, então não seja burro e honre o Grande Mestre e a sua armadura, babaca.

Shina os deixou sozinhos para juntar-se a outro grupo de cavaleiros que estava a alguns metros dali degustando churrasco e cerveja brasileira. Algol a acompanhou com um olhar fuzilante de raiva e a fisionomia enojada, até que seus olhos encontraram Máscara da Morte, uma figura que desde há tempos lhe causava um frio terrível na espinha. O cavaleiro de Prata achou melhor dar o assunto por encerrado e mesmo a contragosto seguir o conselho de Shina.

Na rodinha dos cavaleiros de Ouro estavam todos em polvorosa. O banquete era de fato motivo suficiente para toda aquela animação, afinal poucas vezes todos ali comeram e beberam com tamanha fartura, mas o motivo principal da alegria estampada em seus rostos era sem dúvida a recuperação de Kiki. Por isso eles abusavam da carne e do vinho sem necessidade de moderação, ainda que para muitos ali a hora mais esperada do dia era a de cortar o bolo.

E quando enfim esta chegou todos cantaram parabéns para um Kiki vestido numa fofíssima fantasia de dinossauro, o presente dado por Geisty e Saga e que caíra no ruivinho festeiro como uma luva. Levitando num frenesi de felicidade contagiante, agarrado aos pescoços de Shaka e de Mu ele apagou uma velinha posta no topo da cabeça do T-Rex açucarado enquanto em meio a uma salva de palmas recebeu dos pais um beijo em cada bochecha. Não era seu aniversário, mas era de fato como comemorar um novo nascimento, e todos que estavam ali partilhavam desse mesmo sentimento.

Logo todo mundo tinha um pratinho na mão e degustava o bolo enquanto cantavam e dançavam as músicas brasileiras animadas que Aldebaran sempre colocava no CD Player quando o álcool já tivesse ajudado a soltar as juntas e os quadris da galera. Assim, ficava bem mais fácil dançar o ritmo da lambada ou os passinhos de Axé, os quais Touro ensinava aos amigos cheio de orgulho.

Por mais incrível que parecesse, o melhor dançarino dos passinhos era Máscara da Morte, seguido de Aiolia. O Leão só não ganhava do canceriano porque existia uma certo exibicionismo desnecessário em seu gingado, enquanto o outro vencia pela animação e completa falta de pudor. Já na lambada não havia quem superasse Mu e Geisty juntos, embora Shaka às vezes também impressionasse no bate coxa com o lemuriano, mas era preciso que ele tivesse tomado ao menos uns dois drinks coloridos para conseguir tão grande feito, e naquele dia o virginiano não ingerira nem uma gota sequer de álcool. Já Saga... no quesito lambada continuava sendo um excelente dançarino de tango.

Quem também era ótimo nos ritmos brasileiros era Afrodite, mas sem seu par de dança não era possível exibir seus dotes, ainda que tivesse matado com Geisty a sua vontade de dançar lambada, embora não exagerasse nos movimentos sensuais, como quando dançava a sós com Camus, para não despertar ciúmes em Saga.

Num dado momento em que Geisty dançava com o marido, Afrodite afastou-se um pouco da rodinha e deixou de observar os dançarinos para prestar atenção em outra dupla em específico. Misty e Camus conversavam ao longe e Peixes só faltou fazer leitura labial para tentar ficar a par do que os dois tanto falavam, mas foi só quando Camus levou a mão ao peito e seu rosto ganhou uma fisionomia um tanto dramática que ele matou a charada.

— Ah, Camy... você é um caso perdido mesmo, viado — suspirou Peixes revirando os olhos.

Os minutos se passaram com a lentidão de um caminhão carregado na subida, e quando finalmente Camus deixou Lagarto sozinho para ir atender a um pedido de Hyoga, que insistiu-lhe para que tirasse mais fotos de si com Kiki junto à mesa do fabuloso bolo de dinossauro, Afrodite aproximou-se dele, dessa vez por livre e espontânea vontade e um tanto mais de afronta.

— E aí, bicha? — disse ele sorrindo, porém não olhou para Misty e sim parou ao seu lado descansando as mãos na cintura enquanto mantinha os olhos presos em Camus, Hyoga e Kiki ao longe. — Já vi que rodeou o meu noivo o dia todo, feito o urubu do além Tejo que você é, até conseguir tirar dele o que queria.

Lagarto também não se deu ao trabalho de encarar Peixes no rosto. Como estava ele ficou e igualmente olhava para Camus tirando fotos das crianças em volta da mesa do bolo.

— Pois saiba que não foi preciso esforço nenhum, Escamosa — disse Misty sorrindo alegremente — o pobre coitado estava gritando por socorro praticamente, louco para poder desabafar um pouco com um amigo... e eu sou o melhor amigo dele, você bem sabe... talvez o único!

Afrodite riu alto.

— Acorda, Alice! Amigo é o meu edi!

Misty seguiu sorrindo e fingindo desdém.

— Quem precisa acordar é você, Peixosa... eu não devia, porque como amigo do Camus eu quero o melhor para ele, e o melhor para ele é se afastar de você, mas eu vou te dar um conselho... Se o ama mesmo, como diz, pense mais nele e não apenas em você, porque dessa vez, Afrodite, quase conseguiu mata-lo de fato.

— Ah, é isso que você acha, ovo mole de cria do Aqueronte?

— Não é o que acho, é que Camus me disse.

— Hum, e o que mais ele te disse?

— Que teve medo de morrer e deixar Hyoga nas suas mãos, sob sua responsabilidade.

— Sei... e ele te disse também que quebrou as regras milenares do treinamento dos cavaleiros de Aquário e me permitiu visita-los na Sibéria enquanto estiverem lá?

Misty enrubesceu e arregalou os olhos, surpreso. Involuntariamente ele olhou para o lado e deu de cara com Afrodite o encarando.

— Oh, pela sua cara de múmia bege ele não disse isso né? — disse com nítido deboche, e nessa hora riu alto novamente e jogando os cabelos para trás dos ombros num gesto bem espalhafatoso emendou: — Ué, mas vocês não são melhores amigas?

— Não me diga que você teve coragem de impor uma coisa dessa a ele, Afrodite?

— Impor? Ah, não, meu bem, ele me pediu para ir, porque ele me quer lá, ele quer dividir esse momento comigo e com o nosso filho — disse Peixes, depois fez uma pausa e suspirou sorridente. — Ah, é muito bom se sentir tão amada assim, sabia?

Nessa hora Geisty passou por eles e chamou Afrodite novamente para dançar, ele então correu até ela e a pegou pelo braço, deixando Misty ali remoendo tudo o que ouvira e tendo de lidar sozinho com suas amarguras e tentativa frustrada de desestabiliza-lo. Era como se a sorte não estivesse mesmo ao seu favor ultimamente. Não bastassem as investigações exaustivas pelo mundo atrás de armaduras que misteriosamente continuavam desaparecendo sem deixar rastro, e o trabalho dobrado no Templo das Bacantes, parecia que agora até o relacionamento de Camus com Afrodite tinha enfim encontrado seu eixo. Ademais, todos ali pareciam tão felizes e realizados... isso o irritava, o incomodava, em especial Camus o incomodava. Não era para ele estar feliz ao lado de Afrodite. Afinal, como alguém conseguia ser feliz ao lado de Afrodite?

Alheio tanto aos dilemas pessoais do cavaleiro de Lagarto quanto aos olhares carregados de rancor que este lhe direcionava de longe, em volta da mesa do bolo Camus cumpria o pedido de Hyoga com todo amor que lhe cabia, tirando fotografias dele e de Kiki que certamente ficariam guardadas para a posteridade. Ficou deveras impressionado quando viu o pequeno lemuriano, que ainda estava longe de regressar à sua melhor forma, com extrema facilidade levitar a si mesmo e a Hyoga para fazerem uma pose especial no ar. Sem dúvida, assim como tinha certeza que seria com Hyoga, Kiki se tornaria um cavaleiro forte e poderoso, o sucessor perfeito da armadura vestida pelo seu pai.

— Três, Dois... Um. Xiiis! — disse Camus batendo a foto em seguida, para a alegria dos meninos.

— Senhor Camus, dá uma cópia das fotos para o Kiki? Ele quer ter uma lembrança da despedida do Hyoga.

Oui. Farei isso — ele disse se agachando entre os dois — aproveitem bem esse dia. Vocês dois merecem. Hyoga estava muito preocupado com você, pequeno Kirian e eu sei o quanto ele esperou por sua recuperação.

— Sim — afirmou Hyoga um tanto tímido — e eu não queria ir para a Sibéria sem ter certeza de que você ficaria bem.

— E o Kiki está muito feliz por isso — disse o garotinho puxando o amiguinho para um abraço forte — o Hyoga é o melhor amigo do Kiki e ele vai sentir saudade.

— Eu também vou sentir saudades — disse Hyoga sorrindo.

— E o Hyoga vai demorar muito para voltar?

— Quando voltarmos à Rússia, Hyoga só voltará ao Santuário como Cavaleiro de Cisne — Camus respondeu. — Então o tempo só dependerá dele.

— Então faça o seu melhor e volte logo! — disse Kiki sorrindo para os dois.

— Tenho certeza que ele fará — Camus acariciou a cabeça dos dois garotos e se levantou. — Agora vão, aproveitem a festa.

Esperto, Hyoga tomou a câmera das mãos de Camus e propôs a Kiki que fossem tirar fotos com o padrinho dele, Afrodite, assim ele tinha uma desculpa para ficar mais um pouquinho perto de Maman Di sem que ninguém desconfiasse que partilhavam de uma relação mais do que íntima, familiar. Camus percebeu a estratégia do filho e de longe os ficou observando com o coração aquecido, pleno de amor.

As horas passaram mais rápido do que qualquer um ali gostaria. Se pudessem certamente estenderiam aquela festança noite adentro, madrugada e quem sabe até para o dia seguinte, mas muitos eram os compromissos e pendencias acumuladas, por isso algumas poucas horas após o anoitecer quase todos já tinham ido embora, salvo um ou outro festeiro que tinha exagerado no vinho e ficado por ali mesmo, tirando um cochilo no pátio.

Quem acabou extenuado devido aos excessos de comida, bolo, abraços apertados, beijinhos cheios de amor, alegria e risos foi Kiki, que já fazendo uma pequena manha procurou o colo de Shaka e finalmente desistiu de lutar contra o sono. O indiano chegou a pensar em leva-lo para casa, mas os servos encarregados da limpeza já haviam chegado e agora recolhiam tudo para cozinha, inclusive a louça e as Tupperwares que trouxera de Virgem, as quais não deixava ninguém botar as mãos. Tinha arrepios só de pensar que alguém poderia lavar seus preciosos potes com a parte áspera da bucha.

Sendo assim, Shaka adentrou o templo de Áries e seguido por Saravá Ebó levou Kiki para o quarto de Mu; retirou dele a fantasia de dinossauro, limpou suas mãozinhas e pezinhos com lenços humedecidos, deu-lhe um beijo na fronte e depois de longos minutos velando seu sono, desfrutando de uma sensação de paz que há tempos não experimentava, o deixou dormindo na companhia do gatinho preto e saiu do quarto.

Decidido a salvar os utensílios que trouxera de casa, Shaka tomou o rumo da cozinha à passos apressados, mas eis que no caminho sentiu um cheiro bem conhecido seu, de incenso de madeira de Ágar. Estranhou senti-lo justamente ali, na Casa de Áries, então curioso concentrou-se na fragrância e a seguindo chegou até o local onde Mu acondicionou todos os ícones budistas que tinha escorraçado de seu templo aos pontapés, inclusive a colossal estátua de Buda quase completamente destruída.

Correndo os olhos por todas aquelas imagens e oferendas de incensos e flores diversas, isso depois de ter testemunhado a fé grandiosa de todos que à sua maneira rogaram aos deuses pela vida de Kiki e naquela dia celebraram juntos a graça atendida, incluindo Mu, que nunca abandonara sua fé, Shaka pensou que deixara com que o medo e a dor falassem mais alto do que sua própria fé.

No entanto, ele sabia que creditava a esses dois sentimentos genuinamente humanos o sucesso da cura de Kiki.

Nunca fora fácil para o cavaleiro de Virgem colocar na mesma caixa o divino e o humano, corpo e espírito, e ele sentia que essa dicotomia o estava enfraquecendo, que era preciso que encontrasse uma forma de unir os dois polos e não separa-los como vinha fazendo e que talvez, só talvez, fazer as pazes com Buda fosse um bom começo.

Era nisso que Shaka pensava quando sentiu em meio a tantas fragrâncias fortes e diferentes o aroma inconfundível de lavanda.

Na mesma hora ele respirou fundo, inebriando-se daquele cheiro que embora estivesse mais do que acostumado surpreendentemente naquele momento tinha algo de diferente, um toque que há muito tempo não sentia; de almíscar lemuriano.

Mu, que dali observava o marido já a alguns instantes, cautelosamente se aproximou e o abraçou por trás depositando o queixo em seu ombro.

— O que faz aqui, Luz da Minha Vida? — sussurrou próximo ao ouvido de Shaka ao mesmo tempo em que acariciava suavemente sua barriga.

O cavaleiro de Virgem, com um brilho deslumbrante nos olhos, virou-se de frente para ele e divisou suas íris verdes sem nada responder. Até queria poder dividir com ele o que pensava minutos antes, pois sabia que Mu esperava por sua redenção com Buda mais do que ninguém, mas naquele instante sua urgência era outra, a paixão o dominava, o desejo queimava-lhe os lábios trêmulos, e ele precisava deixar seu amor por aquele homem respirar.

Com o coração palpitante Shaka passou ambos os braços para as costas de Mu e apertou-o forte contra seu peito, então beijou seus lábios com indômita e irrefreável paixão, esta que era do tamanho de sua saudade.

*Este incenso tradicional tibetano de agarwood é 100% natural. A madeira de agarwood é considerada a madeira dos Deuses, é usado para queimar como oferenda aos deuses e como auxílio à meditação em diferentes cerimônias religiosas. Traz um efeito calmante sobre a mente. Sua composição é muito eficaz, não tóxico, sem aditivos químicos e compostos naturais e preparado inteiramente à mão de acordo com o antigo sistema de cura tibetano. Cada vareta dura aproximadamente 60min.

* almíscar lemuriano - No universo do Templo, os Lemurianos / Muvianos tem características diferentes dos humanos por serem outra espécie, isso inclui detalhes da reprodução, tanto anatômicos quanto fisiológicos, e um deles é que os machos têm almíscar, um perfume / cheiro característico no suor deles que é afrodisíaco, principalmente liberados quando há excitação ou interesse sexual. (O almíscar no mundo real provém de uma secreção glandular com cheiro forte e específico que certos animais específicos para atrair seu vetor).