Nota: Não acho que haja natal no mundo de SNK (apesar das cenas oficiais e assim. Isso é para os fãs. Não faz sentido contextualmente). Mas podem haver festividades, especialmente perto do fim do ano. Acho que sim pelo menos, por isso escrevi.
O Levi em pequeno a lutar lembra-me a Lisbeth Salander. Gente pequena que não desiste.
Nota pt-pt para pt-br:
- 'gozar' é o mesmo que 'zoar', 'debochar', não tem nada a ver com o significado pt-br
- 'nódoas negras' é o mesmo que pisadura, machucado.
Avisos: Violência e morte.
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- Kenny! - a voz dele quebrou mais do que Levi alguma vez iria admitir, mas toda a gente ouviu. Ele sabia que Kenny estava a ver, do topo de umas escadas e a olhar para a cena no pátio, mas ele também sabia que Kenny não ia fazer nada para ajudar. Por isso o facto de o ter chamado já era bastante claro por si só.
Bem, eram quatro contra um, todos miúdos maiores do que ele. Era natural que ele estivesse assustado. Mas ele tinha de aprender a escolher as lutas. E estava a aprender.
Mas o miúdos eram inacreditavelmente irritantes, até para Kenny. O líder do grupo, um adolescente loiro bonitinho, fora quem Levi inteligentemente tentara derrubar primeiro, mas calculara mal a interferência dos amiguinhos. A cara estava a sangrar bastante e os movimentos dele tinham abrandado por causa dos golpes que iam virar nódoas negras feias dentro de pouco tempo, mas Kenny sabia que a maior preocupação dele era provavelmente sujar a blusa esfarrapada que ele guardara com tanto carinho dos seus dias de infância. A maior preocupação devia ser não levar pancada, não a porra da roupa.
Os rapazes riram ao altos berros por o ouvirem gritar, gozando com ele. Nunca mostrar fraqueza, mas quantas vezes é que Kenny lhe dissera isso?
- És cá um bébezinho!
- Boo-boo!
- Ha ha, o Levi é um chorão!
O líder loiro cacarejou mais alto do que o resto: - Vêem, é assim que se faz. Olho por olho, seu miúdinho burro.
Levi cuspiu na cara do líder, mais sangue do que outra coisa, e saltou-lhe para cima, esmurrando o loiro até ter de ser literalmente arrancado de cima do rapaz mais velho pelos outros três, que o puxaram pelo casaco e o pontapearam repetidamente até o atirarem de novo ao chão.
- Sabes que mais, ninguém vai acreditar que fomos nós que lhe demos porrada a menos que o mostremos - um dos miúdos disse ao líder enquanto o loiro se levantava, também com a cara ensanguentada. Sorriu e olhou à volta, à procura de alguma coisa.
- Ei, traz-me aquilo.
Kenny seguiu com os olhos para onde o miúdo estava a apontar e viu-o ir buscar a faca de Levi que tinha sido roubada antes. Pegou-lhe com um floreado ridículo, absolutamente nada a ver com a facilidade e talento natural de Levi a empenhá-la. Este tentava demasiado ser intimidante, mas a performance resultava bem o suficiente quando tinha companhia para o apoiar.
- Então, Levi... cortaste o teu cabelinho de menina agora, mas ainda te pareces com uma, n'é? O que vamos fazer quanto a isso...?
Levi simplesmente não desistia. Acertou com um murro num dos rapazes, atirou um cotovelo contra o estômago de outro e tentou levantar-se, voltando a perder. Não ia voltar a ser apanhado por outros miúdos no futuro próximo, Kenny conseguia ver bem na fúria e na dor nos seus olhos. Ia também provavelmente aprender a carregar mais do que uma faca, como é suposto.
- 'Tás estúpido com esse cabelo, aposto que ficas melhor sem ele. Fica quieto e não te corto a cara.
Ok, ok, que irritante.
- Oi rapazes! Vamos lá acalmar os ânimos um bocadinho, hã?
O líder voltou-se para Kenny, a cara emproada e corada de excesso de confiança ao olhar para o homem mais velho que descia os degraus. Levi também olhou para cima, mas a imagem não ajudou exactamente a aplacar a sua raiva. Kenny tinha a certeza que era o contrário.
- Não te metas, cota. - Dois dos rapazes empurraram Levi de novo para o chão quando ele se tentou levantar.
- Ah, vá lá! Não sou assim tão velho! Além disso, vocês já fizeram o que tinham a fazer, puseram o estuporzinho no seu lugar. Vamos terminar as coisas por aqui, o que vos parece?
- Vai-te foder, Kenny. - Ooooh Levi estava zangado. Kenny teve de sorrir.
- Queres levar o teu protegidozinho, é, Kenny? - perguntou o líder, ainda ligeiramente ofegante. - Nunca gostei de vocês os dois.
- Achas que me preocupo? Eu também não gosto de mim! Vá rapazes, eu resolvo este tipo de coisa d'outra forma. Sabem aquele bordel aqui perto? As vossas frustrações todas saem que é uma maravilha. Já lá foram antes? Eu deixo-vos experimentar e pomos isto p'a trás das costas, parece-vos bem?
Os rapazes trocaram olhares e riram-se na cara dele, enquanto Levi ficou absolutamente lívido, puro ódio silencioso a acumular-se. Ele achava que Kenny estava a falar a sério.
Ah, miúdo estúpido.
- Como se fossemos acreditar em ti - cuspiu um dos rapazes.
- 'Tou falar a sério, eu 'tou a ficar um bocado velho, não vou lutar convosco, rapazes. Vamos despejar as nossas energias agressivas noutro lado e continuar amigos. - Os rapazes continuaram a sorrir com superioridade, todos presunçosos e poderosos como se tivessem a vantagem na luta e no resultado. - Oh, ok, mais umas palmadinhas parece-me justo. Uma para cada, hã? Deixem-me só ser eu a começar porque ele ignorou tudo o que eu lhe 'tou sempre a dizer e ele merece levar uma.
O líder olhou para um dos outros rapazes e soltou uma gargalhada, vendo Kenny aproximar-se de Levi, ainda espalhado no chão.
- Ok, acho que posso aceitar isso - riu o líder de novo, voltando as costas a Kenny e olhando para Levi. O cabrãozinho queria ver a tareia que achava que Kenny ia dar a Levi. - Mas posso cortar-lhe o cabelo? Podemos acertar isso também?
- Yá o que quiseres - disse Kenny desinterassado, a mão a voar para a boca do rapaz e lâmina a deslizar mais rápido do que um piscar de olhos. Sangue jorrou violentamente da garganta dele e acertou em Levi e nos rapazes, estes últimos que saltaram para trás de imediato aos gritos, os olhos esbugalhados em choque. A casualidade com que Kenny olhou para eles deixou os miúdos brancos. - Ou isto também funciona, não é rapazes?
Puxou os ombros para trás, enxotando a actuação irritante enquanto os rapazes gritavam e esbarravam uns nos outros, fugindo tão depressa quanto conseguiam e deixando o seu líder agora morto cair contra os degraus.
- Estes miúdos de hoje em dia - suspirou Kenny, girando a lâmina como de costume. Uma tossidela fê-lo olhar para baixo para Levi, que estava a levantar-se de novo, os braços e mãos abertas como fazia quando se sujava com alguma coisa. - E tu-
- Vai-te foder.
- Ora porra que não tens de quê, seu fedelho mal-agradecido - cuspiu Kenny em resposta quando Levi o empurrou para fora do caminho, a coxear ligeiramente e a praguejar baixinho. Não olhou para o rapaz loiro descartado sobre um rasto cada vez maior de sangue sobre os degraus, voltando a tossir e cuspindo sangue da boca.
- Preciso de me lavar.
- 'Tá calado.
- Preciso de tirar isto de cima de mim. Estou a falar a sério, Kenny.
Kenny descartou o assunto. Como se fosse a primeira vez que ele ficava ensanguentado. Eram só umas porras de uma gotitas! Tinha bastante sangue seu de qualquer das formas. - Pára de seres um maníaco das limpezas, precisas é de começar a prestar atenção aos amigos dos alvos em vez disso, tu-
- Posso ficar doente.
- Do quê? - perguntou Kenny aos gritos, encolhendo os ombros teatralmente. - A sério, miúdo!
Levi girou sobre os calcanhares, nojo misturado com raiva ao mostrar-lhe a cara e o peito. O que para Kenny não era forma nenhuma de resposta. - Tu atiraste-me o sangue dele para cima, caralho!
- Ora muito obrigada! Tu até te rebaixaste ao ponto de gritares por mim, não é suposto fazeres isso! Eu não te volto a ajudar, 'tás-me a ouvir? Ninguém te pode dar poder, tu é que tens de o arranjar! E quanto à tua treta do sangue, isso é só se o sangue se misturar ou assim, pára de ser tão anormal e foca-te no que é importante.
Aquela não era bem a resposta que Levi queria ouvir, e juntamente com todos os eventos dos últimos dez minutos, podia estar mais perto de lhe berrar aos ouvidos ou simplesmente tentar espancar Kenny até os seus hematomas o obrigarem a parar e a tossir por ar.
Mas claro, era de Levi que estávamos a falar. Só se pôs de trombas até os olhos desaparecerem sob as sobrancelhas e sibilou ameaças de morte geladas, conteve a dor e foi-se embora a correr mais depressa do que Kenny conseguia ou queria acompanhar.
- Não tenho tempo p'ás tuas merdas de adolescente! - ainda gritou Kenny, irritado.
Demorou o seu tempo, não querendo muito aturar Levi agora. Quando chegou ao esconderijo, Levi tinha esfregado ferozmente o corpo de qualquer vestígio visível de sangue, o cabelo ainda húmido e caído sobre a testa. A blusa esfarrapada e o casaco estavam a secar pendurados da prateleira, e em vez delas tinha enfiado um pano fino qualquer sem mangas pela cabeça e estava profundamente concentrado em limpar cada pedaço do esconderijo como se tivesse sido contaminado por associação. Kenny quase que podia apostar que ele estava a esfregar o chão com tanta força quanta usara para arrancar o sangue de cima de si - as manchas rosadas na pele, visíveis por entre as nódoas negras que se formavam, eram um sinal bastante claro disso.
- Não entres - avisou ele de imediato antes de Kenny pôr o pé no chão. - Estou a limpar. Vai chatear outro.
Kenny estava prestes a reclamar mas decidiu não o fazer, reparando no quão nítidas as nódoas negras na cara de Levi já se estavam a tornar. Também devia de estar com dores no corpo, mas isso não travaria aquele exorcismo de limpeza obsessiva, pegando no balde de água e levando-o para perto da entrada.
- Tsk, devias descansar não achas? - Claro, foi ignorado. Kenny suspirou. - Argh, porquê que és tão teimoso, porra?! Agora sabes que não deves subestimar ninguém, fedelho, e-
- Vai à merda, Kenny!
- E porquê que 'tás tão zangado afinal? Eu percebo que 'tejas dorido, mas tu-
Aconteceu tão depressa que nenhum dos dois percebeu bem. Levi largou o balde e atirou a escova que acertou em Kenny em cheio na testa. A escova saiu a voar e a girar, atirando o chapéu de Kenny ao chão e deixando-o a pingar água suja e espuma. Um segundo inteiro depois, a escova bateu no chão com eco, rodando duas vezes antes de parar.
A sua boca cerrou-se, demasiado chocado por um momento. Levi não parecia assustado ou vitorioso, simplesmente demasiado surpreso para se mover, quase como se não tivesse sido ele a atirar a porra da coisa e estivesse a tentar perceber o que é que acabara de acontecer. Ambos ficaram ali a olhar um para o outro, gotas a pingarem do cabelo de Kenny.
O silêncio constrangedor durou mais uns três segundos, quando um som estrangulado esquisito saiu de Levi por ele aparentemente se engasgar com qualquer coisa e os lábios curvaram-se para cima. Kenny pestanejou e, mais por reflexo do que qualquer coisa, resfolegou. Nem sequer estava zangado, a testa doía-lhe só um bocadinho, muito longe de um ferimento de guerra, mas só... ele provavelmente devia parecer um idiota, tinha de gozar consigo próprio.
Levi não estava provavelmente tão à frente para conseguir processar a sua própria mudança de emoções em tão pouco tempo, por isso em vez disso só riu.
Agora aquilo era novo. Kenny devia estar mesmo com ar de idiota, a situação era ridícula. Devia ser uma das primeira vezes que Kenny via o miúdo de facto a rir, e na verdade isso fez Kenny sorrir sem qualquer motivo. Sentia-se estúpido, mas não se importou.
- Acho que já sei como é te faço tomar banho - disse Levi por entre risos.
- Ah achas? - Soltou uma gargalhada e investiu em frente. Levi ainda soltou um 'Ei!' como que para o deter, mas Kenny foi em direcção ao balde e mergulhou a mão em concha, atirando uma rajada de água. Levi riu e desviou-se mas foi acertado pela maioria da água e por uma vez não se importou com a confusão. Kenny quase soltou um 'whoa' quando reparou que Levi não tinha reclamado de imediato.
- Não me apanhas - disse o fedelho matreiro em vez disso, rodopiando à volta de Kenny antes de o homem mais velho conseguir sequer tentar agarrá-lo. Esquivaram-se pela pequena divisão, porra o miúdo era rápido. Saiu disparado para fora, abrandando à ombreira para o provocar. - Não vales nada, Kenny! Estás mesmo a ficar velho.
A sorrir, foi atrás do miúdo, vendo-o descer aos saltos pelas escadas fora do esconderijo e aterrar incólume como se não tivesse o corpo a latejar com nódoas negras recentes e como se não tivesse passado os minutos anteriores rancoroso de Kenny. Agora estava a chamar Kenny e a rir.
Levi estava a rir. Mas que raio.
Duas pessoas na rua ouviram o barulho e olharam casualmente, sorrindo ao verem um homem adulto de casaco comprido brincar a correr atrás de um miúdo magrinho e perdendo claramente. Toda a gente estava tão habituada a ter de lutar para sobreviver, momentos tolos eram um entretenimento raro.
Levi ignorou as pessoas à volta deles e ignorou a dor como só a resistência e perseverança de um miúdo lhe poderia permitir. Kenny viu-o cerrar os dentes uma vez quando rebolou e se esquivou de Kenny, mas foi basicamente o único momento, até o coxear mal se notava. Já era tão estranho vê-lo sorrir; isto era simplesmente anormal.
- Meu, porra miúdo que tu és rápido! - Ao ouvir aquilo, Levi só sorriu descaradamente e passou a correr por ele em provocação.
Começou a tornar-se aborrecido pouco tempo depois. O passo de Kenny abrandou e ele expirou, tentando pentear o cabelo húmido e sentindo-se subitamente despido e exposto sem o seu chapéu. Agora ia ter de subir de novo para o ir buscar.
- Pronto miúdo, já chega.
- Espera, não - protestou Levi, um pouco sem fôlego. - Ainda não me apanhaste.
- Não te consigo apanhar, és demasiado rápido. Vai lá acabar o teu hobby ou assim, eu espalhei água por todo o lado.
- Espera, Kenny.
Ouviu os passos de corrida a aproximarem-se, subindo os degraus dois a dois atrás de si enquanto Kenny subia e se voltava para a porta.
- Vá lá, só mais um bocadinho.
- Ná, já chega. Tenho coisas p'a tratar, tu vê se descansas ou faz o que quiseres, 'tás a ouvir?
O rosto de Levi desmoronou dolorosamente, o seu sorriso desaparecendo e o olhar caindo por mais do que desilusão, mas Kenny não o viu, preocupado com o chapéu e pegando na mala em vez disso. Quando tentou desviá-lo da sua maneira amigável e desajeitada, Levi simplesmente avançou e ignorou-o, regressando à sua limpeza.
...
O Levi devia saber isto tudo também. Não precisava ser dito.
11 anos de idade
Kenny estava sentado nuns caixotes abandonados, a ver as pessoas trabalhar e comer num pátio a alguns metros de distância. Festividades eram raras, mas quando aconteciam, eram dignas de nota e toda a gente tentava ter algum tipo de pausa das suas dificuldades diárias de sobrevivência. Kenny achava extremamente irónico e ridículo que nestas ocasiões, as pessoas fossem gastar comida que normalmente não tinham dinheiro para comprar. Parecia-lhe um desperdício de esforço só para ostentar. Mas funcionava para todos; as pessoas ficavam felizes sempre que acontecia alguma festividade local: os organizadores, as pessoas normais e os esfomeados. Além disso havia ocasionalmente músicas diferentes a ecoarem dos pátios e das ruas, tornando o Submundo subitamente num lugar estranho e deslocado.
Kenny viu uns adolescentes surripiarem tartes de pão e desaparecendo sem serem notados, e um miúdinho depressa os seguiu, lembrando-o de Levi quando ele era daquela idade porque o miúdo mal chegava à mesa onde a comida estava. Levi costumava ser assim, a blusa de Kuchel costumava ser tão grande que lhe cobria o corpo todo. Agora não tarda e estaria demasiado pequena para ele usar, já para não falar que estava demasiado gasta.
Riu sozinho, mas como estava longe o suficiente das pessoas, ninguém se voltou ou questionou a sua sanidade. Ao ver o miúdo esfomeado fugir com comida suficiente para dois dias, apercebeu-se: Levi realmente crescera! Ah, isso era hilariante. Nunca tinha pensado muito nisso antes, mas agora que tinha uma comparação directa para onde olhar, era notável. E apesar da puberdade que iria apanhar Levi daí a alguns anos, Kenny tinha a certeza que ele não ia crescer muito mais. Ah, o minorquinha.
- Porque é que não estás a roubar alguma comida? - Falando do diabo. A voz de Levi veio de cima, e Kenny voltou a cabeça para o achar no cimo de umas escadas ali perto.
- Qual é a tua com as alturas, a sério? 'Tás a compensar alguma coisa?
Levi arqueou a sobrancelha, e Kenny riu-se pelo seu próprio comentário estúpido. Apesar do que acabara de pensar, às vezes ainda se esquecia do quão novo Levi ainda era.
- 'Tás com fome? Vai lá buscar alguma coisa, lá que cheira bem cheira.
- Não. - Levi desceu as escadas, o casaco a deslizar-lhe por um dos ombros como de costume, saltando os últimos degraus. O cabelo estava ligeiramente despenteado. - Mas já bebia qualquer coisa. Tenho algum dinheiro.
- Talvez a Martha tenha aquele estúpido daquele chá que tu gostas.
- Não me importava ficar bêbedo se conseguisse.
- Aconteceu alguma coisa? - perguntou Kenny, e Levi olhou para ele, pestanejando, como se não esperasse a pergunta.
- Nada. Andei à porrada.
- Não perdeste desta vez, hã? - notou Kenny, rindo. Levi saltou para o topo do caixote ao lado de Kenny (um mais alto...) vendo as pessoas no pátio pelo canto do olho.
- Foi um dos tipos que me bateu uma vez.
- Mataste-o?
Levi olhou para Kenny de novo, a sua expressão caindo de forma estranha agora, como se estivesse desapontado ou assim. Kenny não conseguia bem dizer porquê, porque é que ele haveria de estar desapontado?
- Não.
Kenny encolheu os ombros. - Também, ele era só um miúdo.
- Tu mataste aquele miúdo loiro daquela vez.
Normalmente, Kenny demoraria um tempo a lembrar-se de quem Levi se referia em particular, mas na verdade ele lembrava-se daquele. Não tinha por hábito matar adolescentes, mas de qualquer das formas, sabia que tinha sido no mesmo dia em que Levi passara de estar zangado com ele a rir; algo sempre de registar na memória. A menção em particular do miúdo loiro fez Kenny voltar a encolher os ombros.
- Bem, ele era irritante.
- Eras capaz de me matar, Kenny?
Ele riu-se perante aquilo.
- Ah és irritante mas ainda não te matei, pois não?!
- Pensaste nisso antes, não foi. No dia em que me conheceste.
Foi a sua vez de ficar a olhar para Levi, o rosto franzido. Porra, isso fora há muito tempo. O que é que se passava de errado com ele, porquê aquilo agora? Ah, ok, Levi estava num dos humores esquisitos. Daí as expressões estranhas e estranheza generalizada às perguntas básicas de Kenny. Oh bem, era melhor preparar-se para as suas divagações mentais.
De qualquer das formas, Kenny também se lembrava daquele momento em particular; aquele ele admita relutantemente que não iria esquecer tão depressa, tendo em conta tudo o que mudara na sua vida.
- Bem, já 'tavas meio morto mesmo. Claro que pensei que era mais fácil matar-te. - Aliviou o assunto, apesar de não da melhor forma, acrescentando: - Tinha-nos poupado a uma data de problemas, hã?
Levi não mostrou reacção a isso, por isso Kenny sorriu, levantou-se e tentou despentear-lhe o cabelo como de costume, mas Levi desviou-se demasiado rápido.
- Porque é que não o fizeste?
- Eh, sei lá. Tive uma mudança de opinião. Suponho que seja bom não o ter feito, n'é? Não 'tarias aqui p'a me irritar, pois não?
Apesar da sua predisposição para ser um otário irritante, Levi raramente encolha os ombros ou suspirava ou mostrava algum sinal típico de um miúdo arrogante e mal criado. Ficou só ali sentado sem reacção.
Kenny voltou a franzir o rosto, sem saber bem como reagir àquela falta de reacção. Não gostava muito de se sentir como uma criança a pedir desculpa por ter feito asneira, e isto parecia estar a escalar nessa direcção, por isso achou que devia acrescentar:
- Meh, quem sabe. Se fores roubar aquelas trelas de cão e garrafas de gás que te fazem voar de um lado p'ó outro, te tornes um MP e venhas atrás de mim, então aí ia ter de te matar. Cenário irónico, hã?
Levi resfolegou pela idiotice e murmurou: - Como se isso fosse acontecer - antes de saltar do caixote e se afastar comentando algo sobre cervejas.
Kenny não tinha nenhum problema em encolher os ombros, por isso fez isso mesmo. Ficou a ver uns miúdos a brincar, mas a distração não o impediu de reparar num adolescente, com uns catorze anos, aproximar-se sem qualquer dúvida na sua direcção.
- Ei. Conhece o Levi, não conhece?
- E? - Olhou o rapaz à procura de armas, não achando nada aparente. - Quem és tu? O namorado do Levi?
O rapaz pestanejou, como se as palavras não fizessem qualquer sentido para ele. Bem, havia qualquer coisa de errada com os rapazes hoje, hã?
- O Levi não tem namorados ou amigos - respondeu ele. Encolheu os ombros, decidindo que Kenny era um excêntrico e continuando. - Hã, só estou aqui para lhe dar isto. É da minha irmã.
Kenny semicerrou os olhos à caixinha básica mas toda bem embrulhada que o rapaz lhe apresentou.
- Então ela é namorada dele?
- Hã, não. Qual é a sua com namoradas e namorados? O Levi ajudou-a há uns dias quando estavam a tentar preparar as celebrações, e são os anos dele por isso ela queria agradecer-lhe.
Agora foi a vez de Kenny olhar para ele como um esquizitóide, de olhos esbugalhados. O rapaz mais ou menos atirou a caixa para o lado de Kenny, aliviado por já não ter o peso nas mãos e menos uma razão para ali estar.
- Yá, ok, é isso. Fico agradecido se lhe puder dar isso.
Kenny ignorou o rapaz, focado na caixa em vez disso. Anos? O aniversário do anão era hoje?
Tentou lembrar-se de alguma coisa, mas nem ele próprio tinha bem a certeza do que era, a sua mente ficou branca na sua tentativa. Bem, o ano estava quase a acabar, a data era provavelmente a certa. Quantos anos é que ele ia fazer, mesmo? Kenny tentou fazer as contas, mas em vez de lhe dar uma resposta certa entre dez ou onze, só o fez aperceber-se há quanto tempo estava a tomar conta de Levi. Conseguia literalmente contar com os dedos de uma mão a quantidade de vezes que tivera um companheiro, e essas tinham durado umas duas horas cada. Levi excedia esse número um bocado. E não se enquadrava bem no critério de 'companheiro'. Kenny não tinha por hábito tomar conta de nenhum companheiro durante uma noite de pesadelos.
Qual é que tinha sido o plano, mesmo? O que é que ele pensara quando escolhera não ignorar o sobrinho e deixá-lo para morrer sozinho, quando escolheu não lhe abrir a garganta e acabar com aquilo de vez?
Ensinar-lhe a viver neste mundo. Certificar-se que ele não morreria uma morte miserável como Kuchel. Mas Kenny duvidara desde o dia um que pudesse tomar conta de um miúdo. Havia literalmente todas as razões do mundo para Kenny o Estripador não estar destinado a ter um miúdo a seu cuidado. Ainda assim, tivera.
O plano era certificar-se que ele sobrevivia sozinho, como é suposto viver-se. Esperar até ele ter poder suficiente para sobreviver. Era suposto viver-se sozinho. Daí nada de companheiros, nada de mulheres, nada de filhos, mínimo contacto com família.
O que raio estivera Kenny a fazer durante quase cinco anos? A viver com o miúdo - de acordo com o plano, mas Kenny tinha sido provavelmente um idiota do caralho naquele dia quando julgara tão mal a mudança que estava a provocar a si próprio, à sua vida e à sua rotina - construindo uma rotina.
Continuara a treinar Levi, certificando-se da sua aprendizagem, na maior parte das vezes de formas que Levi não gostara (não era suposto ele gostar, era suposto ele aprender), mas Kenny não considerara lidar com pesadelos, ou tomar o tempo de puxar um cobertor sobre ele quando ele adormecia por fim, ou para chegar mesmo a registar as vezes em que ele ficara feliz ao ponto de o demonstrar. Partilhar tudo isso com alguém.
Estes momentos, vários deles e diferentes entre si, espalhados ao longo de quase cinco anos; Kenny apercebeu-se de quantos ele guardara na memória - um conjunto inútil de memórias que ele não antevira. E de que na verdade gostava, de certa forma.
Ele gostava de se meter com Levi, despenteando-o e irritando-o de propósito só para se rir na cara dele. Aquela vez em que o miúdo quebrara toda aquela máscara de controlo e se comportara como uma criança normal, entusiasmado e a perguntar sobre o céu - Kenny lembrava-se, mas provavelmente não fora tão compreensivo como devia ter sido, descartara o fascínio e a curiosidade dele.
Mas fora... bom?, vê-lo assim. E Kenny na verdade gostara de todas as vezes que vira Levi aprender uma nova habilidade com a faca, aquela sensação de dever cumprido que provavelmente não era só como um mentor se sentiria.
Kenny sentiu a mão esfregar a nuca enquanto suspirava e se enterrou novamente na caixa, o seu antigo e irritante tic para-resolver-problemas-que-não-resolvia-nada a regressar.
Era esquisito pensar nisto tudo - esquisito porque esta 'normalidade' tornou-se rotina e as rotinas não deviam existir para começar. E esta ia acabar.
Tudo aquilo tinha prazo.
Mais cedo ou mais tarde isto ia acabar, Kenny ia seguir com a sua vida, os seus objectivos. O plano era ir-se embora. Nunca considerara outra coisa. Já fizera mais do que a sua parte, engonhara demasiado tempo, carregando Levi de um lado para o outro. Tudo isto tinha um prazo marcado.
Kenny sabia. Não pensava sobre isso, não pensara nisso nessas palavras exactas durante a maior parte dos anos anteriores, mas sabia-lo.
Levi não.
- Toma.
Kenny olhou para cima, assustando-se com o som. Levi regressara com duas canecas de cerveja. Apesar da expressão confusa perante a surpresa de Kenny, ele não perguntou nada. Kenny ficou grato por isso e simplesmente pegou numa das cervejas, bebendo um grande trago prontamente. Levi voltou a subir e bebeu a sua num silêncio partilhado sob o olhar do homem mais velho.
- Ugh, os teus humores esquisitos são contagiosos.
- O quê?
- Será que teria sido mais fácil para nós os dois? - Do que é que ele estava sequer a falar. - Se te tivesse morto, ou se tivesse aparecido uma semana depois?
- Porque é que me estás a perguntar isso? Eu é que perguntei primeiro.
- Como se isso fosse acontecer, tu eras uma porra de um bebézinho anão - continuou Kenny, ignorando Levi e simplesmente pensando em voz alta. - De que é que serve perguntar sobre todos os 'ses', isso não muda a nossa vida agora. Não importam. O que importa é poder para continuar a viver. É isso que importa, não pensar em decisões passadas, ou no que poderia ter acontecido.
Bufou e suspirou, a sua cerveja olhando para ele estupidamente. Mas que tromba feia.
Isto não ia durar muito mais, pois não. Mesmo estes momentos silêncios, a beber ou só a deambular. Ele estava a ficar forte o suficiente.
Isso era bom. Isso era o que importava no final de contas.
Nem toda a gente é talhada para isto. Kenny com certeza absoluta não era.
- Ah foda-se, nós somos tão insignificantes, miúdo. Somos menos que vermes, lixo. E eu não suporto isso, caralho. As nossas vidinhas, a lutar só para sobreviver, é tão enfurecedor. Por isso é que eu quero mais, quero tudo. É só isso que precisas, 'tás-me a ouvir Levi? Poder. Poder permite-te viver e ter tudo. Não precisas de mais nada. Continua, vai até ao topo, e depois destrói a porra do mundo todo se não gostares do que vês.
- De onde é que isso saiu? Inspiração alcoólatra?
Olhou para o pátio, para as pessoas a comer. Estavam lá crianças a brincar, a petiscar aqui e a ali. Quase parecia uma cena de lá de cima, menos o privilégio de ter um céu.
Levi seguiu o seu olhar, bebendo a cerveja como se fosse água. O que quer que o miúdo estivesse a pensar sobre o comportamento estranho de Kenny era, como de costume, algo que Kenny não fazia ideia.
- Não devias 'tar a beber - disse Kenny mais para si do que outra coisa, vários momentos depois.
- Eu não fico bêbedo.
- Mais razões para não beberes.
- O que é que se passa contigo hoje, afinal? Estás a começar a ficar preocupado se vais morrer ou assim?
A sua cara tinha memória muscular sozinha, reagindo àquilo com um sorriso que na verdade ele não queria esboçar. - Ah, querias.
Kenny levantou-se, ajeitando o casaco e pegando na mala a seu lado.
- Não gosto destas festas e festividades e estas merdas.
- Eu sim.
- Então fica aqui, eu vou-me embora.
As pessoas no pátio estavam a começar a cantar uma canção. Isto não era mesmo para ele.
- Ah, pois. - Voltou-se, apontando. - Isso é p'a ti. Uma miúda mandou-a.
Apanhou um relance de Levi a olhar para a caixa embrulhada com um ar inquisitivo, mas Kenny virou-lhe as costas sem olhar mais para ele.
O som do farfalhar do papel a ser desembrulhado acompanhou-o, por isso não precisava muito de se virar para saber que Levi não ficara para trás sozinho. Ouviu o papel ser enfiado no bolso de Levi, imaginou a expressão de Levi ao que estava no interior. Ele haveria de gostar de receber uma prenda, fosse o que fosse. Ainda era bastante ingénuo e novo. Os miúdos gostam de prendas, não gostam.
Kenny podia simplesmente virar-se e ver, fazer algum comentário tipicamente corrosivo só para se meter com o miúdo, tentar esconder o facto de não saber que eram os anos dele pagando-lhe uma refeição ou coisa assim e esperar que Levi o fosse interpretar como um presente. Elogiá-lo. Só dizer um simples 'parabéns' sem inspiração.
Mas não o fez.
Não sou adequado para ser um pai. Nunca fui.
Se ao menos fosse.
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fim
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Nota:
- O fic 'Palavras' acontece antes do 11º aniversário do Levi e explica um pouco o porquê da frieza na parte final deste capítulo. Obrigado por lerem, se acharem erros por favor digam.
disclaimer: don't own Shingeki no Kyojin.
Este fic faz parte de uma série chamada 'Uma família disfuncional', dito kid!Levi, histórias independentes mas que formam uma continuidade se as lerem por ordem. Podem usar ctrl+f no meu perfil para as achar e ler os sumários e avisos. Aqui está a lista:
1 - Palavras de despedida (Kenny, Kuchel)
2 - Mudança (Kuchel, Levi)
3 - Um dia (Kuchel, Levi)
4 - A Janela para o Céu (Kuchel, Levi)
5 - Algo importante (Kuchel, Levi)
6 - Escolha (Kenny, Levi)
7 - Primeira (Kenny, Levi)
8 - Dor (Kenny, Levi)
9 - Lembranças e destroços (Levi, Kenny)
10 - A Conversa (Kenny, Levi)
11 - Palavras (Levi, Kenny)
12 - Perda - estão aqui -
13 - Decisão (Levi, Kenny)
14 - Pai com outro nome (Kenny)
15 - Sozinho (Levi)
