- Já nos conhecemos antes - recordou Claudia, claramente não tão surpresa como a maioria ficaria ao ver o coveiro elevar-se de um caixão no chão. O coveiro em questão que ainda permanecia no lugar, pois fora ele quem se surpreendera com a visitante.

- Ora ora, mas claro. - Aclarou a garganta, sorrindo antes de sequer se aperceber. Enxotou pó invisível das roupas negras. O seu chapéu fora abandonado no balcão e regressou prontamente ao seu devido lugar no topo da sua cabeça, prendendo a franja à frente do rosto. - Recordo-me de vós, Lady Claudia. Faz alguns anos, parece.

Claudia pareceu agradada.

Aproximou-se na direcção dela, e ela não pareceu incomodar-se. A névoa sobre ela dissipou ligeiramente, mas o suficiente para conseguir ter uma imagem mais nítida dela. A sua altura poderia trair a sua idade para um olhar desatento - apesar de, nesta era, um olhar casual dificilmente seria voltado na sua direcção de todo - a nobreza estava flagrantemente clara na sua pose, não tanto no seu vestido costurado à medida quanto nas suas feições algo frias, belas mas severas. Jovens mulheres costumavam ultrapassar os homens em altura com facilidade, especialmente nas idades entre os treze e os quinze, mas Claudia era particularmente alta. A sua imagem de criança, com o disfarce andrajoso e curiosidade altiva, ainda apareceu na mente dele, e conseguia vê-la no rosto de Claudia agora. Apesar disso, o contraste que permanecia noutros pequenos aspectos era maravilhoso.

- Sim, bem, cresci - disse ela como se soubesse os seus pensamentos. Provavelmente eram comuns entre humanos que não se viam durante anos e eram agora reunidos? - Vós estais praticamente igual. Era impossível não vos reconhecer no cemitério. Embora estejais menos nobre.

Que escolha de palavras engraçada. - Nobre? Nunca pensei que alguém como eu fosse descrito de tal forma.

- Seja como for, estareis no cemitério não seria de todo estranho, embora vá ser completamente honesta e admitir que estou aliviada.

- Que o vosso parente morreu? - Estava a tentar acompanhar o raciocínio dela.

- Bem, é a vida, não é? - Afastou o assunto com tanta simplicidade que ele não pôde evitar pestanejar e rir. A vida e a morte eram tão fascinantes! Como é que ela poderia descartar o assunto com tanta facilidade? - Há algum tempo que me interrogo se vos teria imaginado ou se ereis real, e qual cenário seria melhor para mim.

- Oh? - Ainda a tentar seguir o seu processo mental.

- Seja como for. Deixarei isso para outro dia de divagações. Tudo isto sempre me fascinou. A vossa imagem impulsionou interesse, não foi um gatilho para o criar. E agora que aqui estou, espero poder visitar?

- Ah?

- Creio que compreendereis.

- Oooh? - Estava a rir de forma bastante clara agora, e a expressão severa de Claudia estava a começar a revelar uma reacção a isso, a sua sobrancelha arqueando-se ligeiramente.

- Dificilmente é um tema que a maioria gosta de discutir, mesmo no seio da minha família... a hipocrisia, de facto... mas a morte e...

Cortou as suas palavras e franziu o olhar para ele, como se ele a tivesse interrompido subitamente.

- Bem, suponho que não devesse discutir tal convosco, um estranho. Mas... bem. Não é como se o fosse berrar aos quatro ventos. - Ele estava demasiado entretido para sequer tentar acompanhar o que fosse. - Estou quase certa que vós, de toda a gente, não estranhará o 'fascínio pelo macabro'.

- Considerando a minha área de trabalho, ficaria surpreso se estranhasse - respondeu com simplicidade, as faces ligeiramente tensas pelo esforço de sorrir, acenando casualmente para os seus aposentos.

- Sim, precisamente. - O seu olhar agradado regressou. - Portanto, pretendo visitar-vos ocasionalmente, com questões. Falar significa que ainda podereis trabalhar, então imagino que não serei um inconveniente para vós.

- De forma algumaaa~

- Óptimo. - Sorriu, e as suas feições de criança brilharam. - Desejava poder iniciar um debate agora mesmo, mas encontro-me com pouco tempo. Mas bem, já que toquei no assunto, poderei perguntar se tendes livros de interesse? Médicos, filosóficos ou de semelhante ordem.

Talvez outra pessoa pudesse esperar que uma mortuária possuísse livros de medicina - talvez nenhum livro de todo, se fossem instalações de um mortuário muito pobre, quase clandestino - talvez que possuísse uma panóplia de títulos proibidos e profanos. Claudia parecia bastante convencida que ele teria uma vasta biblioteca (que, de facto, não se importaria ter, e trabalhava para esse objectivo) de todos os assuntos macabros (que, de facto, não tinha).

- Receio ter apenas livros de medicina.

- E do oculto? Feitiçaria, satanismo, ocultismo no geral?

As meras palavras provocaram um arrepio desagradável na sua espinha. Quase não reparou como, de facto, Claudia era bastante directa nestes temas, ou como iria descobrir eventualmente, sobre que tema fosse. Desertor ou não, o tema - e menção de qualquer coisa relacionada - de demónios e a sua imundice corrompida seria sempre desagradável para si. Dificilmente seria algo pelo que nutrira interesse, com a sua curiosidade voltada para os humanos - não para o além, onde os monstros e O FIM habitavam.

- De momento não possuo, não. Mas com certeza saberei quem teria tais títulos em sua posse. No presente momento, receio ter apenas tomos anatómicos. Talvez alguns tomos de tanatologia.

Parte de si sabia que não deveria surpreender-se pelo conhecimento de Claudia de tais termos, embora outra parte estivesse encantada e surpreendida por a ver assentir.

- Algum tema em específico?

Claudia saiu com um volume de dissecação humana e taxidermia.

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Regressou uma semana mais tarde.

- Um caixão simples, não? Cumpre o seu papel, imagino. Afinal, é terra e larvas para todos nós lá em baixo.

Claudia ergueu a parte superior do corpo do caixão. Só reparou na mão dele estendida um momento depois, aceitando-a e saindo do caixão.

- Quanto tempo vos demora a talhar um destes?

- Caixões são surpreendentemente fáceis de talhar - respondeu, pegando no exemplar em questão e devolveu-o à parede mais afastada da loja. Teria de cuidar da sua ocupante pouco depois de Claudia sair.

- Mesmo os mais pequenos? - perguntou ela entretanto. - Sempre ouvi a expressão que são os mais pesados.

- Não discordo com a expressão. Algumas vidas são demasiado curtas. Os caixões são certamente mais pesados para aqueles que choram os seus pequenos ocupantes. Apercebi-me que tal é, na verdade, uma raridade nesta era. - Viu como o olhar concentrado de Claudia se franziu enquanto ele se voltava e regressava para junto dela. - Não são os mais difíceis de talhar.

- Talhastes aquele à medida? - perguntou ela de novo, desta vez apontando para o caixão ao fundo.

- De facto, serve-vos na perfeição. E sim, talhei-o à medida para a sua ocupante.

- Então suponho que a família o pagou?

- Gosto de talhar os meus caixões mesmo que os hóspedes não tenham familiares interessados em tal.

- Então este hóspede, esta ocupante, por mero acaso tem as minhas medidas.

- Aparentemente.

O seu crescente divertimento pela visita inesperada de Claudia, com um pedido tão bizarro, trouxe um sorriso renovado ao seu rosto enquanto as engrenagens na mente da jovem giravam para o lugar, confirmando as suas próprias suspeitas. A sua questão à cerca de algum trabalho actual num caixão, e o pedido para testar o seu mais recente, juntamente com questões que tentatam ser dissimuladas mas eram, apesar disso, claras como água para ele.

- Seria possível ver o corpo dela?

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Obviamente na sua linha de trabalho, neste disfarce de coveiro (Mr Undertaker...) para aprender e se misturar com os humanos, rapidamente se familiarizou - ou reencontrou - com o espectro de escuridão que tocava - ou ensopava - o mundo humano. Esta linha entre o seu mundo e o dos humanos misturava-se tão facilmente, este submundo onde pessoas comuns não deveriam deambular e no entanto onde tantas eram despejadas e massacradas.

As jovens mulheres continuamente assassinadas nos passados dias eram claramente relacionadas umas com as outras, o mesmo assassino criando a sua forma pessoal de divertimento. Apenas a família de uma das jovens o abordara para um funeral digno da pobre vítima; as outras foram entregues pela polícia, recolhidas das ruas. Despejadas nas sarjetas como lixo.

Duas delas tinham sido arrastadas para fora de East End por crianças. Vira-os levarem os corpos para perto de ruas mais movimentadas para que a polícia as encontrassem. Foram-lhas trazidas sem intervenção policial.

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O interesse de Claudia no macabro era fascinante. Apesar da primeira impressão pelas suas palavras relacionadas com o seu parente Phantomhive, a vida e a morte pareciam ser temas tão apelativos para ela quanto eram para ele, e as suas conversas revelar-se-iam ser bastante envolventes e interessantes.

O motivo real pelo que o visitara não lhe escapou, e ela depressa perdeu a vontade de o disfarçar. As jovens mulheres assassinadas.

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Cuidou das jovens com toda a sua atenção, sabendo ser simultaneamente um consolo para as suas famílias, respeito para com elas e encobrimento para o seu assassino.

Manteve as faixas de renda que as jovens tinham nos seus pulsos. Claudia acrescentou-as às que recolheu da polícia, que por sua vez tinham sido recolhidas dos pescoços ensanguentados das vítimas, os golpes profundos o suficiente para serem fatais.

- Mas estas marcas nas suas pupilas são sinal de asfixia - Claudia dissera após inspeccionar a primeira vítima.

Ela caminhava para trás e para frente pela mortuária, mão pensativamente colocada sob os lábios. A passada semana trouxera uma nova vítima. Claudia visitara duas vezes.

- O seu único padrão é a idade. E o método de assassínio, claro. E apesar disso, a polícia não repara nas faixas nos seus pulsos direitos? É a mesma maldita renda das suas forcas. E este método de assassínio é apenas brutalidade dupla. Porquê esquartejá-las depois da morte? E a renda depois?

- Achei as braceletes interessantes, na verdade - comentou, colocando um dos potes de embalsamento de volta ao lugar.

- Braceletes? - ela voltou-se. Mantivera os seus disfarces dos dias de criança. Mas com o cabelo atado, parecia mais velha.

- Não vos parecem braceletes?

- Então, a renda nos pescoços fariam as vezes de uma gargantilha?

- Talvez. A maioria das hóspedes não chegou ao meu cuidado com as suas gargantilhas, graças à polícia ter confiscado a renda para os seus arquivos.

- Então, renda... sugere alguém com posses, correcto? Mais provável do que a alternativa, que poderíamos estar a lidar com um ladrão que procura renda.

- Talvez.

- Renda... deveria investigar alguém rico? Talvez um alfaiate? Um leque demasiado alargado, mas faz sentido, não faz?

- Fabricantes de bonecas também usam renda.

Ela voltou-se de novo.

- Perdão?

Ele encolheu os ombros. - Descobri que uma quantidade surpreende de pessoas tem um fascínio por bonecas.

- Eu também gosto de bonecas - acrescentou ela, e ele pestanejou em interesse. - Mas normalmente é associado com crianças pequenas. Estas vítimas tinham catorze anos. Um ano mais velhas do que eu.

Encolheu os ombros novamente.

- Bonecas um pouco mais velhas são bonecas de igual forma.

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- Posso perguntar porquê o interesse?

- Sobre?

Aceitara acompanhá-la numa 'missão de reconhecimento' a uma loja de brinquedos perto de East End, e enquanto aguardavam pelo que quer que Claudia tivesse curiosidade, bem poderia perguntar acerca daquilo que ele tinha curiosidade.

- Isto. Estes homicídios.

- Há pessoas a serem assassinadas. É apenas natural querer descobrir e parar tais mortes.

- Para a polícia, talvez.

- A polícia não quer saber.

- Em parte a razão para perguntar. Uma nobre dama não se interessa habitualmente por tais coisas.

- Julguei ter-vos dito a princípio que tenho interesses distintos - disse ela em irritação, sem se voltar para ele e ainda fixada na entrada da loja, enquanto permaneciam escondidos na esquina e ela ajustava a boina para manter a inquietação afastada.

- Sim, o que é extremamente adorável. Mas...

- Ireis calar a boca se vos disser que estou em missão para Sua Majestade?

- A Rainha Victoria?

- Há outra que eu desconheça?

- Suponho que haverão outras não relevantes para o assunto.

- Então deixai o assunto em paz. Eu sou o seu Cão de Guarda. Ou serei, de qualquer das formas. Deixai o assunto.

Ele sorriu, pousando a cabeça contra a parede. Não estava tão dedicado quanto Claudia nesta missão de reconhecimento. Enquanto esperavam, entreteve-se sabendo que Claudia era uma serva especial da Rainha.

E com o conhecimento de que Sua Majestade A Rainha Victoria não teria muito interesse no que, para todos os efeitos, eram homicídios banais.

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Claudia formulou um plano.

Seguindo a sua sugestão, estava decidida na possibilidade de o assassino ser um fabricante de brinquedos - uma versão deveras retorcida de bonecas seriam portanto reflectidas nas suas vítimas. Acrescia o acesso que um alfaiate teria a renda para costurar, objectos cortantes como tesouras para cortar os seus pescoços, e possivelmente algum acesso monetário... mas tudo isso era circunstancial. Um alfaiate corresponderia aos mesmos critérios. Uma parceria entre duas pessoas, um fabricante de bonecos e um alfaiate, também poderia funcionar. Ela seguia o pressentimento dele, pouco mais que isso.

Sem descartar a possibilidade de se usar como isco, o que seria a decisão mais lógica, decidiu manter-se à espreita para encontrar uma futura possível vítima. Dado o número de cadáveres, não deveria demorar muito, e de facto não demorou. Escolheu uma loja de brinquedos perto de East End seguindo as informações dele sobre as duas jovens que tinham sido arrastadas de lá por aquelas crianças abandonadas. Era um local conveniente para encontrar possíveis vítimas.

A sua missão de reconhecimento concluiu o óbvio; crianças espreitavam os brinquedos e bonecas de porcelana na montra com brilho nos olhos, mas quase nenhuma entrava. O fabricante de brinquedos não saiu até altas horas da noite quando a loja já estava fechada.

Um segundo dia de vigia, e uma jovem com roupas esfarrapadas admirou as bonecas na montra, e o dono saiu e teve uma pequena conversa com ela.

O plano de Claudia era simples.

Se a mesma jovem regressasse, e entrasse na loja, Claudia segui-la-ia. Com certeza alertaria o fabricante de brinquedos se ele fosse de facto o assassino, mas a sua intenção era simples: enquanto distraia o possível assassino oferecendo-lhe uma outra possível vítima, iria averiguar as bonecas dentro da loja à procura de renda que correspondesse com a das vítimas.

Seria prova definitiva para ela. A renda nas vítimas exibia um padrão demasiado distinto para ser confundível.

Foi pressentimento dela que, se um fabricante de bonecas estava a matar jovens mulheres numa versão retorcida de bonecas, iria manter um souvenir delas. E se tinham uma 'gargantilha' e uma 'bracelete direita', então a 'bracelete esquerda' estava em falta. Seria um sinal revelador se alguém a visse.

Mas ninguém estava à procura.

Nessa noite, ele perguntou-lhe:

- E se eu fosse o assassino, Lady Claudia? - Uma possibilidade muito plausível. Ele dera-lhe o palpite de um fabricante de bonecas, ele tinha os meios para se livrar das vítimas. Poderia pretender matá-la.

- Eu conheço-vos.

- Não vejo como alguns dias...

- Vi-vos quando era uma criança, estais recordado?

E quando eras bebé, e ambos os casos rodeada de morte.

- Não mateis pessoas. A morte não é cruel. Está apenas lá. As pessoas é que são cruéis.

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Claudia não tencionava matar o assassino. Tencionava encontrar provas definitivas para que a polícia não pudesse permanecer imóvel e interviesse.

Para isso, precisaria da ajuda dele.

As duas jovens de East End que a polícia nunca achara.

Com contribuições da sua colecção de vestidos, devidamente alterados e arruinados para se enquadrarem com as vítimas, mudou as vestes andrajosas e identificativas das pobres moças para as dela, transformando-as em nobres após a morte. Tinham as suas 'gargantilhas' originais e 'braceletes' que poderiam devolver.

Claudia acrescentou um farrapo de vestido de boneca, que cortara de uma das bonecas de porcelana antes de ser atirada para fora da loja. Uma boneca de porcelana de colarinho e punhos de renda branca, o padrão distinto o suficiente entre os punhos direito e esquerdo.

Deixaram as duas jovens na rua.

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Os pais de Claudia estavam no exterior da mortuária quando ela se aproximou. Reconheceu as feições de Lady Phantomhive como tendo sido herdadas pela avó de Claudia, e por sua vez passadas (suavizadas) a Claudia. O momento que demorou a recordar a Shinigami severa, desagradável e aborrecida em que aquela velha mulher se tornara foi deveras engraçado.

- Só vos queria dizer - disse Claudia apressadamente, sem sequer um cumprimento. - O perpetrador dos assassinatos foi preso.

- Sim, eu sei. Não irá sentar-se numa cela, no entanto. Irá para uma residência mais permanente.

- Oh. Bem, não é grande perda então, pois não? - Sob a severidade de família, ela soava de facto agradada. Afinal, o culpado era um assassino atroz. A sua morte às mãos de East Enders não estava longe de justiça poética. - Obrigada pela vossa ajuda. Foi deveras importante.

- Estais à vontade para experimentar os meus caixões sempre que desejardes, Lady Claudia.

- E pelos vossos livros. Acabei aquele de dissecação.

- Estou a meio de adquirir alguns títulos dos outros temas para vós.

Ela assentiu e voltou-se para os seus pais, mas estacou por um momento e voltou novamente para ele.

- E pela vossa companhia. As nossas conversas têm sido bastante agradáveis.

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continua

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