Nota: Na altura em que escrevi este fic, decidi ligar as cicatrizes do Undertaker à sua deserção apesar de achar que tinham algo a ver com a Claudia - entretanto, com a informação do canon até 2021, é possível que seja mesmo verdade. Seja como for, a ideia de estarem ligadas à Claudia ainda se mantem na minha cabeça e haverei de o explorar num fic que está tipo desde 2018 à espera de ser escrito.

Os termos ingleses até no original japonês - cinematic record e death scythe - mantém-se como tal.

nota pt-pt para pt-br:
- "fato à medida" é o mesmo que "terno à medida"

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Muito mudou após esse dia.

Era suposto o Tempo e a Morte serem realidades mutuamente exclusivas. Serem entendidas como tal. Enquanto que para si, algures ao longo dos anos e décadas (ou talvez muito recentemente), começaram a criar a crescente perspectiva de diferentes resultados. Tempo permite mudança, enquanto Morte é apenas - bem, o fim. Aquele vazio no fim de cada milésimo ou milionésimo ou bilionésimo Cinematic Record de cada vida humana que inspeccionara em trabalho - pagando a sua sentença - enquanto Shinigami, como mais um destes Grim Reapers empregados. Aquela tarefa, suposta penitência, aquela acção burocrática e enfadonha e completamente indiferente de testemunhar vidas vividas por demasiado pouco tempo ou demasiado longas, sempre com o mesmo fim.

O fim.

A Morte não mudava ou evoluía de todo.

Que mundano.

Enfadonho.

Em retrospectiva (era quase cómico, realmente), supunha que a Morte era também antiquada. O avant-garde não se estendia além de Death Scythes que, bem, não possuíam qualquer inovação no seu conceito. A Morte era antiquada. Pouco espaço para opiniões, alternativas, ou questões de que género fosse. Que igualmente e apropriadamente enfadonho.

Não que ele tivesse tido oportunidade de fazer algo. Nem sabia o que poderia ter feito, ou se sequer quisera fazer alguma coisa de todo. Simplesmente imaginou, questionou-a - a questão sendo a morte. Aquele único inquestionável, imutável, mundanasimplistagenérico facto e realidade da vida.

Porquê?

Da mesma forma que se questionara sobre felicidade naquele dia, questionou sobre a morte. Porquê? Porque era tal facto final, imutável e definitivo da vida? Porque tinha tudo de acabar, quando havia tanto tão mais interessante que poderiam continuar a desenvolver, a aprender e mudar?

Meras questões, divagações a que qualquer um deveria ter direito - mas oh, céus, estas sociedades de dogmas institucionalizados exorbitavam a definição de enfadonho.

Simplesmente perseguira um pouco as suas divagações enquanto observava o Cinematic Record de um jovem inventor, a mesma acção que realizara tantas incontáveis vezes antes sem se incomodar ou pensar. As descobertas deste jovem pareciam deveras intrigantes e fascinantes: tinha tentado produzir e criar um método para que imagens se movessem. Imagens animadas, uma forma de salvar o tempo e as memórias em maior dimensão do que em apenas uma mera fotografia congelada. Este processo teria provavelmente sido ignorado com um encolher de ombros por qualquer outro Shinigami, pois este conceito era precisamente a mesma essência da sua tarefa - do Cinematic Record - mas para si fora fascinante. Os humanos não tinham acesso a estas imagens em movimento; quem saberia quando teriam? Tal traria uma nova visão do passado e do futuro para o mundo. Mesmo eles, os Grim Reapers, possuíam este privilégio de testemunhar este registo de vidas e apesar disso nunca o viam duas vezes - porque o haveriam de fazer, por entre milhares?

Em vez disso, o jovem inventor fora espancado com um martelo na cabeça por um irmão invejoso, um evento completamente independente da invenção promissora. Esta vida não foi considerada como um importante benefício para a sociedade para ser poupada - aquele luxo que os Shinigami tinham, e nunca aplicavam. Portanto o seu trabalho foi ceifar o corpo deste jovem, examinar a sua vida e aquela invenção intrigante, categorizá-la com aquele simples carimbo naquele ficheiro simples e mundano com informação básica e assim completar a recolha da alma.

Não regressou aos chefes com os relatórios devidamente carimbados, nem deixou o cadáver do jovem onde era suposto estar. Nem o jovem era um cadáver como suposto, não exactamente. O Cinematic Record estava agregado ao corpo e à alma - cortá-lo iria efectivamente terminar a examinação da vida que tinham de fazer e colectar a alma, terminando a vida da pessoa. Não o fazer deixaria espaço para criaturas como demónios se intrometerem.

Queria voltar a ver o Cinematic Record. Queria mais tempo - aquele jovem homem provavelmente também quereria mais tempo, ainda que talvez este estado não fosse exactamente o que ansiara.

Mas oh, como a Morte era enfadonha e antiquada. Todas aquelas regras que nunca deviam ser quebradas, todos aqueles 'nunca interfiram com assuntos humanos', todos aqueles definitivos e imutáveis FIMs.

Ele deveras não tencionara fazer nada, ou pensara na possibilidade no momento. Estava curioso. Curiosidade desencadeara uma reacção de entusiasmo em voltar a reproduzir o Cinematic Record, imaginar e interrogar-se com alguns 'e se'. E se o tempo pudesse estender-se para si e permitir-lhe ver o Cinematic Record; e se o tempo se pudesse estender para o jovem homem, o que poderia ter acontecido e mudado no mundo graças àquele inventor?

Entusiasmo trouxe o sorriso. E o que lhe tinham dito em tempos? 'Se algo me faz sorrir, suponho que me deixe feliz'. Que resposta banal e fraca, mas independentemente daquela opinião, felicidade foi uma mudança que começou a sentir após aquela vez, a bebé que lhe sorriu. Ainda poderia ser uma reacção em vez de uma emoção, mas quem era ele para ser picuinhas no tema?

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Sentiu algo bastante hipócrita acerca de toda a situação, quando alguns dos seus colegas o foram buscar como se tivesse cometido um terrível crime, mas não conseguiu bem identificar o que considerou hipócrita em tudo aquilo. Também já tinha acabado - o Cinematic Record continuava a acabar, mesmo que ele não tivesse cortado a alma. Voltava a tocar, alcançando o mesmo FIM. O jovem inventor, no entanto, falecera e emanava algo diferente, como se algo estivesse em falta. Se aquilo que o colega bolçara de forma tão monótona era verdade, tal acontecera por a alma ter deixado o corpo - e agora propensa a ser devorada por demónios repugnantes, tudo graças a ti. Os discursos e devidas punições e tudo isso, tudo deveras aborrecido e cansativo. Não sentiu necessidade para nada daquilo de novo, para nada daquele ciclo sem fim de trabalho burocrático que faziam, destinado a ser uma penitência imutável até poderem redimir-se nalgum dia que nunca chegaria.

Hm. Hipócrita... Bem, ele pensaria nisso noutra altura.

Mal deu importância às marcas deixadas no seu corpo, o que quer que aquela punição acrescida fosse pelos seus pensamentos desertores. Não eram só pensamentos - se o queriam rotular como desertor, então ele pelo menos desertaria de facto.

(As cicatrizes que deixara no seu colega foram ligeiramente diferentes das suas - irónico, a Morte podia morrer também. Não o fez sorrir ou desagradou, simplesmente registou o facto juntamente com todas as anotações mentais das passadas horas - tempo e morte. Talvez fossem de facto mutualmente exclusivas afinal. Até os Grim Reapers podiam morrer no seu devido tempo.)

E assim se viu livre. Uma pessoa morta a que fora dada vida novamente, concedida mudança e vida novamente. Desempregado, curioso e com um despertar de reacções a eventos que iriam oxalá, eventualmente, tornar-se emoções.

Agora, o que fazer.

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Bem, não poderia exactamente deambular com outras criaturas do submundo como ele próprio. Estes mundos não guardavam nenhum interesse real para si; e nunca residiria num local infestado de demónios. Demónios nunca lhe tinham provocado muito interesse - tudo bem, talvez não nunca; dificilmente. Quem saberia que mudanças a sua vida lhe traria?

Demónios brincavam com vidas de forma diferente daquela que ele poderia ser acusado de ter feito.

Dificilmente teve de pensar muito no assunto - claro que sabia o que fazer agora, onde começar a viver e começar a observar e a aprender. Tempo e mudança não estavam do lado do submundo, mas do lado dos humanos.

O seu aspecto actual seria com certeza assustador à maioria dos humanos, no entanto - oh como estas cicatrizes sangravam bastante. Por alguma razão, a dor era bem-vinda. Estava a criar uma reacção de recordação em vez de destruição, superando uma parte da sua vida e aceitando-a para seguir em frente. Tal pensamento pareceu-lhe ser muito humano.

Assim, viver entre os humanos seria necessário para os observar e aprender com eles. Observar as suas vidas e mortes e deixar a sua curiosidade e questões fluirem sem entraves e restrições.

Não sabia como viver com humanos no seu estado actual. Queria ser mais do que o seu eu burocrático e sem emoção que fora até àquele ponto, mas por agora, observador era o que sabia ser.

E a sua zona de conforto era a morte. Já para além do aborrecimento da morte, talvez, mas ainda assim.

- Então sois algum género de coveiro?

- De certa maneira.

Ora, criança, parecia ser verdade de facto.

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Londres era o fosso da natureza humana - a mais enaltecida e requintada nobreza numa mistura com os esfarrapados e esfomeados sem-abrigo. Um bom sítio para começar.

Dar o passo de viver da morte como Shinigami e viver da morte como humano foi tão fácil que quase receou arruinar o seu interesse.

Mas era tão fácil viver da morte num sítio assim.

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E era tão engraçado assustar pessoas com as suas cicatrizes.

E tão interessante observá-los chorar os seus entes queridos.

E tão interessante vê-los desdenhar os seus inimigos caídos.

E tão interessante testemunhar as suas formas de causar sofrimento às suas vítimas.

Os humanos tinham de facto muitas reacções e emoções para partilhar e lhe ensinar.

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The Undertaker. Adequado.

Foi apenas uma questão de tempo -mudança, possibilidade- para o seu caminho se cruzar com a pequena humana que inconsciente e inadvertidamente ajudara a reacender o senso de si mesmo de volta.

Quem imaginaria? Aquele caso mundano há tanto ou tão pouco tempo, tornara-se tão extraordinário.

A vida era tão interessante.

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1843

Com tantas funerárias e mortuários e coveiros, tinha de facto um especial número de corpos e funerais para si, o que considerava maravilhoso. A banalidade da morte estava a evoluir e a mudar, tornando-se interessante quando se julgava todos os factores envolvidos e ao seu redor, e quão especial a morte tornava todos eles.

Quando preparou o caixão e enterro para algum nobre com um nome elegante, reconheceu o apelido cravado para sempre na cruz de pedra que erguera no cemitério.

Phantomhive.

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Uma das alegrias de viver entre humanos era dormir sempre que desejava. Os mortos não faziam ideia do que não aproveitavam enquanto estavam vivos.

Caixões eram a sua coisa preferida no mundo. Confortáveis e talhados como um fato à medida - eram um prazer de construir e de usar.

Uma das maiores alegrias de viver era dormir dentro de caixões e assustar quem o encontrasse assim. Tão engraçado.

Portanto não era de todo acidente quando deixava a porta da sua funerária aberta para que inocentes incautos fossem recebidos dessa forma.

O suave tilintar do sino à porta despertou-o da sua sesta da tarde, e os passos de tacões ecoaram pela funerária quando o convidado se aproximou do balcão. Abriu a tampa do caixão e espreitou. A sua visão não melhorara, e ver o mundo atrás de uma cortina de cabelo não ajudara, mas rapidamente aprendera a apreciar como desenvolvera todos os outros sentidos. A figura desfocada possuía contornos de um vestido, os passos que anteriormente ecoaram num passo distinto de dama e não de um homem. Uma jovem mulher, a julgar pela falta de joias reluzentes. Havia algo no cheiro das suas roupas também. Uma jovem dama rica viera visitar. Sozinha, sem criada ou marido ou algum mordomo.

Bem, haveria de apanhar um susto e tanto, mas pelo menos não teria de se preocupar em ter outra pessoa a testemunhá-lo.

- Bem-vinda, minha senhora.

Ela girou de facto sobre os calcanhares e baixou o olhar ligeiramente arregalados para o caixão ao fundo da funerária, mas a sua postura perfeitamente nobre afastou a surpresa num piscar de olhos. No lugar de gritar pela mórbida excentricidade, sorriu.

Ora, fora ele quem ficara surpreso.

- Olá, Mr Undertaker.

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continua

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