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1861
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O trabalho de Claudia aumentou como uma vaga ao longo do ano. Acrescido às investigações mais comuns, a Rainha decidiu atirar mais uma dúzia de casos extra, temperadas com um pouco de sensibilidades militares e políticas. Intrigas do outro lado do mar, relações Anglo-Americanas cada vez mais sensíveis, espiões e conspirações que deveriam ser devida mas secretamente investigadas. Não surgiam muitos corpos da maioria desses casos, e aqueles que surgiam raramente requeram os dotes de Undertaker, mas continuava a aconselhar e acompanhar de perto os esforços e desenvolvimentos de Claudia.
- Pressinto que a Inglaterra está prestes a entrar em estado de guerra de novo, hmmm~?
- Esperemos que não. As conversações diplomáticas têm sido contínuas, mas estas conspirações são muito problemáticas.
- Como se já não tivesses as mãos cheias... - suspirou Undertaker, tamborilando os pulmões de um hóspede que estava a tratar, removendo-os do tórax e carregando-os para outra mesa.
- Há sempre crime com que lidar - Claudia acompanhou o suspiro dele, o que fez Undertaker sorrir. - Claro, não é com se estes rafeiros fossem suspender as suas doses diárias de matança.
- Como vês, ele não se afogou. Intoxicação por monóxido de carbono. Não seria uma morte estranha...
- ...se ele não tivesse sido encontrado no rio. Portanto, há alguma companhia algures a explorar trabalhadores sob condições potencialmente fatais. É frequente. No entanto, tomaram o tempo a desfazerem-se do corpo no rio para encobrir a verdadeira causa de morte.
- Pode ser apenas uma típica disposição de cadáver.
- Ele tinha uma nota de suicídio no corpo. Quantos empregados de classe baixa sabem escrever? Numa simples disposição de cadáver não se dariam ao trabalho de escrevinhar algumas palavras. O corpo deste homem era para ser considerado um suicídio por afogamento. O que significa que, algures, uma companhia com um rasto de corpos está a tentar ocultar estes assassinatos. Talvez uma companhia de visibilidade notável e que portanto esteja a tentar evitar um escândalo, ou uma que tem alguma secção que opera sem o conhecimento geral, portanto precisando de esconder estas mortes. Óptimo. Porque rafeiros empresários eram mesmo o que precisava na agenda.
- A água causou alguns danos no corpo que não me permitem ajudar-vos nas origens ou passado, mas posso tentar pesquisar um pouco mais no submundo. Há muuuuuitas companhias desse tipo para averiguar.
- Por favor, faz isso - pediu Claudia, massajando a testa gentilmente. - Vou para as docas. O John Brown deu-me alguns nomes de viajantes Americanos com ligações suspeitas aos nossos fornecedores de pólvora.
Undertaker voltou-se para ela, subitamente confuso com o nome.
- John Brown? - Conseguiu identificar onde já ouvira Claudia dizê-lo antes. - O mordomo?
- Sua Majestade retirou-se para junto da mãe, a Duquesa de Kent e Starthearn, que está acamada. Sua Majestade já tem problemas suficientes.
- Imaginaria que o marido fosse tomar esse lugar.
- O Príncipe Consorte tem estado bastante adoentado ultimamente. A dor tornou-se crónica, de acordo com Sua Majestade, e já está a realizar bastante mais do que o esperado na sua condição. A delegação para John Brown é apenas natural, na minha opinião. O que é importante é que a Rainha tem preocupações suficientes neste momento, e é o meu dever não a perturbar ainda mais com todos estes casos.
- Claro. - Deixou-lhe um travo amargo na boca, mas apesar disso, disse a palavra.
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A Princesa Victoria, Duquesa de Kent e Strathearn, e Mãe da grande Rainha de Inglaterra, faleceu uns dias depois.
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O cruel ano de 1861 terminou com o falecimento do Príncipe Consorte, Albert.
Claudia relatou o estado da Rainha durante o funeral real, evento para o qual a presença de todos os membros da família Phantomhive foi requisitada. Undertaker ouviu as palavras, completamente imperturbado e desinteressado.
- Undertaker!
Quase saltou do lugar no caixão, olhando para Claudia para tentar ver o que acontecera. Ela não parecia assustada, mas extremamente irritada.
- Qual é o teu problema?
- Perdão? - pestanejou Undertaker. Bem, imperturbado e desinteressado significava que ele não prestara nenhuma atenção particular à conversa, e a voz de Claudia tornara-se num agradável, mas completamente indecifrável, ruído de fundo. Teria ela mudado de assunto? Ter-lhe-ia perguntado algo importante? Seria por ele se ter distraído durante o discurso?
- Sempre te comportaste desta forma. Desde o primeiro momento que me consigo lembrar. Não consigo compreender porquê.
- Perdoai-me, admito que me distraí. Do que estávamos nós-
- Precisamente. Sempre que menciono a Rainha, ou sempre que falo sobre ela, não sobre os casos a meu cargo, com os quais naturalmente sempre me assististe, comportas-te desta forma desrespeitosa e desdenhosa.
Oh, então era isso.
Undertaker quase considerou responder. Mas nunca mentira a Claudia.
- Porque haverias de nutrir sentimentos tão rancorosos para com alguém como a Rainha?
- Não tenho nada contra a mulher. - Uma resposta, afinal. E... começara a mentir.
- A Sua Majestade - corrigiu ela, afiada como um chicote. - E estás a mentir.
- Não estou.
- Ela nunca agiu de maneira que poderia ser nociva ou contra os teus valores.
Discutível, pensou ele.
- Sua Majestade está de luto. Perdeu a mãe e o seu marido. A sua filha mais nova tem quatro anos de idade. Se não por qualquer outro motivo, Sua Majestade é alguém que sofreu duas tragédias familiares no espaço de apenas alguns meses.
- Não é algo inédito, nesta era.
As suas respostas curtas não estavam claramente a suavizar o humor de Claudia.
- Se não por qualquer outro motivo, poderias mostrar ou expressar alguma forma de compaixão humana por essas tragédias. Se não por qualquer outro motivo, ela sofreu estas perdas ao mesmo tempo que carrega o peso de-
- Existe tudo o resto.
- Desculpa?
- Existe tudo o resto - repetiu Undertaker, encolhendo os ombros. O jarro de biscoitos que estivera a petiscar constantemente durante o discurso de Claudia perdeu mais um dos seus ossos, pequenas migalhas caindo sobre o colo. - Sua Majestade A Rainha de Inglaterra e do Grande Reino Unido perdeu membros da família e tem nove rebentos para atirar a amas-de-leite para que tratem de cada uma das suas necessidades, no seu castelo repleto de conforto e comida. Não pretendo ser rude...
- Então não continues.
- Enterrei uma família de oito, cujo pai e marido me implorou para os sepultar e ofereceu-me todas as formas de pagamento excepto dinheiro, que ele também perdera. Seis crianças, esposa e irmão. Tê-lo-ia enterrado também a ele de bom grado, mas receio que terá tirado a própria vida depois de se certificar que a família teria onde repousar.
- Então ela é a Rainha. É isso que honestamente te incomoda tanto? Tens algo contra líderes?
- Não gosto de governantes. É diferente de um líder. Talvez essa seja a fonte do que chamais de 'pensamentos rancorosos' que nutro pela vossa Rainha.
- Claramente, deve ser. Quaisquer que sejam as tuas anteriores experiências com a realeza-
- Oh, tenho algumas.
- Não me interrompas. Quaisquer que sejam essas experiências, claramente tornam-te infantil e diabolicamente intolerante, apenas distribuindo críticas cegas.
Metade do osso biscoito ficou pendurado da sua boca. Undertaker não pôde evitar sorrir, apesar de não ter totalmente a certeza porquê, ou quão sincero era.
- Tentastes mesmo atirar um insulto aí, não foi?
- Apesar da minha opinião pessoal sobre o tema, sempre deixei o teu comportamento e comentários passar apenas com um travo amargo na minha boca. Ver quão fracamente corroboras a tua atitude, no entanto, é demais para mim. Não consigo mesmo sentir-me confortável a ter uma conversa sobre algo que não seja trabalho, portanto, tendo em conta que não necessito de nenhuma autópsia para os casos em que estou a trabalhar, tenha um bom dia, Mr Undertaker.
- Estais a ser uma criança, Claudia - disse depois de Claudia se ter voltado e deixado a funerária.
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1862
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Aparentemente, toda a Inglaterra Victoriana partilhava a infantilidade dela. (Admitamos, chamava-se Inglaterra Victoriana.) A névoa dp luto em massa pelo bom velho Príncipe estendeu-se dos últimos dias do ano aos meses seguintes, todas as vestes pretas de luto em todas as pessoas na rua, todas as crianças envergando preto. (Da classe média para cima, claro. A morte de um monarca qualquer não concedia aos esfomeados e cadáveres ambulantes abandonados por Inglaterra o súbito patriotismo ou dinheiro para seguirem a moda mais recente.) Os alfaiates e armazéns funerários estavam a fazer bastante negócio.
Vagueou pelas ruas durante os primeiros dias, e o cenário deixou-o agoniado e enxotou-o de volta para o seu lugar seguro, para os seus hóspedes e as suas experiências.
Começou, no entanto, a apreciar o exemplo de comportamento humano que aprendia com aquilo. Quão inflamadas as emoções das pessoas poderiam ficar sob o símbolo do que era, para todos os efeitos, o seu Rei, e como se espalhava qual doença de um para o outro, independentemente das suas reais opiniões; a histeria claramente não mitigara ao longo dos últimos séculos.
De tempos a tempos, pensava nas palavras de Claudia, especialmente quando o resultado da infantilidade de um deles (de ambos, mais provavelmente) o fazia sentir saudades da sua presença, dos convites à mansão ou à casa de Verão.
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Claudia apareceu numa sexta-feira, e para sua alegria, trouxe os seus filhos.
- Olá, Undertaker - cumprimentou-o Vincent, vestido impecavelmente e cabelo penteado para realçar o sinal no seu rosto. - Tivemos saudades da vossa companhia.
- Sim, de facto - acrescentou Francis, um sorriso suave no seu pequeno rosto. Não era tão enérgica e adoravelmente espontânea como quando tinha três anos, mas o seu vestido quase ofuscava o modelito perfeito de Vincent. Mas Claudia contara a Undertaker (antes da discussão acerca da Sua Majestade Irritante) que ela ainda brincava e preferia a boneca de pano a todas as outras.
- É maravilhoso ver-vos aos dois, meus pequenos lordes~! Posso convidar-vos a experimentar os meus novos biscoitos?
Ambas as crianças assentiram. Francis não conseguiu conter um risinho perante os típicos biscoitos em forma de osso terem sido substituídos por novos em forma de caveira.
- Poderíeis tentar encher as órbitas com geleia de mirtilo da próxima vez - sugeriu Vincent, mordiscando o seu biscoito. - Irá melhorar quer o sabor, quer o aspecto.
- Que óptima sugestão! Não me vou esquecer - prometeu, sentindo o peito ficar mais leve com aquela maravilhosa felicidade de que tantas saudades tivera. Espreitou pela franja para Claudia, estendendo-lhe o prato. - Biscoito?
A sua resposta ofendida foi um resfolegar e uma pequena caveira foi retirada relutantemente do prato. Undertaker sorriu, a cor dos seus olhos nítida por entre o cabelo prateado como que para ilustrar o seu humor. Passos lentos mas decisivos para o perdão/aceitação de Claudia.
- Vou levar o Victor, a Alice e o Arthur amanhã. A Rainha analisou toda a informação que reuni e autorizou que tomássemos umas instalações criminosas.
A Rainha-Enlutada, ou o seu mordomo? Mas tal como Claudia dissera, era irrelevante. - Desejais que vos acompanhe?
- Não há necessidade. Vim porque as crianças pediram, estávamos por perto. E já que aqui estou, mais vale informar-te. - Passos lentos, lentos em direcção ao perdão. - Vou levar três criados comigo. As provas que vou procurar não estarão nos corpos, portanto não precisarei da tua ajuda.
- De qualquer das formas, eu vou. Caso seja necessário.
- Duvido que seja. Mas se quiseres, não vou estragar a tua diversão.
- Foi bom ver-vos, Undertaker.
- Também foi muito bom para mim, Vincent. Esperemos que vocês os dois tenham mais tempo para me visitar mais vezes.
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Já se tinham passado anos desde que estivera tão perto de um assassinato enquanto este ocorria.
Undertaker ouviu os disparos, mas não se sentiu preocupado. Claudia estava acompanhada de empregados suficientes, e era boa atiradora. O mais provável era aqueles tiros terem sido disparados por ela.
Tal como fizera ao longo da noite, e agora enquanto esperava pelos momentos finais antes de Claudia sair das instalações, Undertaker observou a fachada do edifício. Divagações despreocupadas para se entreter. Haviam vinte e duas janelas no andar de cima, nenhuma no piso térreo. Um edifício estranho e feio, especialmente tão perto dos dois prédios que lhe faziam vizinhança, uns armazéns trancados e abandonados. Mas aquela camada de tijolos sem janelas era como uma escudo, já que o tráfico e manufactura acontecia abaixo do chão.
Armas.
Undertaker ouvira bastante sobre o estado de Londres através dos seus canais do submundo, colegas funerários e informadores situados em East End. De acordo com eles, as novidades eram que a Boa Rainha ainda estava imersa em profundo luto e não corriam sinais de que estivesse a melhorar, nem sequer falsos relatórios para tranquilizar as mentes das populações. Uma vez que Claudia passara a evitar falar da Rainha na sua presença, não era como se fosse descobrir por uma fonte mais próxima.
O luto estava aparentemente a manter a mente da Rainha bastante ocupada com guerra. Que distraçãozinha engraçada.
Pousando o queixo na palma da mão, Undertaker desejou pela segunda vez que tivesse trazido biscoitos consigo. Contou as janelas de novo, e a sua visão fraca apanhou de repente um movimento no telhado do edifício. Pestanejou, a súbita compreensão fazendo-o sorrir. Oh, já se passara muito tempo desde vira outro Grim Reaper. Muito tempo mesmo, agora que pensava nisso. Não que tivesse particularmente saudades, mas o facto era simplesmente digno de nota.
A porta da frente abriu quase ao mesmo tempo. Não era como se este edifício estivesse localizado na área mais habitada de Londres, mas ainda assim, era um pouco estranho ver Claudia sair de forma tão despreocupada.
- Boa, vieste. A ajuda dá jeito.
Sorrindo, Undertaker seguiu-a para o interior das instalações feias. A entrada para o andar subterrâneo era extremamente inconveniente, uma série de escadas e voltas só acessíveis pelo andar superior. Subir, depois voltar a descer tudo e mais um pouco. Os criminosos pouco usavam esta entrada, preferindo a entrada secreta na floresta, mas ali estava ele a seguir Claudia.
O piso subterrâneo era uma fábrica de tamanho bastante impressionante. O ar era pesado, dolorosamente carregado de restos de metal queimado e fornalhas, e agora sangue e pólvora. Passou mesmo ao lado de um corpo caído sobre uma grossa poça de sangue. Uma rápida inspecção relevou que o homem subnutrido estava longe de ser a única vítima.
Além de fábrica, parecia que o espaço também incorporava de forma estranha, e provavelmente ineficiente, um laboratório de pesquisa, com todo o tipo de componentes e material químico. Também haviam documentos e tubos de ensaio espalhados por todo o lado, que o criados já estavam a inspeccionar. Undertaker aproximou-se de uns recipientes pressurizados, a alguma distância das fornalhas mas ainda assim irracionalmente perto. De perto, conseguiu ler alguns termos, como 'propano', 'etano', 'ácido acético'.
Como é que ainda estavam todos vivos e a respirar neste lugar era um mistério. Undertaker olhou à volta, e claramente, o grupo de Claudia estava todo contabilizado. Tinham disparado armas num lugar assim. Como.
As fornalhas eram defeituosas à distância. Pareciam gerar energia para placas de pressão mais ao canto, ou para algumas máquinas que Undertaker via aqui e ali. Independentemente de como é que este sítio era sequer funcional, o aspecto mais flagrante era o quão incrivelmente difícil era respirar. As fornalhas estavam acesas, o seu processo tendo sido interrompido pelo ataque de Claudia e dos empregados dos Phantomhive, poluindo o ar da instalação subterrânea com...
- Monóxido de carbono.
- Sim. Aqueles corpos que começámos a encontrar o ano passado - assentiu Claudia, empilhando documentos numa secretária ali perto e entregando-lhos. - Também fiz a ligação.
- Isto não é bem uma companhia de interesse público - notou Undertaker, voltando-se com os documentos em segurança contra o peito. - Haveríeis teorizado que poderiam ser uma companhia famosa tentando proteger a sua imagem pública, ou alguma secção secreta escondendo os métodos e mortes. Isto não parece encaixar-se com nenhum dos casos.
- Bem, não posso ter sempre razão - respondeu ela de forma afiada. Undertaker riu e assentiu, começando a subir as escadas e rapidamente seguido por um dos empregados.
- Será bastante aborrecido subir e descer isto, nããão~?
- Trouxeste a tua carruagem. Está mais perto do que a nossa - a voz de Claudia respondeu alguns metros atrás deles. - Devias ter trazido mais documentos contigo e encurtado as viagens.
De novo, Undertaker assentiu, agora com um suspiro.
Na verdade, não era um trajecto assim tão grande. No entanto, as escadas eram inclinadas, e apesar de se poder focar em contar os degraus que mal via, em vez disso a sua mente divagou de regresso para as instalações lá em baixo, o festim de corpos que de alguma forma tinham sido mortos sem rebentar com toda a gente (será que Claudia tinha noção do quão perigoso aquilo era?), às suas divagações lá fora, a fachada feia do edifício, os biscoitos que queria comer, as vinte e duas janelas e o vislumbre escuro que apanhara.
Ignorara-o completamente antes, mas de repente, Undertaker parou, os olhos fixos em frente mas não vendo nem as escadas nem a ombreira da porta.
O colega Grim Reaper de antes. Os corpos estavam todos lá em baixo, mas ele apanhara um vislumbre no telhado.
E, pensando nisso, os disparos que ouvira antes... não tinham sido assim tantos, tendo em conta a quantidade de corpos no subterrâneo. Nem os teria ouvido, dada a distância.
- Há algo que precisais de recolher do telhado?
- Desculpa? - perguntou Claudia, o sobrolho franzido. - Não. Tudo o que precisamos está aqui.
- Estou a ver. - Então deveriam ser apenas alguns fugitivos. Claudia dissera de facto que nenhuma das provas requeridas estariam nos cadáveres.
Quando chegaram ao piso superior, no entanto, Undertaker chamou o criado e pediu um momento da sua atenção. Claudia não disse nada e continuou para o exterior.
- Se podieís ser amável - disse Undertaker, um grande sorriso no rosto. Não deu tempo ao empregado para se perguntar o que lhe ia pedir antes de atirar toda a carga de documentos em cima do peso já considerável que ele carregava. O pobre homem estremeceu ligeiramente, mas não disse nada, resignando-se ao seu destino. Um moço simpático, já o vira e falara com ele várias vezes antes. Undertaker deu-lhe uma palmadinha no ombro e virou para outro lado. Não para a escadaria secreta inferior, mas para as escadas que levavam ao telhado.
O Grim Reaper estava lá.
Undertaker fingiu não o ver. O Grim Reaper, por sua vez, ignorou-o completamente enquanto prosseguia com o seu trabalho. Claro, o Grim Reaper não o iria ignorar muito mais se sentisse que a presença não pertencia a um humano... mas não sentiu.
O telhado estava brilhante com a luz do Cinematic Record. O som de bobinagem deixou-o em pele de galinha por algum motivo, mas Undertaker ignorou-o.
O seu colega estava a murmurar baixinho para si próprio enquanto as imagens voavam à sua frente. O Record estava perto do fim, e Undertaker testemunhou-o. O FIM, escuro, desfocado. Não conseguia vê-lo devido à distância e à sua visão, e no entanto era como se a imagem estivesse gravada tão profundamente em si que quase se esquecera que lá estava, e agora, ressurgia com clareza.
- Sem mais comentários - disse o Grim Reaper em voz baixa, carimbando o ficheiro na sua mão e fechando-o sem cerimónias. Moveu o ficheiro para trás e abriu outro, girando sobre os calcanhares e movendo a Death Scythe para o próximo corpo. Uma estocada, e o telhado voltou a brilhar.
- Gilbert Dankian. Nasceu a 18 de Abril de 1838. Morreu a 1 de Março de 1862, de perda de sangue devido a um ferimento de bala no pulmão.
Havia um total de quatro corpos no telhado. Dois deles estavam mesmo no topo das escadas, abatidos na sua tentativa de fuga. Undertaker passara sobre eles no caminho, espreitando curioso as suas caras e os engenhos respiratórios que envergavam. Os outros dois estavam mais à frente, onde agora se erguia o Grim Reaper.
Undertaker aproximou-se sem barulho, a bobina do Cinematic Record vertendo da ferida fatal e rolando pelo céu da noite. A voz monocórdica do Grim Reaper continuou a sua narração, continuando a ignorar Undertaker enquanto este se aproximava. Estava vagamente ciente do facto de que os Grim Reapers podiam permanecer invisíveis aos humanos, e os Cinematic Records não eram visíveis aos olhos humanos, apenas a criaturas sobrenaturais. Por alguma razão, a sua natureza não foi identificada pelo Grim Reaper, que portanto continuou o seu trabalho assumindo que era tão invisível como seria a qualquer outro ser humano.
O Cinematic Record mostrou a vida de Gilbert Dankian, agora com duas testemunhas à sua experiência única enquanto esta se desenrolava para o seu fim. Apesar de não poder aproximar-se o suficiente para não estragar o seu involuntário disfarce de humano, Undertaker ouviu a voz e vida do jovem homem, como ele saíra de casa na busca de estudar química apesar da sua pobreza. Uma tutoria alimentou o que era claramente uma mente brilhante, até para alguém com pouco entusiasmo por ciência como Undertaker. Vários momentos com uma quantidade notável de pessoas apareceram no Cinematic Record e as suas vozes ecoaram pelo telhado, elogios e conversas que se desfocaram e tornaram ruído. Tanto quanto percebia, o jovem começara a desenvolver algum método de combustão química, seguindo teses de relatórios Alemães que o seu tutor lhe forneceu para estudo. O tutor não era claramente um benfeitor, no entanto, uma vez que o jovem se viu coagido a trabalhar para um criminoso suspeito, e consequentemente, fora mantido em cativeiro nestas mesmas instalações com vários outros homens e uma mulher, no fundo de todos aqueles degraus inclinados e curvas.
Então fora por isso que as intoxicações por monóxido de carbono tinham sido encobertas como suicídios por afogamento. Não se tratavam de trabalhadores de classe baixa. Eram cientistas e químicos, cujos desaparecimentos dos círculos públicos tinham de ser justificados para terminar qualquer investigação. Os corpos tinham começado a chamar a sua atenção e a de Claudia um ano antes, mas tinham sido poucos e espaçados no tempo, e talvez alguns corpos lhes estivessem escapado de todo.
A bobina rolou enquanto o jovem, tossindo e transpirando mas ainda trabalhando persistentemente, saltou num susto quando os disparos explodiram à sua volta. A sua confusão ficou restringida a um dos captores que o agarrou rudemente e o forçou a correr por uma passagem que Undertaker não vira nas instalações lá em baixo. Ameaças e rogos e tiros enquanto o captor era acompanhado por dois parceiros armados, e perseguido por um dos atacantes.
O telhado espelhou no Cinematic Record quando os dois homens chegaram aqui, o jovem com a arma apontada à cabeça e tropeçando na sua tentativa de acompanhar o captor enquanto ambos recuavam, hesitantes. Os dois homens no cimo das escadas foram mortos e o atacante emergiu dos degraus, arma apontada a Gilbert e ao criminoso.
- Eu mato-o! Eu mato-o, sua cabra!
- Por favor! Por favor, só quero ver a minha família outra vez! Por favor, eu não queria-
- Estás a ouvir? Estás a ouvir, hã? Vou rebentar os miolos deste coitado se te mexeres. Eu deixo que fiques com ele. Deixas-me ir, deixas-me ir para aquele armazém ali, e salvas o- Não! Eu mato-o, porra, sua p-
O tiro explodiu e quer o jovem como o captor tropeçaram para trás. Gilbert caiu de joelhos enquanto o seu captor cambaleou para trás, a arma apontando cegamente para o lado por um segundo antes de um segundo tiro o atingir e o atirar com força para o chão. Gilbert engasgou-se e tossiu em dor, espirrando vermelho sob si e um trilho de sangue vertendo dos lábios antes de ele cair, o rosto arranhando no chão.
E o Cinematic Record chegou ao FIM.
- Sem mais comentários. - O Grim Reaper carimbou o ficheiro e fechou-o. Os seus olhos voltaram-se na sua direcção, para Undertaker, movendo-se para as escadas atrás dele e para os passos que se aproximavam.
- O que fazes aqui? - Claudia aproximou-se, nem se incomodando em olhar para baixo para os corpos caídos à entrada.
Undertaker não levantou os olhos do corpo do jovem, nem para o Grim Reaper que lhes voltou as costas e caminhou para a berma do prédio antes de se deixar cair, nem para Claudia que ficou imóvel atrás de si.
- Estás à procura de alguma coisa?
- Preciso de levar os corpos.
- O quê? - repetiu ela, agora avançando e olhando para ele de frente, bloqueando a sua visão do jovem. Undertaker ergueu o olhar então, quase perto o suficiente para ver Claudia claramente. A expressão dela estava severa, irritada, a sua missão fora bem sucedida mas agora exigia mais do seu trabalho. Já estava pronta a continuar a investigação, pronta para seguir para o próximo caso. Não voltar a pensar em nenhuma irrelevância acerca deste caso. - Os corpos são irrelevantes.
- Têm máscaras - disse vagamente. - Preciso investigar a sua origem.
- Já tirei uma das máscaras de gás de um dos captores lá em baixo.
- Preciso dos corpos.
A sobrancelha dela estremeceu. - Não vais levar vinte corpos contigo.
- Não preciso de vinte corpos. Preciso de um.
Undertaker não apontou para ele, e Claudia não se moveu para ver a qual ele se referia. Os seus olhos escureceram, a sua respiração abrandou antes de expirar silenciosamente.
- Fica à vontade. Vamos usar a tua carruagem de qualquer das formas.
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Não bebiam chá na sua funerária com a frequência que ele gostaria. Mas após tanto tempo, Claudia concedeu-lhe o prazer de tomar uma chávena consigo. Preparou-o e serviu-lho, o seu jarro de biscoitos colocado ao lado dela no caixão. Moveu outro caixão e colocou-o à sua frente, aperfeiçoando assim a sua sessão de chá rodeados de caixões, velas, teias de aranha, esqueletos e cadáveres.
- As crianças têm passado bem? - perguntou ao afastar uma madeixa de cabelo de novo da frente dos olhos e prendendo-a sob o chapéu.
- O Vincent uma vez contou-me sobre os teus medalhões.
Ele ergueu os olhos e assentiu, mordendo o seu biscoito de osso. - Contou? Ele gostou deles. Era tão pequeno na altura.
- Vejo que fizeste um novo.
- Fiz.
- Lamento.
Undertaker voltou o rosto para ela. Apesar de acreditar na honestidade das palavras, a expressão de Claudia era severa, fria. Bebeu o seu chá calmamente. Não era como se não estivessem acostumados a ter conversas que muitos considerariam sombrias sob a tranquilidade do chá, no entanto, algo parecia diferente.
- Há algo que me quereis dizer? - Não havia motivo para não expressar os seus pensamentos.
Claudia não pareceu surpresa pela pergunta.
- Sei que fizeste um medalhão para o homem.
Era isso?
- Fiz.
- Assumia que medalhões funerários eram algo precioso e íntimo. - Ela não lhe deu tempo para dizer nada no assunto. - Porque era o homem importante para ti?
- Porque morreu.
- Estarias sem espaço em toda a tua funerária se guardasses uma lembrança de cada pessoa morta que te passou pelas mãos.
- Incomoda-vos?
A chávena de chá embateu com força contra o pires. O chá entornou-se, gotas caindo sobre o vestido dela. Claudia não se importou, os olhos presos nos dele.
- Alvejei um homem durante uma missão e fazes um medalhão para ele. Sim, incomoda-me.
Nunca tinham discutido o assunto. Claudia simplesmente soubera que Undertaker sabia da verdade sobre a morte do homem, desde o primeiro momento em que percebera que ele ia ao telhado.
- Porque é que vos incomoda?
- Não tentes fazer jogos de palavras comigo, Undertaker.
- Não estou-
- Não deveria sentir-me incomodada? Faz-me sentir como um monstro.
Undertaker sabia que sob a frieza e ofensa na sua expressão, a criança Claudia estava magoada por ser vista dessa forma por ele. Magoada por se ver a si própria como tal.
- Estava numa missão. Tinha um objectivo claro, e inimigos claros no meu caminho. Vi três criminosos escapar, e persegui-os. Eram raptores, conspiradores, traficantes de armas. As circunstâncias não requeriam que levasse qualquer um deles vivos, não segundo as ordens que recebi. Agi de acordo.
Undertaker respirou suavemente, pousando a chávena de chá ao lado dos medalhões de luto caídos da sua anca para o topo da tampa do caixão.
- As vossas ordens e informação incluíam o facto de haver reféns. Não cúmplices, reféns.
- Era uma possibilidade. Confirmada no local. Sim, usaram os reféns como escudo. Sim, um deles tentou fugir pelo telhado, e sim, levou um refém com ele. Não podia deixá-lo escapar, e captura, mesmo que fosse do meu interesse, seria impossível sozinha.
- Poderias ter esperado por uma chance.
- Eu tive uma chance. Aproveitei-a.
Ficaram em silêncio. A respiração de Claudia causava oscilações bruscas do seu peito. Undertaker respirou devagar, calmamente.
As palavras erradas na sua resposta não se reflectiriam na superfície, mas iriam revibrar e magoar mais do que qualquer acusação ou grito.
- Tornaste-te poderosa, Claudia. Está a ficar fácil esqueceres-te que algumas coisas não podem ser substituídas.
As palavras não tiveram o efeito curativo ou remediador que Undertaker desejava que tivessem, ou a nota de perdão que Claudia secretamente ansiava ouvir. O silêncio permaneceu durante mais alguns momentos.
Claudia levantou-se, colocando lentamente a chávena e o pires no topo do caixão e secando rapidamente a parte da frente do vestido, apesar de as gotas já terem manchado o tecido escuro.
- Tem uma boa tarde, Undertaker.
E saiu.
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continua
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Nota: O nome do capítulo vem da Claudia começar a perder a noção / asfixiar em poder, das vítimas que morreram de intoxicação, e da música do Serj Tankian 'Empty Walls'
A informação do Gilbert D é da minha criação, e o nome vem obviamente do Serj porque estava a ouvir a música dele.
