- Cão de Guarda da Rainha.

- É suposto ser um segredo.

Ele riu baixinho.

- Não deveria esse título ser hereditário?

- Bem, é. Mas estou em treinamento.

Viu, divertido, como Claudia puxou o cabelo para trás e procedeu a polir o aspecto andrajoso puxando e despenteado algumas madeixas para fora do sítio.

- Treinar resolvendo homicídios.

- Faz parte do trabalho. Sua Majestade preocupa-se muito com o seu povo.

- Parece-me improvável que Sua Majestade a Rainha teria interesse em tais, descrevendo directamente, homicídios comuns de adolescentes.

Claudia nem sequer pestanejou.

- Essas foram as minhas próprias investigações. O assunto incomodou-me e é bom treino. Faço-o desde criança.

- Então admitis que Sua Majestade não teria o menor interesse neles de outra forma?

- Não disse tal coisa. Deveríeis tomar cuidado com as vossas maneiras. Estamos a falar da Rainha.

.

O sobrolho de Claudia estava vincado por uma linha profunda, carregando a sua expressão com tristeza a raiva. Chamou-lhe a sua atenção. No entanto, permaneceu em silêncio por alguns momentos. O silêncio esmagou o ar à volta de ambos.

- Imagino que vejais muito mais disto quando vos tornardes Cão de Guarda da Rainha.

- Eu sei disso. Não me incomoda. Enfurece-me.

- Não estão ambos entrelaçados, minha querida?

Claudia não pareceu irritada com ele. A sua atenção e emoções estavam demasiado fixas na criança para se envolver nas habituais trocas de palavras afiadas a que ele se apegara e com que se divertia tanto.

- Eu sei que justiça dificilmente deve ser sequer mencionada. É simplesmente como as coisas são. Mas sejam quais for os pensamentos ou realidade a que estejamos presos, parece sempre errado quando se trata de crianças.

Ela voltou o olhar para ele então.

- Estais demasiado habituado a isto para sentir alguma coisa? Para questionar? É melhor não questionar de todo?

- Questionar o quê?

- O que poderia ter sido. O 'e se'. Algumas vidas são demasiado curtas.

O pensamento trouxe o mais pequeno dos sorrisos aos lábios dele.

- Eu questiono. Talvez por razões egoístas.

- Egoístas?

- Tenho curiosidade. Sobre o que poderia ter acontecido depois. O que poderiam ter conquistado.

- Isso não é egoísta de todo, Interrogo-me pelas mesmas exactas razões. Acabei de o dizer. 'Porquê agora?' 'E se?' Este rapaz poderia ter-se tornado alguém importante. Afectado vidas à sua volta para o bem ou para o mal. Ou talvez só tivesse vivido para sofrer e desejar que a vida terminasse. E se ele não tivesse cruzado aquela esquina, e se alguém o tivesse ajudado? Seja como for, se ele tivesse vivido, teria tido possibilidade, chance. Mudança.

O peso no ar permaneceu, a raiva de Claudia ainda a encher a funerária e confinando-a no redemoinho de emoções que a maioria dos humanos provavelmente atribuía a uma casa de morte e ao processo de luto. E apesar disso, aqui estava ele, sentindo aquele peso estranho no seu peito provocado por ela, agora tornado numa sensação de felicidade.

Que maravilhoso. Podia discutir este assunto com alguém, finalmente. Sem as suas opiniões ou questões serem demarcadas como sacrilégias.

- Faz mesmo pensar se esta existência em particular estaria amaldiçoada a sofrer - continuou Claudia, os olhos baixos sobre o rapaz de novo, fixos nos buracos onde os seus olhos deveriam estar. - Se não para morrer desta forma, para morrer de uma semelhante mais tarde. Mas quando me interrogo sobre isto, chego sempre a esta conclusão: é o entretanto que teria sido relevante.

Ela suspirou, embora num sibilo cortante em vez de uma expiração melancólica.

- Realmente, todas estas perguntas... mesmo se este rapaz vivesse uma vida de dor, seria sua. Para crescer e chegar à idade adulta pelo menos. Deveria escolher terminá-la pelos seus próprios termos. Não ter outra pessoa arrancar-lha desta maneira bárbara.

Finalmente, percebeu. Aquele jovem homem e a sua invenção, aquela invenção de imagens em movimento que lhe tinham parecido tão interessante ver concluída.

Tivera os seus motivos egoístas para levar o corpo dele e voltar a tocar o Cinematic Record numa tentativa vã de imaginar a continuação que nunca aconteceria. Não fora um acto altruísta, como Claudia o fazia parecer - ele estivera curioso. Depois então toda a situação com os Grim Reapers, aquelas acusações e punição dolorosamente enfadonhas. Parecera-lhe hipócrita na altura, algo acerca de tudo aquilo.

Finalmente percebeu.

Não podiam interferir na vida humana, não afectar ou mudar a morte. Aquela 'salvação' que os Grim Reapers poderiam atribuir a uma alma humana nunca acontecera. Mesmo que fosse um inventor promissor que poderia talvez mudar o futuro, ou uma simples criança inocente apanhada na loucura de adultos.

Mas as suas vidas tinham sido alteradas, quando tinham tomado nas suas mãos a decisão de as terminar. Shinigami estavam vivos, à sua própria maneira, quando deveriam estar mortos. Eles tinha uma continuação. Os seus Cinematic Records tinham chegado ao 'FIM' que ansiavam. Em vez disso, tinham uma continuação. Forçada a testemunhar morte e não poder dar a outros uma continuação.

(Não era isso tão irónico e hipócrita.)

E ele não poderia dar isso a outro. Vida e morte não eram suas para interferir. Mesmo se isso só trouxesse mais dor, não o mereciam.

Ah...

Encontrara Claudia, a bebé que sorrira à Morte, esta jovem mulher que o fizera sorrir. Nesta continuação indesejada que a sua vida tivera, recebera isto.

Aqueles colegas Grim Reapers não permitiriam que isso fosse dado a outra pessoa.

Se Claudia fosse quem estivesse deitada nesta mesa amanhã no lugar desta criança, sangue vertido em mármore carmesim sobre pele pálida e órgãos rasgados, Undertaker não lhe poderia dar uma continuação.

Ha.

Ha ha.

...Porque não?

.

De entre os três livros, o último volume destacava-se em tamanho e pela pura aura sinistra, a sua capa de cabedal envelhecida e escurecida, a lombada revelando a sua idade. O cheiro distinto a pó antigo estava impregnado em cada página. Os olhos de Claudia brilharam de forma não muito subtil e os seus lábios curvaram-se daquela forma maravilhosa, que neste caso pareceu provocar nele uma pontada de culpa a si em vez da alegria que começara a associar com o sorriso dela. O livro ainda estava em segurança nas mãos dele.

A qualquer outro humano, a sua distinção entre o fascínio de Claudia pelo macabro e o seu fascínio com o oculto dificilmente teriam qualquer distinção. Uma não era pior do que a outra. Esta era de Inglaterra Victoriana tinha mais do que interesse na morte e no além, mas revelar muito interesse (ou além dos limites sempre mutáveis da sociedade) e até uma jovem nobre poderia ser olhada com desaprovação. Poderia gerar atenção indesejada e medidas contra esse interesse exagerado.

Para ele, o fascínio com o oculto era um caminho perigoso para o qual ele a estava a conduzir.

- Esse parece maravilhoso.

- Isto também não é para a Rainha, pois não?

- Ao que vos referis?

Posou o livro na mesa, ligeiramente relutante em fazê-lo, mas ainda mais relutante em continuar a segurá-lo.

- Estais a trabalhar em algum caso para a Rainha relacionado com estes assuntos?

- Não de momento, não. É para minha própria diversão.

O rosto dele, onde o seu sorriso permanecera de forma quase constante depois desta criança aparecer na sua vida, estremeceu numa careta.

Em oposição, Claudia estava divertida por tal expressão. - Sinto que alguém não gosta do tema.

- É um assunto que rapidamente se torna desagradável.

- Desagradável? A que vos referis? Do que temos falado nestes passados meses?

Aparentemente, a própria Claudia não diferenciava entre macabro e oculto.

Pensou em como explicar sem acrescentar mais àquele sentimento de culpa. Com a sede incessante de Claudia por conhecimento, simplesmente não queria ser o responsável por a empurrar para perigos para os quais a juventude dela e sucessos do passado ajudariam a fomentar imprudência.

Claudia não questionou de onde vinha o seu conhecimento por assuntos do oculto: se daquele grande livro velho, se da sua própria experiência com o submundo e o além. Ouviu, fascinada, tal como ele sabia que ficaria, e segurou o livro no colo, ainda mais ansiosa para devorar os conteúdos e tirar as suas próprias conclusões.

- Demónios. Então eles existem de facto.

- Não vos envolveis com esse tipo de seres.

- Roubam-vos almas que são vossas?

- Eu não fico com a alma de ninguém.

- Mas eles tiram almas. E se...

Caminhara para o lado da varanda, num reflexo para se afastar do assunto, e ergueu os olhos para ela. Não que ela os pudesse ver, mas sentiu o seu olhar.

- Ora, estais preocupado comigo, logo comigo - riu ela, mas não estava a tentar ser arrogante. Não mais do que o que já transparecia habitualmente. - Achais que ignorar o tema por inteiro é a resposta? E se me cruzar com um caso de ocultistas ou satânicos? E se me cruzar com um demónio em pessoa?

Espero sinceramente que não.

- Aprender mais só pode ser um beneficio. Saberei o que fazer e como agir, do que deverei estar atenta e o que não fazer.

- Achei os livros para vos de qualquer das formas, não foi, Lady Claudia?

- Então estais a ser condescendente para com a minha procura por conhecimento.

Precisamente a origem da sua culpa, por mais infundamentado e paranoico pudesse parecer.

- Tomai cuidado com o que aprendeis.

- Não devereis dizer tal coisa.

.

1844

- Undertaker.

- Hm~?

- Aqui. Terminei os vossos livros. Obrigada pelo trabalho em os achar.

- Não foi um problema. Fico feliz por poder ajudar.

- Não fiquei muito impressionada com os seus conteúdos. Preferi muito mais a nossa conversa naquele dia.

- Bem... eu também aprecio muito as nossas conversas.

Claudia aproximou-se de um dos caixões apoiados contra a parede.

- Se encontrar um demónio, estareis a meu lado para me proteger, sim?

Ele pausou por um momento antes de terminar de reabastecer a prateleira de óleos de embalsamento que recebera. Não se incomodou a perguntar de onde vinha a confiança nas capacidades dele. Qualquer outra pessoa poderia perguntar, mas não fazia sentido para ele.

- Claro que sim, Lady Claudia.

- Não ficaríeis preocupado, pois não?

- Só se estivésseis em perigo. Aprecio demasiado a vossa companhia.

- Não quanto a vós?

- Não.

Ouviu-a rir, voltando-se para a ver sorrir, a marca de realeza demasiado clara nas suas feições.

- Sinto pena do demónio que se possa cruzar convosco. Manhosos como poderão ser, não são estúpidos. Nem eles podem escapar à Morte.

.

- Oh, já não aguento mais esse maldito cabelo.

Estas foram as únicas palavras de aviso que recebeu. Claramente mais do que suficiente, mas ainda tornou a rapidez de Claudia notável. Teve pouco tempo para fazer mais do que pestanejar quando o peso confortável e familiar do seu chapéu simplesmente desapareceu da sua cabeça, e pestanejar de novo quando dedos suaves e quentes voaram sobre a sua testa, afastando a franja dos seus olhos.

Do seu ponto de vista, Claudia nem sequer pestanejou, girando sobre os calcanhares com um rodopio e remexendo numa maleta de mão que claramente aparecera por magia de lado nenhum. Mais um rodopio e começou a pentear e a espetar ganchos de cabelo aqui e ali. E ele ficou ali de pé, demasiado chocado para se mover - o que na verdade não foi muito tempo. Ficar de pé, pelo menos - Claudia podia ser alta, mas ele elevava-se sobre ela. Portanto a coisa lógica a fazer era sentá-lo. E ela forçou-o a cair numa cadeira.

Uma jovem mulher de quase (tal como especificamente realçado por ela) catorze anos de idade a atirar um homem adulto bastante alto numa cadeira para que ela pudesse atirar-lhe o cabelo de um lado para o outro. Basicamente, a situação era ridiculamente cómica.

Estaria a ser cuidado de maneira semelhante a como ele cuidava dos seus hóspedes na funerária? E além disso, parecia ser a primeira vez que se recordava presenciar uma dama a tomar tão prontamente em suas mãos uma tarefa tipicamente de uma serva. Tentou brincar com ela sobre isso, mas foi rispidamente silenciado.

- As damas devem ser versáteis. Deveríeis saber por esta altura que sou bastante capaz numa série de tarefas em que as 'damas' não são abastadas.

- Bem, ganhastes~

- Estou bastante ciente de quantos me considerariam apropriada para um asilo. E dotes de cabeleireiro seriam definitivamente o último acto com que me marcariam.

Concordando com as suas palavras, ficou em silêncio e comportou-se enquanto a jovem Lady Claudia espalhou e arranjou e prendeu madeixas de cabelo, o seu aspecto composto e concentrado espelhando uma criança a brincar com a sua boneca.

Bonecas. Vêem? Muitas pessoas gostam de bonecas.

A ideia de acabar momentos como este era desagradavelmente triste.

- Phew. Muito melhor, digo eu.

Antes de olhar para o seu reflexo, o que já retirava da brincadeira de bonecas da jovem dama era que o seu rosto estava dolorosamente exposto a toda a luz (ou a qualquer luz) que as velas emanavam pela escuridão. Os seus olhos ajustaram-se a ela, e a sua visão desfocada mantinha-se mesmo sem a franja à frente da cara. Olhou para cima para Claudia, mas ela já lhe voltara as costas, procurando pela funerária por alguma coisa. Em vez de lhe perguntar, demorou o seu tempo antes de suspirar de forma muito audível e se voltar para a sua maleta de mão mágica. Regressou com um espelho prateado que colocou muito perto da cara dele - ela sabia.

E de facto, o seu reflexo fixou-o do outro lado, os olhos sobrenaturais pestanejando perante a imagem das cicatrizes passado tanto tempo. Não se lembrava de alguma vez ver as suaves rugas de um sorriso à volta delas.

- Vês? Não deveríeis esconder os vossos olhos atrás de óculos ou de cabelo.

Ele sorriu de novo.

- Nem todos reagem como vós, Lady Claudia.

- É uma pena. A melhor coisa da vida é saber que ela vai terminar. Saber isso faz tudo o resto valer a pena viver. E os vossos olhos são belos.

Ele riu pelo elogio tão pouco característico da parte dela, e ainda mais após a sua imediata repreenda por tal reacção.

.

O penteado elaborado durou pouco tempo. Mas foi agradável. E muito belo.

E a única coisa fácil nele eram as tranças.

Sob as suas mãos destreinadas, tudo o que poderia desejar alcançar era uma simples trança, caindo ao lado do seu rosto até à sua anca. Trabalhar nela provocava uma sensação estranhamente calma. A simplicidade do acto foi tão agradável quanto ouvir Claudia rir. E sentir a simetria sob os seus dedos quando tocava no cabelo foi como uma recordação desses mesmos sorrisos e risos.

- Guardastes algo das nossas sessões de cabeleireiro? - O sorriso matreiro nos lábios dela foi a primeira coisa que viu na visita seguinte.

Undertaker sorriu.

- De facto sim. Obrigado, Lady Claudia.

.

continua

.


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Nota: Sim, só a partir daqui é que o Undertaker se começa a referir a si próprio dessa forma.