Nota: Esqueci-me de dizer, há uma referência à Jessica Rabbit no capítulo anterior.

Este capitulo ficou muito grande. O capítulo anterior foi muito leve, e este segue mais ou menos essa linha. No entanto, vamos muito devagar mas seguramente em direcção da escuridão.

A 'moeda'/'fava' no bolo de anos é algo que li sobre festas de anos da era victoriana. É suposto dar sorte à pessoa que a apanha.

Quanto aos tratamentos vós/tu: O Undertaker trata o Vincent e a Francis por 'tu' porque... sim. São filhos da Claudia, conhece-os desde que nasceu, tal como a Claudia, mas...bem, muda para o vós na presença da Claudia. Talvez seja irritante para os leitores. Digam-me se assim for.

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1857

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- Aqui tens, pequena dama.

- Mas é o meu aniversário.

Undertaker riu baixinho perante a expressão magoada e traída do rapaz, os olhos presos e seguindo a prenda que voou para as mãos de outrem. A pequena Francis guinchou de encanto e abraçou o presente com força. Agradeceu-lhe no seu perfeito Inglês de bebé e procedeu a rasgar o papel de embrulho de imediato.

- Boneca! - guinchou ela estridentemente e saltitou de alegria, para satisfação de Undertaker. Interrogou-se de imediato se Claudia fora assim com três anos de idade, e quanto poderia provocá-la com o contraste hilariante perante o seu característico decoro agora em adulta. - Ob'igada, Andateika!

- Mas é o meu aniversário - insistiu Vincent, a voz a quebrar ligeiramente ao seguir a irmã. O seu sobrolho arqueou comicamente e concedeu uma gargalhada a Undertaker mesmo antes de continuar: - Aquilo é uma boneca morta?

- Claro que não! Ela terá uma vida maravilhosa sob os cuidados da tua irmã - respondeu Undertaker.

Vincent tentou apanhar um relance da boneca única, mas a sua irmã estava a mantê-la fora de vista. E a sua atenção voltou-se imediatamente para outro lado assim que Undertaker moveu a mão atrás das costas com um sorriso.

- E aqui tens, homenzinho.

Os olhos de Vincent reluziram literalmente quando Undertaker revelou um embrulho escuro. Tentou, e na verdade conseguiu, manter a sua excitação e compostura controladas apesar de ser da altura da anca de Undertaker. Era filho de Claudia, afinal. A nobreza corria-lhes nas veias.

- Muito obrigado. É a primeira vez que me chamas de homem - notou ele, peito inchado de orgulho.

- Ainda penso que seis anos de idade é demasiado cedo para tratar alguém dessa forma, mas... - Undertaker sorriu abertamente e colocou um dedo sobre os lábios. - Não deixes a tua mãe ouvir-me ou ela vai estrangular-me de cada vez que te chamar 'pequeno' de novo.

- Posso abrir? - Vincent olhou para Francis com uma carranca, agora a bailar com a sua boneca de pano. Era um 'homem'. Tinha de manter a compostura.

- A tua mãe disse alguma coisa contra?

- Bem... ela disse que não podia abrir nada antes de os convidados chegarem, mas cada convidado vai trazer uma prenda, portanto estou a abrir quando o convidado chegou.

Filho de Claudia, afinal. Inteligente e ardiloso.

Como se tivesse pressentido o nome, ou mais provavelmente seguindo o anúncio da sua chegada de Tanaka há pouco, Claudia apareceu no hall com Cedric. Foram primeiro recebidos por Francis, o que deu tempo a Vincent para entrar ligeiramente em pânico ao debater-se para não desembrulhar o resto do presente e fingir que lhoo fora entregue naquele estado.

- Mamã, Papá! O Andateika deu-me uma boneca! - disse a criança alegremente, levantando a boneca de pano macabra. Era difícil escolher entre ver o tormento de Vincent ou ver a recção dos pais, mas Undertaker decidiu que preferia estar mais perto para ver a expressão de Cedric em particular.

- É adorável - disse Claudia, e conseguiu ouvir o sorriso na sua voz. - Já agradeceste ao Undertaker?

- Sim! - respondeu ela, abraçando a boneca.

- Parece... ter sido feita à mão - o comentário de Cedric ouviu-se mesmo de onde Undertaker estava, e teve de lutar para não rir tão alto quanto de facto queria.

- Tenho a certeza que foi - foi tudo o que Claudia respondeu antes de se aproximar de Vincent e de Undertaker. Nessa altura, o rapaz decidira fingir que o presente lhe fora entregue com metade do papel pendurado em farrapos. Tendo em conta que fora Undertaker a oferecê-lo, provavelmente conseguiria ser bem sucedido, não tivesse Vincent se esquecido que tinha o presente escondido de forma muito suspeita atrás das costas antes de o atirar prontamente para o colo.

- Mãe! Também tenho um presente! Hã, quero dizer... é o meu aniversário, por isso claro que tenho um presente.

- Sim, Vincent, eu sei - Claudia ainda estava a sorrir de forma algo presunçosa e a sua expressão apenas se intensificou ao voltar-se para o cumprimentar. - Olá, Undertaker. Obrigada por vires.

- Claro~ - Undertaker não conseguiu resistir dirigir-se a Cedric em particular quando continuou: - A pequena Francis está feliz com o presente, não está?

- Está. Obrigado, Mr Undertaker. - Os anos tinham-no deixado bastante mais confiante em si próprio, mas Cedric tinha aquele medo subconsciente de Undertaker ('Respeito...' Claudia dissera-lhe que recebera essa resposta do marido acerca do assunto) que nunca deixava de o entreter. O homem voltou-se para Vincent, apropriadamente pouco surpreso pelo embrulho esventrado. - Já abriste o teu, Vincent?

- Hã, não, não abri... - Com a permissão implícita, Vincent desembrulhou o resto do papel e revelou a sua prenda. - 'The Narrative of Arthur Gordon Pym of Nantucket'! Não conheço este autor. Obrigado, Undertaker!

- Parece que tem poesia muito agradável e intrigante, mas só consegui adquirir este livro impresso. Se gostardes do seu trabalho, tentarei encontrar alguns poemas para vós.

- É britânico?

- Anglo-americano, segundo li.

- Tenho a certeza que terá temas interessantes - Cedric não conseguiu evitar comentar, sem intenção de ser uma crítica mas inevitavelmente sendo uma. O seu cérebro ainda estava atordoado pela nova boneca da sua filha.

- Tenho a certeza que sim - concordou Claudia. - Sabes que gosto de poesia, por isso tentarei encontrar os seus trabalhos.

Os convidados chegaram, uma escala menor do que no casamento de Claudia mas ainda assim bastante considerável. Tal como nessa altura, Undertaker permaneceu ligeiramente afastado de toda a gente, um observador apreciando silenciosamente as interacções. As expressões chocadas perante a boneca de Francis eram cada vez mais engraçadas, embora tivesse pena de não as conseguir ver a todas claramente devido a sua fraca visão. Algumas das crianças gritaram de forma bastante audível apenas para receberem sorrisos e uma onda de elogios de Francis na sua voz de bebé. A família Phantomhive esteve bastante entretida durante toda a tarde, e Claudia pareceu ter encontrado conversas interessantes em que participar, o que era sempre digno de nota. Mas ele suspeitava que algumas das respostas mais afiadas continuassem igualmente eficazes, a julgar por algumas reacções.

Durante a tarde, Vincent deixou os dois rapazes com quem estivera a falar durante longos minutos e aproximou-se de uma das mesas com comida, petiscando um doce enquanto procurava por um presente por entre a pilha de prendas. Pegou em dois dos livros que lhe tinham oferecido e sentou-se numa cadeira ali perto. Undertaker aproximou-se dele, e apesar de ter aparecido de surpresa atrás dele, Vincent nem pestanejou de susto.

- Ouvi a tua corrente - explicou ele, um sorriso vitorioso nos lábios.

- Estou a ver~ Estás a gostar da festa? - Vincent assentiu. - Entusiasmado com o teu bolo de anos?

- Não seria muito original se o aniversariante recebesse a fava - respondeu ele com um sorriso mais tímido.

- Eu não diria isso.

- Podes prová-lo? Não te vejo comer muitas vezes.

- Eu como imenso!

- Biscoitos, diz-me a Mãe. O meu bolo de anos vai ser delicioso!

- Claro que vou provar.

Satisfeito, Vincent baixou o olhar sobre os livros.

- Queres ver que outros livros recebi? Parecem ser todos muito interessantes. Vou começar pelo teu, mas depois não sei qual deverei escolher.

- Posso tentar - concordou Undertaker, ajoelhando-se ao lado de Vincent.

O rapaz mostrou-lhe as diferentes capas, que Undertaker viu maioritariamente como manchas escuras de cor, e ordenou-os de forma aleatória para Vincent. Quando o rapaz insistiu que Undertaker lhe dissesse a razão das escolhas ('O assunto parece ser mais interessante? Este autor é melhor? Ou é este...'), Undertaker pegou nos livros um a um e ergueu-os perto da cara para que pudesse efectivamente ver do que se tratavam. A ordem de preferência manteve-se mais ou menos a mesma, mas quando apanhou o olhar de Vincent desviar-se tentativamente para longe dos livros, parou de falar.

- Undertaker.

- Siiim~ pequeno Vincent?

- Posso perguntar uma coisa?

- Claro.

- Posso perguntar porque escondes os olhos?

- Hee hee... oh, é algo que te incomoda?

Vincent encolheu os ombros, abanando a cabeça de seguida.

- Nem por isso. Estou apenas curioso. Poderia ser pelas cicatrizes... incomodam-te?

- De todo.

- Então são os teus olhos, certo?

- Taaalvez~

- A tua visão não vai melhorar se os tiveres sempre tapados.

Undertaker riu pela escolha de palavras, tão familiar.

- Podes mostrar-me?

- Oh? Tenho de começar a pedir pagamento pela informação, meu pequeno lorde.

Vincent pestanejou, surpreendido. Não estava à espera daquilo.

- Pagamento? Não tenho dinheiro. E é o meu aniversário. Não posso pedir como prenda de anos?

Sorriu abertamente.

- Aaaah, muito bem. Ganhaste, pequeno lorde. Mas para a próxima vou cobrar. - Apesar de ele já ter pago de qualquer das formas. Undertaker continuou a rir pela resposta pronta do rapaz enquanto movia os dedos sobre o rosto, voltando as costas ao hall e aos convidados. Vincent conteve a respiração por um momento antes de Undertaker afastar o cabelo.

Satisfeito, Vincent espelhou o olhar de conquista da mãe.

E tal como a sua mãe, ele soube, mas não o disse em voz alta.

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Talvez pudesse ser por ter retido um forte sentido espiritual, ou talvez fosse simplesmente muito óbvio, mas Undertaker sorriu à fatia de bolo que recebeu. A pequena Francis calhou a estar por perto, e ele encorajou-a a abraçar o seu irmão e felicitá-lo pelo aniversário novamente. A criança fê-lo de forma entusiasta, o que significou que fez Vincent cair de joelhos com um único puxão e guinchou tão alto no seu ouvido que ele provavelmente ficou ensurdecido por alguns minutos.

A sua figura vestida de negro não era exactamente a melhor para ser discreto, mas a sua excentricidade poupava-lhe que as pessoas tentassem compreender porque se movia para um lado ou outro. Enquanto Vincent se debatia para se libertar do abraço adorável de Francis, Undertaker passou atrás deles e mesmo junto à mesa, trocando casualmente os dois pratos, sorrindo o tempo todo perante o cenário adoravelmente divertido dos filhos de Claudia.

Vincent estava ligeiramente chateado por a sua tentativa de ser um 'homem' no seu sexto aniversário ter sido esmagada de forma tão fácil pela sua irmãzinha, mas recompôs-se e pegou no prato com bolo atrás de si na mesa. Cortou um pedaço e levou-o à boca, a doçura do bolo perfeitamente confeccionado arruinado pelo baque metálico que os dentes encontraram em vez disso.

- Que maravilhoso, Vincent! - felicitou-o Claudia, tal como Cedric.

- Parabéns! - ecoaram algumas vozes.

Vincent sorriu, procurando o mar de rostos até achar o de Undertaker e lhe mostrar a fava de boa sorte. Undertaker retribuiu-lhe o sorriso e comeu a sua fatia de bolo. Era, de facto, delicioso.

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- De quem são esses medalhões que trazes?

Undertaker espreitou por detrás da franja e sorriu ao pegar na corrente e a elevar tanto quanto conseguia. Vincent inclinou a cabeça, a curiosidade a brilhar nos seus olhos.

- São a tua família?

- A minha família morreu há muito tempo.

- Lamento.

- Não há problema. Já se passou mesmo muito tempo. Nunca cheguei a fazer medalhões para eles. - A ideia atravessara a sua mente, pouco depois de ter reacordado como Grim Reaper. Nessa altura, já era inútil.

- Posso perguntar quem são?

- Foram alguns dos meus hóspedes - começou, segurando o primeiro medalhão que decidira criar. Mally, a criança que merecera muitas mais flores do que aquelas que alguma vez recebera na sua campa, independentemente da frequência com ele lhe colocava flores frescas. - Às vezes há algumas pessoas que seriam capazes de mudar o mundo mas não lhes foi permitido. Conheci um jovem rapaz em tempos, em 1843. Apesar de já ter feito dois medalhões antes dele... A tua mãe e eu tivemos uma conversa acerca dele. Nunca descobrimos o seu nome, mas provavelmente eu deveria tê-lo feito. Nunca fiz um medalhão para essa criança, e arrependo-me profundamente. Mereceu o seu lugar como qualquer uma destas pessoas. Mally, Oliver, Emile, Harry, Alex... todas pessoas muito especiais. O Harry... - voltou o medalhão na direcção de Vincent. - ...faleceu no mesmo ano em que tu nasceste.

- São todos importantes para ti.

- Tão importantes quanto qualquer pessoa, meu pequeno lorde. - Pessoas que partiram cedo demais. Por entre centenas de humanos que visitavam a sua funerária, aqueles cinco tinham deixado a sensação de que mereciam viver; deveriam ter recebido a permissão por um Shinigami que teria observado a sua vida e finalmente, por fim, permitido que continuassem. Mas nenhum Grim Reaper o fez, e aquele que desejara fazê-lo já não tinha poder para tal.

- Não o poderías ter salvo?

- Receio que não. Algumas coisas estão fora do meu controlo agora.

- Oh. Estou a ver. - Vincent leu as suas palavras e Undertaker quase conseguiu ver as engrenagens na sua mente girar, levando às suas conclusões acerca da natureza de Undertaker e das limitações que por algum motivo ele teria. Quando falou, no entanto, não foi o comentário que Undertaker estava à espera. - Farás um para mim?

Por um instante, o seu coração esqueceu de bater. Vincent levantou os olhos, como se tivesse sentido a hesitação de Undertaker.

- Passa-se alguma coisa? - perguntou a criança, endireitando-se e parecendo estranhamento preocupado. - Não pretendi...

- Tudo o que desejo é que a tua vida seja longa, Vincent. Estes medalhões são para aqueles cujas vidas foram curtas demais.

- Estou a ver. Não desejo ser mórbido, mas vivemos em tempos mórbidos. Farás um para mim se eu viver pouco tempo? Gostaria que te lembrasses de mim como de todos esses hóspedes.

A ideia dificultou a sua respiração ainda mais e Undertaker engoliu a custo. Estava grato por os olhos estarem tapados. Ele, que sempre apreciara conversas acerca de vida e morte e aprendera o valor de ambos tão imensamente, de repente não conseguia processar o pedido que o filho de Claudia lhe fazia.

- Mais facilmente impediria que morresses de todo, pequeno lorde.

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1858

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- Corpos mortos-vivos? - Claudia repetiu as palavras, por uma vez com um tom céptico na sua voz no começo de mais uma das suas maravilhosas conversas. Por contraste, Vincent estava entusiasmadamente interessado, apenas os seus olhos traindo mais uma vez a sua compostura treinada. Francis ficara quieta numa cadeira por menos de três segundos antes de saltar e correr pela sala. Tinha a sua boneca de pano que lhe oferecera, o que, como Claudia dizia, era 'a mais segura para ela atirar por aí'. Os servos dos Phantomhive poderiam concordar com isso, mas a imagem da boneca macabra ainda não agradava às susceptibilidades de todos.

- Pareceis pouco interessada.

- Incrédula será uma palavra mais adequada.

- Isto sempre me fascinou. Assumi que ireis partilhar o interesse comigo, todas aquelas possibilidades, os 'e ses', as vidas interrompidas demasiado cedo.

- O rapaz de que falastes? - saltou Vincent, sorrindo com orgulho por Undertaker assentir com a cabeça. Claudia olhou para ambos, e Undertaker conhecia-la demasiado bem para não ouvir o seu comentário mental.

- Estás a falar de casos de há praticamente 15 anos atrás - disse ela em vez disso, uma leve sombra de um sorriso que foi incapaz de conter.

- O tempo voa~

- Vais acrescentar um 'serás sempre uma criança', já agora? Porque com certeza não sou. Mas não deixes que te interrompa, Undertaker. Continua.

Sorrindo, Undertaker fê-lo: - É interessante. E se essas pessoas não tivessem morrido nesse momento? O que teria acontecido se tivessem continuado? Fizestes-me compreender algo bastante hipócrita em toda a questão da vida, morte e mudança, naquele dia.

- Como assim? - perguntou Vincent no lugar da mãe.

- Como, com tanta frequência, as pessoas que têm razões para estar vivo vêem as suas vidas serem cortadas demasiado cedo, e outros que desejam que acabe são forçados a continuar. As mesmas regras deveriam aplicar-se a todos e tal não acontece.

- De certa forma, aplica-se. Um género de equilíbrio entre ambos.

- Não o chamaria de equilíbrio, Claudia.

- Então, a tua ideia dos mortos-vivos - resumiu ela.

- Sim. Todo aquele potencial desperdiçado, e se pudessem recuperar isso continuando a viver de alguma forma? O corpo humano é extremamente complexo, e no entanto existem tão poucas mudanças entre estar vivo e estar morto.

- Não lhes chamaria 'poucas'.

- Então se pudesses actuar nessas mudanças, talvez os conseguisses trazer de volta? - perguntou Vincent. - E se tivesses algo que lhes pertencesse? Como cabelo?

Vincent olhou entusiasmado para os medalhões junto à anca de Undertaker. Claudia seguiu o movimento.

- Duvido seriamente que algo menos do que o corpo da pessoa fosse suficiente - respondeu ela, beberricando o seu chá. - Mas como é que algo assim poderia sequer funcionar? O corpo está morto. O cérebro sofreu danos irreparáveis, não é algo que possa ser novamente ligado como um telégrafo electrónico. Já para não falar da decomposição dos órgãos. Uma parte funcional não seria suficiente para permitir que todo o corpo possa operar de novo. E isso é excluindo o tipo de dano físico que levou a morte.

- Pensais em termos tão estranhamente mundanos, Claudia.

Ela pestanejou perante o comentário, atravessando a camada de cabelo sobre os olhos dele. O que, agora que ele pensava nisso, poderia ter afastado do rosto como fazia com ela há anos. Não era como se fosse assustar Vincent. Oh, mas Claudia ainda não sabia disso, pois não?

Claro que sabia.

- Algum género de pacto com o diabo poderia ser aplicável, então?

Undertaker estremeceu de forma bastante visível, para clara surpresa de Vincent. O rapaz pestanejou, tão parecido com Claudia naquela demonstração de surpresa nos seus rostos normalmente tão imperturbáveis, e voltou a cabeça da mãe para o mortuário, tentando apanhar a história por detrás daquela reacção. Claudia parecia de facto diabolicamente agradada consigo própria, já que sempre tratara aquele assunto de forma muito mais leviana.

- Não, não poderia. Não é suposto essas coisas serem envolvidas de todo.

Claudia parecia querer acrescentar mais algum comentário, mas permaneceu em silêncio. Vincent também ficou calado, o sobrolho franzido de concentração enquanto analisava as palavras.

- Bem, estava a ir para o oposto de mundano - continuou ela. A pequena Francis aproximou-se deles então, dançando com a sua boneca e sorrindo quando Claudia corrigiu a sua postura. - Os meus pontos eram perfeitamente válidos. Um corpo humano não pode ser trazido de novo à vida de nenhuma maneira plausível. As 'poucas' mudanças que mencionaste há pouco não são poucas quando analisas de forma realista. Não és fã de ciência, pois não?

- Não dessa forma, não. Por acaso, conheci uma pessoa particularmente entusiasta por ciência há tempos.

- Talvez algo tipo de sopro de vida, de alguma forma...

- Demasiado fantasioso, não achas, Vincent?

- A ciência não é uma possibilidade practicável, tal como dissestes, Mãe. Então, talvez de outra maneira, alguma forma de poder superior...

Claudia resfolegou. - Como Deus?

O rapaz ergueu os olhos para Undertaker. - A Morte é uma forma de Deus, não é?

Sem mover a cabeça, os olhos de Claudia seguiram Vincent e Undertaker, antes de ela pestanejar e o sorriso suave aumentar.

- De facto é, já que o próprio Deus não quer saber ou se preocupa com a vida e perda de nós comuns mortais.

O comentário mudou a atenção de Vincent de Undertaker para Claudia, o número de surpresas começando agora a tornar-se bastante visível no seu rosto. Francis chamou-o na sua voz de bebé.

- O que foi? A tua avó pode ser uma crente devota, mas eu não. Ninguém na nossa família Phantomhive deveria ser, quando temos a responsabilidade de ser o Cão de Guarda da Rainha.

Undertaker estava pronto para conduzir de novo a conversa para um tema muito melhor do que a Rainha, mas Vincent fê-lo por si.

- A Morte não é má, de certa forma, não é? Está simplesmente lá. Mas quando as pessoas morrem mais cedo do que deviam... bem, porque é que tal acontece? Haverá alguma forma de poder superior por detrás disso? E se houver... - O sobrolho da criança estava profundamente franzido agora, tentando ponderar todas aquelas variáveis que um menino de sete anos tentava resolver. Entretanto, a sua irmã estava a acenar e a chamá-lo. - Então talvez pudesse haver uma forma especial da Morte ser... revertida?

- Não tão revertida quanto continuada, pequeno lorde - respondeu Undertaker, e de novo a cabeça de Vincent voltou-se para ele. - É uma questão que me atormenta há muitos anos. Todos aqueles 'e ses'. E se eles não tivessem morrido, e se tivessem continuado a viver?

- Então...

- Reverter poderá não ser o termo certo, mas continuar. O corpo continuar a viver, de alguma forma.

- Mas como a Mãe disse, os órgãos estariam mortos. O cérebro estaria demasiado danificado para funcionar. Se o corpo se movesse de alguma forma, isso não tornaria a pessoa num género de boneca?

- Ficariam bonitas de facto~

- Quero dizer, sem vida - especificou Vincent. - Viva, mas não. Não seriam elas mesmas, pois não? Os seus corações e mentes poderiam voltar... quero dizer, poderiam continuar? Faltar-lhes-ia uma alma, não era? Ou existe forma de criar uma alma?

- Não existe, pequeno lorde.

- Concordo com o Vincent. A ideia parece intrigante, mas como disse, cada cenário possível não é eficiente numa perspectiva de longo prazo.

- Seja como for, ainda é interessante~ - disse Undertaker, encolhendo os ombros alegremente. Tentou chamar a atenção da menina, mas os seus gritos frustrantes atingiram o pico quando a criança exigiu legitimamente a atenção do irmão da melhor maneira que sabia. Que foi atirar a sua boneca de pano e atingir Vincent em cheio na cara.

- Franny! - queixou-se o rapaz, apesar de a sua expressão se ter suavizado perante o som do riso satisfeito de Francis. - Não é assim que se pede para que alguém brinque contigo.

- Vem, vem! - ecoou ela. - Dá-me a Minha Lady!

- Com licença, Mãe, Undertaker - disse Vincent antes de seguir a criança loira, puxado pela boneca Minha Lady e por sua vez sendo puxado por Francis.

Claudia sorriu suavemente às crianças, encostando as costas no cadeirão agora que Vincent estava entretido. Undertaker riu perante a imagem.

- Ele está a aprender bastante convosco.

- Tal como deve ser. O Vincent é uma criança inteligente. E tu, os teus esforços com os mortos-vivos deram frutos - acrescentou ela, os olhos apontando para o par a dançar num círculo, Francis cantando London Bridge is Calling Down e comandando quer o irmão quer a boneca para se lhes juntarem. - Aquela boneca morta tem uma vida mais interessante e repleta do que qualquer um de nós provavelmente teremos.

- Fico feliz que ela goste tanto dela.

- Mas aquilo é uma boneca bastante bizarra.

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continua

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Nota: Com uma pesquisa rápida, 'The Narrative of Arthur Gordon Pym of Nantucket' parece ser o único livro publicado em 1857 de Edgar Allan Poe. Também há um comentário cameo do Othello.