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O que posso dar a alguém é alguma protecção e habilidades de sobrevivência. É tudo o que sei. E não é preciso muito mais.

9 anos de idade

Uma mulher entrou no pub de Martha. Era nova, estava ligeiramente suja e no geral era completamente banal, com cabelo fino a cair até aos ombros. Mas assim que entrou, todos os olhares se voltaram para ela e um murmurinho desconfortavelmente interessado espalhou-se pelo sítio.

Kenny ignorou-a e acendeu o cigarro, mas foi praticamente o único a fazê-lo. Os homens partilharam comentários que eram tudo menos sussurros, e dois ou três assobios ecoaram de origens incertas. A mulher permaneceu junto ao balcão e só falou com Martha, que se comportou exactamente da mesma maneira que se comportava com qualquer cliente.

Dois homens sentados no balcão voltaram-se para a mulher, a rir e a flertar, um deles levantando-se e aproximando-se numa direcção inquestionável.

- Ah, temos novas vistas por-

Kenny viu como o homem não foi o único a levantar-se, sorrindo para si próprio enquanto Levi conseguiu deslizar sem qualquer esforço pelo pub e saltou casualmente para o banco mesmo ao lado da mulher, como se por acaso calhasse a ser o único lugar livre disponível. Os reflexos do homem não eram tão apurados quanto os de Levi, por isso ele esbarrou mais ou menos contra o miúdo.

- Ei. Vai p'a outro lado, fedelho.

- Tu é que estás a ir para o lado errado. Não te chegues ao pé de mim ou vais deixar-me sujo. Dá a volta e pisga-te.

O homem pestanejou, dedos a enrolarem-se em torno da caneca de cerveja.

- 'Tás-te a esticar, puto. Achas-

O sibilar afiado funcionou de forma igualmente eficaz para que todos os olhares se movessem naquela direcção. Levi puxou a faca, deixando uma ferida propositadamente superficial no antebraço do homem e fazendo-o saltar para trás com um uivo espantado.

Do seu posto, Kenny riu por entre uma nuvem de fumo. Assim é que se faz, puto. Observou, divertido, como os outros homens subitamente regressavam aos anteriores temas de conversa, enquanto o homem do balcão estava a praguejar em voz baixa. Tentou encarar Levi, que o fulminou com o olhar sem qualquer receio em silêncio, uma ameaça agora já sem precisar de ser implícita. Haveria um fino brilho escuro na lâmina na sua mão. Se não fosse por isso, ele estava apenas no seu estado habitual sem expressão, olheiras perpétuas sob os olhos mas no geral apenas um miúdo fofo de cabelo comprido, os pés a balançar muito acima do chão enquanto estava sentado no banco alto.

Estica-te e o miúdo fofinho de cabelo comprido dá-te uma facada.

Assim é que é, Levi.

- Bem, é isso, não é rapazes? - comentou Martha, descartando o homem. - Ainda têm cervejas, não têm? Há muito espaço na outra ponta. Tu, Levi, queres uma cerveja também?

- Quero é um pano ou assim, há sangue no teu balcão.

A mulher recém-chegada olhou para Levi, incapaz de esconder a expressão surpreendida do rosto enquanto Martha lhe entregava um pano húmido e uma cerveja e o rapaz começou de imediato a esfregar as manchas antes que elas secassem. Ainda estava a segurar a faca numa mão, e nem sequer tentou olhar para a mulher para se gabar da sua intervenção ou algo do género. Ignorou-a efectivamente, e a mulher permaneceu em silêncio também.

Alguns comentários estavam agora a ser sussurrados enquanto Levi limpava o sangue da lâmina e guardava a faca novamente. Kenny ficou satisfeito por ouvir o burburinho diminuir ainda mais quando ele se levantou também e se aproximou, juntando-se a Levi com o cigarro preso entre os dentes.

- Martha querida, isto é pelas nossas cervejas e pela da senhora - largou as moedas no balcão e acenou casualmente à mulher, cujos grandes olhos castanhos mal olharam na sua direcção. - Saúde.

Sendo quem era, Kenny rapidamente começou a falar alegremente com o pessoal, aliviando o ambiente partilhando histórias embaraçosas e ridículas. Levi não saiu do lugar até a mulher sair, três cervejas à sua frente. Estava a entreter-se com um caderno que Martha lhe emprestara, escrevinhando uns números e fazendo contas e abanando os pés sob si como uma criancinha.

Bem, ele era mais ou menos uma criancinha, afinal.

A bartender Martha aproximou-se da mesa de Kenny com uma taça de petiscos secos, a sua cara larga mais séria do que o habitual. Kenny não lhe ligou. A bartender não era nenhuma idiota, obviamente, para ter um estabelecimento como aquele, por isso Kenny estava ciente que, para começar, ela sabia a sua verdadeira identidade, mas nunca fizera nenhum tipo de comentário sobre isso. O pessoal do Submundo não se importava muito se os MPs fossem mortos, afinal de contas.

- 'Tás a educar aquele miúdo bem, Kenny.

O que quer que fosse que estava à espera de ouvir graças àquela expressão, aquilo não era de certeza. Kenny semicerrou os olhos e resfolegou audivelmente, enfiando a mão na taça antes de ela a pousar na mesa e atirando um petisco para a boca. Acertou-lhe na bochecha em vez disso e ele riu-se de si próprio, sentindo o sal espalhado na pele.

- Ah, cala-te, Martha. Os teus apaparicos não funcionam em lixo como eu.

- É só algo p'a te lembrares, quando ambos precisarem - acrescentou ela.

Kenny riu, um pouco bêbedo, e ignorou-a.

...

- Vai dormir, miúdo.

Levi estava sentado no seu colchão encostado à parede húmida, uma figura negra, silenciosa e enervante fixada nele. Kenny estava meio a dormir à sua frente, esticado no sofá com o seu chapéu caído sobre a cara. Levi apagara as velas há um tempo, por isso tinham estado imersos na luz ténue vinda da janela há tempo suficiente para serem embalados para o sono. Para Kenny ser embalado para o sono, pelo menos.

O homem ainda estava agradavelmente bêbedo depois da tarde na Martha, por isso era mesmo altura de descansar e mesmo não altura para Levi ter um dos seus humores esquisitos ocasionais. Levi não falara sobre o episódio com a mulher no pub, e os seus humores manhosos faziam-no pensar em todo o género de coisas e ter pesadelos ou assim. Se ao menos o miúdo conseguisse ficar bêbedo também, podiam os dois descansar.

Em vez disso ele estava ali, a lutar contra o sono como sempre fazia. Nunca se havia de livrar daquelas olheiras, claramente.

- Deita-te, é tarde e temos de trabalhar amanhã.

- Como é que conhecias a minha mãe, Kenny?

Kenny abriu um olho, a visão desfocada voltada para Levi. O riso que soltou fez o peito vibrar e conseguiu mais ou menos sentir o álcool balançar no estômago.

- Ah, eu sabia.

- Sabias o quê?

- És demasiado básico, puto.

- O que raios é que isso quer dizer?

Riu de novo, reajustando o chapéu. Este sofá era só a perfeição de conforto neste momento, a luz ténue tão convidativa. Às vezes a vida não era assim tão má quando se estava bêbedo e com sono, hã.

- Kenny.

...Excluam miúdos do cenário perfeito.

Kenny expirou em silêncio, bocejando.

- Não devias perguntar coisas que não queres saber, miúdo.

- Já não sou um miúdo. Não sejas condescendente.

- E se eu fosse um dos clientes da Kuchel, hã?

- Só dizes merda.

Kenny estava tão cansado que tudo o que conseguiu fazer foi rir e deixar Levi pensar o que ele quisesse.

- Além do mais, não bates em mulheres.

Demorou longos segundos a processar as palavras, a respiração pesada e carregando-o para o sono. Moveu o chapéu de novo, tapando os olhos.

- Não generalizes. Eu também mato mulheres.

- Como é que a conhecias? Não consigo imaginar a minha mãe a aturar-te.

- Se calhar foi por isso que morreu sozinha, hã puto.

Kenny não pensou muito mais antes de adormecer, boca escancarada e corpo pesado de cansaço, deixando Levi a fixá-lo, pálido e desolado. A luz ténue permitia que vissem pouco mais do que os contornos um do outro. Não viu como o corpo de Levi estremeceu ligeiramente e o rapaz lhe voltou as costas num movimento feroz e assustado, um gemido abafado ao enrolar-se sob o cobertor, nem todos os pesadelos precisando de sono para o atingir.

...

Não posso ser pai de alguém.
Sempre soube disso, nunca o questionei ou duvidei.

10 anos de idade

O cabelo de menina tinha desaparecido. Levi parecia-se com o pré-adolescente insolente que era. Decisão dele, não de Kenny. Na única vez que fizera um comentário sobre o cabelo de Levi, recebera um pontapé na canela e por alguns momentos ficara mesmo a coxear. Kenny não era estúpido para só andar por aí à espera de levar pontapés do anão; além disso, não se importava com o que Levi preferia ou não. Ele que fizesse o que quisesse.

- O meu pescoço está frio.

Kenny voltou os olhos para Levi, a boca de momento cheia de cerveja e caneca já a despejar mais. Aguardou pacientemente até estar tudo guardado em segurança na sua barriga antes de arrotar, muito para irritação de Levi.

- Encantador.

- Pára de reclamar.

- Pára de te comportares como um cavalo, porra.

- Quero dizer p'a parares de reclamar do cabelo. Não gostas, não o cortasses.

- Não estou a reclamar, só ainda não estou habituado. - A mão voou para a nuca, agora rapada. - É mais prático. Além disso, assim as pessoas param de me chatear.

Kenny arrotou de novo, desta vez com menos espectáculo.

- 'Tás mesmo preocupado com o que as outras pessoas pensam?

- Não.

- Porque não é suposto 'tares. Não faças isso, Levi, porque isso é estúpido. Quem é que quer saber o que as pessoas pensam. Já viste os nomes retardados que me dão? Achas que me preocupo?

- Preocupas.

- A- Bem, não é isso que quero dizer! Não me preocupo preocupo, é só irritante. Então e quando alguém te chama de pequeno, hã?

- Se eu gostar da pessoa, não posso mesmo dizer que estão a mentir. Mesmo que me irritem ou assim, depende se me importo com eles ou não. Posso só dizer-lhes para se calarem.

- Não desvies a conversa, miúdo! 'Tamos a falar sobre não te importares as pessoas são uns retardados do caralho contigo!

- Preocupas-te com as coisas que te chamo?

- Ah! Porquê que me havia de preocupar?

- És um velho inútil e estúpido, mas fazes coisas bem de tempos a tempos. Não muito.

- Bah, cala-te.

- Estás a ver.

Kenny olhou para Levi, à espera de o ver apontar para alguma coisa, mas em vez disso, estava só a olhar para a frente. Kenny chegou mesmo a olhar para onde ele olhava, sentindo-se estúpido ao fazê-lo.

- Já te disse, não és tão esperto como pensas. - Levi voltou-se para ele, o mesmo ar zangado do costume nos olhos, mas a porra do miúdo espertinho estava todo triunfante e a festejar mentalmente, Kenny tinha a certeza.

E apercebeu-se do quanto Levi se parecia mesmo com Kuchel. As mesmas feições, os mesmos olhos, expressões parecidas quando Levi permitia que se visse expressões. Era meio estonteante, especialmente agora que tinha cortado tanto o cabelo. Podia não ser o melhor aspecto ou o mais seguro para um miúdo no Submundo, mas ei, o próprio Kenny era bonitinho o suficiente e sobrevivera, não foi? Na verdade fazia-lo parecer mais velho. Kuchel teria gostado de ver a semelhança entre ela e o seu filho.

Kenny teve de admitir derrota e riu para si próprio. Então atirou a mão ao cabelo de Levi, ainda suficiente para ser despenteado e atirou-o ao chão.

- Ei! Pára com isso!

- Ah meu sacaninha. A quem 'tás a chamar velho, hã?

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continua

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Nota: Outras histórias que 'acontecem' durante os eventos deste capítulo:

- 'Lembranças e destroços' acontece entre o fim deste capítulo e o começo do próximo
- tal como 'A Conversa'