Até que a morte os separou...
— Flor, você tem visibilidade? — Perguntou Albatroz pela escuta em seu ouvido.
— Clara e perfeita — respondeu ela. — Ele está saindo da casa. Se mantiver a rotina que temos observado desde o início da semana, vai para a mesa da varanda. Assim que sentar lá, eu faço o serviço.
— Estou te esperando com o carro ligado.
— A porta está abrindo... — Beija-flor apoiou o rifle de precisão sobre a mureta atrás de onde estava escondida e colocou o olho na mira.
Mal o homem deu alguns passos para fora de casa, uma garotinha que não devia ter mais de cinco anos correu atrás dele e o abraçou.
O homem sorriu com o carinho dela e a ergueu do chão com um abraço fraternal. Quase não teve tempo de soltá-la quando outra veio de dentro de casa e fez o mesmo. Gêmeas. Completamente à vontade com o pai.
No relatório havia uma reclamação do filho mais velho dizendo que o pai agredia as meninas e por isso ele o queria morto, mas Beija-flor não localizou nem mesmo um arranhão nos corpos expostos pelos shorts e camisetas dos pijamas que elas usavam. E a atitude tranquila delas, na presença dele, não era condizente com os relatos de violência.
Era a primeira vez que via as duas pessoalmente. Até então ela imaginou que estavam sendo mantidas longe do homem em segurança na casa de algum parente. Ele ocupou o lugar previsto pela mulher. Posição perfeita para um tiro limpo assim que as crianças se afastassem. Mas ela hesitou. Havia alguma coisa errada.
Não era um terrorista ameaçando um grupo de pessoas num trem, metrô ou shopping lotado. Era um pai carinhoso tomando café da manhã com as filhas. Beija-flor desmontou o rifle, o guardou e correu para o carro.
— Feito? — Perguntou Albatroz assim que ela entrou.
— Não consegui.
— Como assim não conseguiu?
— Tem alguma coisa errada Alba... tem duas meninas com ele e aquele homem... — ela estava com dificuldade para verbalizar o que estava pensando. — Aquele homem... não é..., mal...
— Ah, tenha paciência... é sério isso? — Albatroz bateu com as mãos no volante. — Me dá isso aqui!
Ele tentou tirar a mochila com o rifle da mulher, mas ela a abraçou com força.
— Todo mundo já deve estar acordado... não vamos conseguir fugir se você for lá agora — retrucou ela com os olhos fechados.
— Não acredito que te bateu senso de moral bem agora... estamos quase sendo promovidos!
— Olha no que estão transformando a gente! Assassinos de aluguel! Quem sabe os motivos que levaram aquele cara a encomendar a morte do pai?
— Parece que ele maltrata as filhas, sei lá! — Albatroz não escondia a irritação na voz.
— Elas pareciam muito à vontade e felizes com dele e não vi marca em nenhuma delas — a mulher falou trincando os dentes tentando lidar com a raiva que sentia. — E com a lente dessa mira eu conseguiria ver uma mosca pousada sobre as tortas que estavam naquela mesa. Não estão sendo totalmente honestos com a gente.
— QUE DIFERENÇA ISSO FAZ? — Ele gritou.
Beija-flor ficou em choque com a declaração do namorado e decidiu parar de discutir. Com raiva e em silêncio, Albatroz dirigiu de volta para o centro de treinamento.
— Tem ideia do quanto a atitude de vocês custou?! — O supervisor estava visivelmente transtornado quando terminou de ouvir o relato da missão falha. O questionamento de Beija-flor sobre o assassinato do homem inocente não ajudou nenhum pouco a melhorar a situação.
— Levem os dois daqui — ele ordenou aos guardas parados ao lado da porta. — Reclusão na caixa de concreto por tempo indeterminado. Espero que aprendam alguma coisa depois disso.
O casal fez o percurso todo em silêncio enquanto era escoltado para uma cela sem janelas trancada com porta de ferro com uma pequena abertura perto do chão por onde cada prisioneiro recebia apenas uma porção individual de ração militar por dia.
Era também a única fonte de luz da cela. Eles já tinham visto o lugar, pois uma vez durante o treinamento todos eram levados a conhecer o seu destino caso não cumprissem as ordens.
O primeiro guarda abriu a porta e o segundo empurrou os dois para a escuridão. Ambos caíram no chão fazendo um som abafado, mas não reclamaram do tratamento recebido.
— Me perdoa, Alba — pediu a mulher ao perceber pelo barulho das botas, que os guardas já estavam longe.
— Eu não quero falar com você — o homem encostou num dos cantos da cela.
— Por favor... eu devia ter imaginado que as coisas acabariam sendo assim — ela tentava encontrar o namorado engatinhando pela escuridão. — Isso de se achar justiceiro... que está fazendo por um bem maior... quando na verdade não somos nada mais do que assassinos de aluguel. Alba... — ela finalmente sentiu os coturnos dele com seus dedos.
— Eu já disse que NÃO QUERO FALAR COM VOCÊ! — O chute que Albatroz desferiu em Beija-flor por pouco não acertou sua boca passando a poucos milímetros do seu queixo. A sola do coturno atingiu o ombro direto dela a arremessando para o lado oposto de onde ele estava a fazendo se chocar contra a parede.
Mesmo assustada com a reação, ela voltou para perto dele.
— Alba, por favor. Me perdoa — dizia ela enquanto se arrastava ignorando a dor. — Vamos dar um jeito de escapar daqui. Fugir para bem longe deles. Podemos ter uma vida feliz juntos longe disso tudo — Beija-flor se apoiou nos joelhos dele e olhou na direção de seu rosto oculto pela escuridão — Eu te amo.
— Nosso lema não significa nada para você? — Ele agarrou os pulsos dela. — Eu não quero uma vida de almoços de domingo na casa da vovó!
— Eu não vou me tornar uma assassina de aluguel só para jantar ao redor do mundo! — Afirmou ela enquanto era erguida contra a sua vontade pelo homem que ficou de pé.
— Então fique fora do meu caminho — Albatroz andou até a parede oposta arrastando Beija-flor pelo chão e a atirou com as costas contra o concreto. Depois tentou desferir um soco no rosto dela, mas sem enxergar o que fazia acabou acertando sua têmpora esquerda.
Ainda motivado pela raiva, o homem chutou a mulher várias vezes a obrigando a se encolher em posição fetal para se proteger. As lágrimas inundaram os olhos dela em um choro silencioso. A agressão durou alguns minutos e só parou quando ele se cansou.
No dia seguinte, Albatroz foi levado para fora da cela e não voltou mais.
A última esperança também veio de um pássaro...
— Ele voltou para terminar o serviço, e terminou. Mas você não vai se lembrar de mais nada...
Beija-flor acordou com um homem abaixado do seu lado na cela segurando um bisturi com luvas de látex protegendo as mãos. Pelos seus cálculos baseado na alimentação servida uma vez por dia, fazia mais de um mês que ela estava sozinha ali.
— Não, não, não, não, por favor, não...
A visão dela estava embaçada graças ao tempo que passou no escuro e agora precisava se acostumar com a luminosidade que entrava pela porta da cela totalmente aberta, mas mesmo sem conseguir enxergar direito ela sabia quem ele era. Todos sabiam. Pássaro Azul. Nome bonito para a função que ele exercia.
Diziam que muito tempo atrás ele também foi treinado para matar, mas por algum problema que ninguém sabia com certeza qual era, fora sentenciado a uma vida sem os privilégios dos outros apesar de executar uma função semelhante de forma interna.
— Você sabia o que te esperava quando se recusou a eliminar o alvo — sem ligar para as queixas da mulher, ele puxou os cabelos dela com violência exibindo uma pequena cicatriz em sua nuca. — Vai doer menos se você ficar quieta — ele fez um corte rente à cicatriz e com uma pinça retirou o minúsculo dispositivo eletrônico com reservatório embutido.
Instintivamente Beija-flor pressionou o local com uma das mãos quando Pássaro Azul se afastou. Uma sensação de formigamento começou a se espalhar por baixo de sua pele. Ele guardou o dispositivo com cuidado dentro de um frasco de vidro com tampa e colocou no bolso do casaco preto que usava.
— Venha — ele ajudou a mulher a ficar de pé.
— Achei que fosse me matar... — ela passou o braço sobre os ombros dele sem conseguir se firmar por conta da tontura.
— São as minhas ordens — seu rosto era inexpressivo. — Mas é muito mais fácil tirar você daqui viva do que te carregar morta até lá fora.
— O que tinha nessa coisa que você tirou do meu pescoço? — A mulher acabou preferindo manter os olhos fechados enquanto eles andavam pelo corredor bem iluminado.
— Já te disseram que você faz perguntas demais?
Beija-flor tentou se lembrar, mas não conseguiu. Sua memória era uma bagunça onde ela preferia não tentar entrar.
Às vezes tinha pesadelos com lugares onde nunca havia estado, ou achava que nunca estivera, mas sempre tinha o carinho de Albatroz dizendo que devia ser apenas efeito colateral das injeções que eles recebiam depois de cada trabalho. Pensar no ex-namorado fez seu peito doer.
— Ainda bem que hoje são poucos — Pássaro Azul comentou com um dos guardas assim que passou pela porta da casa caminhando em direção à picape pela terceira vez naquela tarde.
Ele jogou a mulher de maneira bruta na carroceria aberta ao lado de outras duas pessoas. Beija-flor agradeceu por estarem cobertos, pois não queria a dor de saber a identidade dos outros eliminados nos seus últimos momentos de vida.
O homem subiu na carroceria, amarrou as pernas dela uma à outra usando um lacre de plástico. Depois fez o mesmo com as mãos. Por fim ele abaixou o seu corpo sobre o da mulher de forma a ocultar o que estava fazendo.
Beija-flor sentiu medo e percebeu alguma coisa sendo colocada por baixo do cós da sua calça enquanto o rosto do homem ficava cada vez mais próximo ao dela.
— Use o canivete para cortar as amarras — ele sussurrou. — E procure por Sherlock Holmes. Ele é o único que pode acabar com isso. Está me ouvindo?
— Sherlock Holmes — ela repetiu.
— Sherlock Holmes — ele confirmou satisfeito. — Agora você precisa dormir.
— Já terminou de carregar? — Gritou um dos guardas caminhando na direção da picape.
— Quase lá! — Pássaro Azul mostrou uma seringa que enchia com o líquido de dentro de um frasco. — Isso não é veneno, troquei por sedativo. Mas você precisa sobreviver ao que está por vir — sussurrou de novo ao ouvido dela. — Seja forte e procure por Sherlock Holmes.
— Sherlock Holmes — repetiu Beija-flor várias vezes enquanto sentia a agulha perfurar sua pele e o efeito anestésico se espalhar pelo corpo.
— Não sei para que envenená-los quando vamos jogá-los na água... — o homem que fizera a pergunta olhava Pássaro Azul retirar a agulha da seringa já vazia do braço da mulher.
— Já pensou o escândalo que seria se algum deles conseguisse se soltar e se salvar? — Ele cobriu a mulher com uma parte da mesma lona que ocultava os outros.
— Verdade — concordou.
O homem entrou na cabine enquanto o executor fechava a tampa da carroceria e pulava para fora dela assumindo em seguida o seu lugar de carona.
— Podia ser um tiro então... — ele colocou a chave na ignição. — Mais rápido.
— E com vestígios suficientes para ser investigado — Pássaro Azul cruzou os braços. — O veneno simplesmente vai embora com a correnteza e ao final os ossos também se dispersam.
— Cara, às vezes eu tenho medo de você — disse o guarda com ironia na voz.
O algoz apena riu.
— Já reparou como temos cada vez menos gente para desovar? — Perguntou ele depois de dar a partida no carro e colocá-lo em movimento.
— As pessoas estão cada vez mais fazendo qualquer coisa por dinheiro...
Nota da autora: Agora vocês sabem o que aconteceu com a Audrey antes dela se encontrar com Sherlock e John para pedir ajuda. Se a droga não tivesse funcionado e ela tivesse conseguido manter as lembranças, o detetive nem precisaria ter deixado o apartamento para resolver tudo. Infelizmente não foi assim que aconteceu, e mesmo sem que Sherlock tivesse a intenção, acabou colocando a vida dela em risco.
Imagino que vocês devem estar querendo saber o que aconteceu depois que ela foi baleada. O próximo capítulo começará exatamente naquele momento.
