Nota: E assim entramos nos capítulos grandes e na escuridão.

Avisos: morte e gore e afins.

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1865

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O ano de 1865 terminou com uma caçada.

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Undertaker levou o seu tempo a apreciar a data e o seu simbolismo. O que gostava mais em Dezembro era ser o fim do ano - uma marca completamente ilusória para medir o tempo, e no entanto era um fim e uma continuação em simultâneo. Depois de ter conhecido Claudia há trinta e cinco anos atrás, recomeçara a ter noção dos dias, meses, anos, algo que antes perdera, e podia agora apreciar esta passagem para um outro ano, o fim de algo que passou e a continuação para algo novo.

De alguma forma, por entre a escuridão e o sangue à sua frente, antes de aquilo atacar, Undertaker conseguiu pensar nisto.

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O caso actual mantinha-los a ambos particularmente atarefados nos últimos dias.

A 24 de Dezembro, um domingo, num bairro agradável de classe média perto da periferia de Londres, as famílias que viviam alegremente as suas consoadas de Natal ficaram chocadas com a reviravolta no seu feriado, quando gritos de gelar o sangue atravessaram as paredes dos seus lares. O feriado fizera com que a resposta do Yard fosse atrasada, talvez, mas na verdade, uma resposta imediata não teria alterado o resultado de maneira alguma.

Claudia chamou-o na segunda-feira, 25 de Dezembro. Em vez de passar o Natal com a família, Claudia estava a trabalhar, alertada pelo pedido de ajuda. Não da sua Boa Rainha, mas do Yard. Enquanto a Rainha usufruía do seu Natal com a ninhada de crianças, desconhecendo a mais recente chacina que acontecia na sua cidade, Claudia e os homens do Yard trabalhavam.

Nesse mesmo dia, 25 de Dezembro, um cenário semelhante foi reportado ao Yard, numa localização diferente: a casa de um calceteiro, num bairro diferente.

Undertaker entrou na casa, curioso para ver o que requeria a sua presença no local, já que nenhum dos corpos de ambos os crimes tinham chegado à sua funerária para autopsiar. Havia um trilho de pegadas ensanguentadas que fugiam do quarto para a porta exterior; promissor. Espreitou para dentro do quarto, após ser instruído pelo oficial do Yard, com Claudia ao seu lado.

Nem o Yard nem Claudia lhe tinham enviado um corpo para autópsia porque não havia um corpo. Ou pelo menos, não havia um discernível.

Toda a divisão estava arrumada, a cama ainda feita como se os seus ocupantes estivessem prestes a deitar-se, ou tivessem acabado de despertar para um novo dia. A vela estava pousada na sua base na mesinha de cabeceira. Uma pequena cruz estava perfeitamente centrada e pendurada na parede.

Depois haviam pedaços de carne, já nem sequer um puzzle mas apenas restos de corpo espalhados pelo chão, na cama, nas paredes, no tecto.

Undertaker arqueou as suas sobrancelhas quase inexistentes.

- Este é o mesmo cenário do assassinato de ontem - explicou Claudia, a mão enluvada sobre a boca e o nariz. O cheiro era de facto particularmente pujante; não só o sangue, mas as entranhas e dejectos pareciam reluzir sob inspecção mais atenta, já para não falar que estava tudo particularmente fresco. Havia uma clara poça de vómito ao canto, ligeiramente afastada do resto do padrão de destruição.

- Havia mais alguém presente?

- Sim - respondeu o oficial do Yard, também ele cobrindo a boca. - A esposa. Ela testemunhou o que quer que se tenha passado aqui, mas está demasiado chocada para conseguir pronunciar uma palavra coerente. Os vizinhos que lhe deram guarida aperceberam-se que algo se passara devido ao sangue que ela trazia, mas ela, compreensivelmente, não consegue falar.

Undertaker torceu a cabeça para as manchas espalhadas por todo o lado. Aquilo era mais ou menos um pé, sim, aquilo talvez um dedo, ou talvez um pedaço mais duro de intestino. Aquilo parecia ser um pedaço molhado de papel, mas era uma fatia de pele. Era difícil distinguir à distância, e não podia exactamente entrar no quarto sem pisar carne e sangue. Também havia algo branco na cama, pousado sobre pedaços de carne esmagada. Aquilo era definitivamente uma folha de papel.

- Isto aconteceu hoje - repetiu ele. Era bastante claro; algumas poças nem sequer tinham coagulado totalmente.

- Fomos alertados cerca de uma hora depois do ocorrido. E é idêntico ao outro caso reportado ontem, sim - assentiu o oficial.

- O que é aquela nota? - perguntou.

- Como vêem, ainda não entrámos no quarto. Mas uma nota semelhante foi encontrada na primeira cena do crime. Recebemos ordens para aguardar pela Lady Phantomhive, portanto...

- Por favor, prossegue. O que dizia a outra nota?

- Temo-la aqui.

O oficial regressou com uma nota manchada de sangue, o papel tornado rijo pelo sangue seco. Claudia segurou-o com as pontas dos seus dedos enluvados. As costas do papel estavam empapadas por ter sido pousada numa poça de sangue, tal como neste sítio. Havia manchas de sangue à volta da mensagem simples escrita numa caligrafia banal, provavelmente provenientes das mãos ensanguentadas do assassino enquanto manejava o papel: 'Nunca mais'.

- Pode enviar-me ambas as notas? - exigiu Claudia, selando a questão após algumas palavras gaguejadas pelo oficial. - Confirmem quando recolherem aquela nota ali se a mensagem é a mesma. Ainda não estive no outro local, mas os detalhes da morte parecem ser basicamente os mesmos. Tendo em conta que não há um corpo concreto que pudesse enviar-te...

- Sim. Vamos ao outro local?

- Não nos conseguem ajudar com nada aqui? - perguntou o oficial, os olhos saltando entre Claudia e Undertaker. O pobre homem parecia perturbado e enojado com a perspectiva de ter de entrar o quarto e recuperar quaisquer provas que pudessem ser recuperadas. - Isto é...!

- A esposa poderia ser alguma ajuda, se conseguisse falar - disse Claudia. - Não vamos conseguir interrogá-la em tão pouco tempo. Vou enviar um dos meus empregados para a acompanhar até conseguir voltar a falar. Gostaria de ver as semelhanças entre as duas cenas do crime antes de tentar fazer o que quer que seja.

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O outro local, e o primeiro cronologicamente, não tinha nada em comum.

Undertaker conseguia ver como alguém, um polícia ou uma testemunha, descreveriam os cenários como sendo o mesmo. A obliteração do corpo, o aspecto macabro da carnificina.

Mas tudo o resto era diferente.

Não era a casa de um calceteiro, mas um lar de classe média que a maioria dos East Enders chamariam de palácio. A mesa da ceia de Natal estava posta - ou estivera, a julgar pelos pratos espalhados. Enquanto que a cena do crime na casa do calceteiro estava praticamente imperturbada, à excepção da óbvia matança, esta sala de jantar estava caótica. Uma luta claramente ocorrera. A julgar pela destruição, era difícil dizer exactamente o que acontecera, mas com certeza fora violento. As cadeiras tinham sido atiradas contra as paredes, os pratos esmagados, a comida, batatas talvez, carne assada, tinham-se fundido indistintamente com carne humana, dentes e pedaços de osso. A toalha pendia em farrapos dos lados da mesa. A própria energia do lugar era diferente. Era como se o som de gritos estivesse embrenhado em cada fibra, em cada centímetro da parede e no próprio ar. Havia algo incrivelmente inquietante naquele local, mas Undertaker não conseguia identificar uma única causa.

Uma empregada dos Phantomhive acompanhou-os, juntamente com Tanaka. Claudia e os outros dois entraram na sala enquanto Undertaker permanecia junto da entrada.

- É inquestionavelmente o mesmo assassino - disse Claudia com simplicidade, caminhando pelo chão com cuidado. O tamanho da divisão permitia alguma manobra, mas ainda assim, era difícil não perturbar as provas. O Yard tinha causado alguns danos, como os conjuntos de pegadas ensanguentadas demonstravam. - O mesmo método, seja ele qual for. Mas isto é inteiramente diferente.

Undertaker colocou a mão distraidamente na parede, numa porção limpa que não tinha sido borrifada por sangue e massa encefálica. Estava fria, gelada, e a anterior impressão acerca do som gravado na divisão era ainda mais forte. Talvez devido ao seu sentido espiritual apurado, Undertaker conseguia literalmente sentir o ferrão de violência e pânico cravado nas paredes, as únicas testemunhas do que quer que acontecera entre elas.

- Sim - murmurou ele, removendo lentamente a mão. Mesmo ao lado dos seus dedos estavam gotas de sangue que conduziam a um espirro de carne.

- Tudo aqui exala caos, enquanto a casa do calceteiro foi controlada, friamente executada. Apenas com um dia de diferença.

- Alguma testemunha neste, my lady? - perguntou Tanaka, olhando para a mesa de jantar.

- Nenhuma. O Yard não tem a certeza quantas vítimas são - explicou Claudia, fitando as manchas como se tentasse soma-las uma contagem de corpos. - Vivia um casal aqui. Ambos estão desaparecidos, presumivelmente mortos.

Undertaker voltou-se para o centro da sala, para a mesa de jantar e para os pratos e comida que tinham sido atirados.

- Houve uma discussão aqui. Se foi o que provocou este resultado ou se foi provocado pela vítima numa tentativa de resistência...

- O quarto do calceteiro estava incólume. Não faz muito sentido o assassino destruir a divisão depois de massacrar as vítimas.

- Só o calceteiro foi morto hoje - notou Undertaker, procurando partes de corpos que pudessem conduzir a uma contagem de vítimas mais correcta. - A esposa não foi o alvo. Duas mortes não estabelecem um padrão, mas um elo em comum seria ambas as vítimas serem homens. E depois há a mensagem.

- Então foi a mulher?

- Explicaria a luta - disse a empregada Phantomhive, apanhando Undertaker ligeiramente desprevenido, tendo-se esquecido que a mulher sequer ali estava. - Uma discussão pode ter-se desenrolado, terminando com a mulher a matar o marido e escapar. A nota também faria sentido se fosse este o caso.

- Mas não explicaria como uma mulher conseguiria fisicamente fazer isto a um homem - respondeu Tanaka. - Não consigo pensar em muitos métodos capazes de causar este nível de destruição, muito menos sem estar previamente preparado. E porque matar um calceteiro logo no dia seguinte? E perante a esposa?

- Mais importante que isso - Undertaker olhou para a cortina que ondulava com uma leve brisa; a janela fora destruída. A sua voz não foi ouvida por nenhum dos outros três. - O que é que aconteceu aqui?

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Horas depois, ainda no dia de Natal, um oficial ofegante do Yard alcançou Claudia e o seu grupo. Mais uma matança ocorrera dentro da Capela de St Mary. O padre residente, pouco depois da missa de Natal. Nenhuma testemunha, embora vários devotos ainda estivessem na capela. Uma nota fora encontrada, com as mesmas duas palavras, as mesmas que de facto se revelaram estar na nota do calceteiro.

Claudia voltou-se para Undertaker, ligeiramente pálida. O oficial a seu lado estava curvado sobre si, tentando em vão recuperar o fôlego.

- Isto está descontrolado. O assassino está activo neste preciso momento.

- Mais um homem.

- Não apenas isso, numa capela. Com pessoas no interior. - O olhar dela desfocou-se ao mergulhar em pensamentos. - Mesmo que seja a mulher, não receia ser vista, ou pior, é capaz de entrar em lugares e não ser vista. Alice, crês que o teu cenário ainda é plausível sob estas circunstâncias?

A criada Phantomhive curvou a cabeça.

- Tendo sido provocada, pode levar a cabo um massacre. O mistério é como é capaz de realizar tais mortes, entrar em tais locais sem ser vista. A capela não seria tão difícil quanto uma casa particular.

- Ainda nem sequer conseguimos perceber como ela os está a matar. Será através de alguma explosão?

- Explicaria a destruição do corpo. Parece ser a única probabilidade, neste momento.

- Como teria ela arranjado pólvora? Como a transportar? E a quantidade necessária para provocar este nível de dano?

- Num primeiro palpite, diria que as vítimas estão a implodir. - As palavras de Undertaker fizeram o oficial levantar a cabeça em choque.

- Implodir-? - balbuciou ele, olhando para os quatro, incrédulo. - Não pode ser.

Claudia trocou olhares com Undertaker, assentindo, e começou de imediato a investigação. O ritmo das mortes era perigosamente rápido. Não tinham saído das cenas do crime há mais do que cinco horas.

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O assassino deu-lhes um dia.

Claudia iniciou investigações a roubos de pólvora e outros tipos de materiais explosivos. Antes disso, visitou a esposa do calceteiro, e confirmou que a mulher estava em profundo choque, balbuciando disparates que Claudia não se incomodou a relatar a Undertaker. Juntamente com o Yard, delineou todos os elos que podiam encontrar entre as vítimas até então para explicar a sua relação, e os diferentes significados que poderiam ser encontrados nas simples notas. Os seus criados trabalharam com o mesmo afinco para comprovar a primeira teoria da empregada.

Undertaker focou-se nas cenas do crime, a destruição dos corpos, o ainda incerto número de vítimas na cena do jantar de Natal (embora concordasse com a possibilidade de a esposa ser a assassina), e a razão por detrás da sua suposição quanto ao método de morte: implosão. Enquanto também se focava em como tal poderia ser praticavel, Undertaker focou-se no porquê. O significado por detrás das mortes, que estaria com certeza explicado nas notas. Mortes de homens por vingança significariam que existia um elo entre eles; possivelmente, um elo de alguma forma violência. A assassina estava provavelmente escolhendo homens que conhecera ou ouvira falar. Isto poderia ajudar a confirmar se a identidade da assassina era mesmo a esposa do jantar de Natal.

Já para não falar de que não tinham encontrado qualquer vestígio de pólvora nas cenas do crime.

A 27 de Dezembro, o Yard recebeu a notícia de um crime num bordel. Não teriam ligado muita importância, se as circunstâncias não os tivessem deixado de imediato em pele de galinha.

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A 28 de Dezembro, Claudia estava fumegante, a sua tenacidade e teimosa não dando tréguas para que a frustração se entranhasse. Não encontrara nenhuma ligação directa entre um casal de classe média, um calceteiro, um padre e um proxeneta, nem encontrara provas de tráfico de pólvora que pudesse ligar ao caso. Undertaker não lhe conseguiu encontrar a fórmula exacta de como um corpo humano poderia ser incendiado a partir do interior, e mesmo assim, vestígios de pólvora teriam sido encontrados.

Para surpresa de Claudia, receberam notícias de um caso semelhante ocorrido em Manchester. Sem mais informação sobre ele, requisitou que os relatórios lhe fossem enviados de imediato.

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A 29 de Dezembro, notícias de mais um crime chegaram a Claudia não pelo Yard, mas por carta da Rainha.

Undertaker estava com ela na casa de Verão em Londres quando a carta lhe foi entregue em mãos pelo jovem mordomo John Brown, após os cumprimentar a ambos e proceder de imediato a falar com Claudia.

- Sua Majestade recebeu notícias preocupantes.

- Sim, tenho estado a investigar uma série de crimes misteriosos nos últimos dias.

- Então não ficareis surpresa pelas circunstâncias deste novo crime. A vítima, no entanto, é Lorde Tarl, um conhecido de Sua Majestade.

Como Undertaker conseguiu não resfolegar era algo que nem ele compreendia. Não prestou atenção à curta e forçosamente educada troca de palavras entre eles, focando a sua atenção em vez disso no homem, que em retorno não lhe concedeu sequer um olhar. Mesmo que o tivesse feito, não era como se fosse óbvio, com o homem a usar aqueles óculos.

- Um lorde também? - explodiu Claudia, irritada de forma pouco habitual ao abrir a carta depois de John Brown lhes ter voltado as costas. - Como raios é suposto eu encontrar uma ligação entre todas estas pessoas e impedir mais crimes? Nem sequer consegui descobrir muito sobre a maldita suspeita!

- Então quem era o bom e falecido Lorde Tarl? - perguntou a Claudia, olhando para o céu lá fora. Que dia tão bonito.

- Eu conheci-o - respondeu ela. - Mas não sabia que era um conhecido de Sua Majestade. Na verdade, requisitei o auxílio dele uma vez há uns anos, num caso de tráfico de armas.

Que dia tão bonito, tornado de repente tão negro.

- Morreu no quarto - Claudia franziu o rosto. - A sua casa não é a casa de um calceteiro qualquer, ele tinha criados. Como é que alguém conseguiria entrar sem ser visto?

- Pobre esposa vingativa. Entornou o copo de Sua Majestade.

Claudia atirou-lhe um olhar irado, que Undertaker ignorou.

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A 30 de Dezembro, Claudia ainda aguardava os relatórios do crime de Manchester. Sentindo a sua irritação à distância enquanto ela se enterrava sob ficheiros e relatórios do Yard, Undertaker decidiu ser ele próprio a recolher os documentos.

De facto, a polícia ainda não os tinha enviado para Londres. Com um documento com o brasão dos Phantomhive e da Boa Rainha Victoria, Undertaker conseguiu assustar os oficiais e requisitar os documentos em questão, sorrindo-lhes em despedida e regressando a Londres num piscar de olhos.

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O olhar de Claudia estreitou-se, demasiado sabedora. A sua típica expressão inquisitória estava agora profundamente delineada por uma acuidade que tornava o seu olhar quase perigoso.

- Como conseguiste isto? Tão rápido?

Undertaker encolheu os ombros, sorrindo.

- Segredos do negócio, my lady~ Já estavam bastante atrasados, se quereis a minha opinião. Agora, vamos a isso? Espero que não vos importais que tenha dado uma espreitadela.

O relatório descrevia a cena do crime com os mesmo contornos que todos os outros: uma imagem macabra de partes de corpo espalhadas e obliteradas no que, de resto, era uma divisão perfeitamente normal. O primeiro crime, o jantar de Natal, permanecia o único diferente, apesar de o crime de Manchester também ter ocorrido numa sala de jantar e também a 24 de Dezembro. As mesmas duas palavras numa nota tinham sido encontradas.

Ainda de rosto franzido, ela pegou nos documentos, pegando na nota manchada de sangue quase de imediato. - A pouca informação que reuni sobre Sarah Delane é que nasceu em Manchester, e que o seu nome de solteira é Gainsworth.

- Aí está o elo entre as duas vítimas, então. O nome da vítima é Gainsworth. Possivelmente o seu pai.

Alguns momentos depois, ela aproximou a nota do rosto. - Isto é... o que é isto?

- Hm? - Undertaker deslizou para junto dela, inclinando-se sobre o pedaço de papel nas suas mãos e tentando ver ao que ela se referia. Viu as letras, claro, perfeita e completamente definidas e nítidas. - O que foi, Claudia?

- Esta mancha - apontou ela com o dedo, batendo sobre a mancha de sangue seco no centro do papel, sob a tinta. Undertaker franziu os olhos, não vendo nada particularmente revelador nela além de que tinha uma aresta recta de um dos lados. Claudia atirou-se para a mesa, quase embatendo contra a cabeça curvada que Undertaker rapidamente salvaguardou endireitando-se num salto. Remexeu pelas notas que tinha disposto previamente, encontrando a que procurava. - Olha!

Undertaker franziu os olhos visivelmente e aproximou-se dela, os contornos desfocados dos dois papéis brancos manchados tornando-se mais claros enquanto ela os alinhou no tampo da mesa. A nota em que pegara era a do primeiro homicídio da cronologia, o daquele jantar de Natal caótico e perturbador. Undertaker conseguia perceber por causa das manchas. Todas as notas tinham manchas diferentes.

- Foi no mesmo dia - declarou ela, a boca ligeiramente entreaberta. De novo, e antes que Undertaker pudesse ver com clareza que pista despertara a sua atenção, ela folheou os documentos que lhe trouxera, lendo o relatório que a polícia redagira, batendo no canto da folha. - Sim! Teria confirmado de imediato se tivesse lido isto, mas o sangue também...

- O homicídio de Manchester ocorreu a 24 de Dezembro? - perguntou Undertaker, respondendo de imediato à sua pergunta idiota; sim, ele próprio lera o relatório. A data estava devidamente anotada. Claudia chegara àquela conclusão só por olhar para as notas? O que havia de tão importante nisso?

- Sim. A 24. - Claudia voltou o relatório para ele, onde Undertaker acreditava estar a data escrita, ainda que ele não a conseguisse ver. - Foi a 24 de Dezembro! O que...

Undertaker compreendeu o que Claudia queria dizer, arregalando os olhos. Ergueu o olhar para ela, vendo o entusiasmo e adrenalina de Claudia desaparecer subitamente do seu corpo, os braços caindo contra as ancas e o relatório pendendo inutilmente da sua mão.

- O que é impossível.

A sua súbita perda de energia atingiu-o como uma pancada física no peito. Desejando inconscientemente reacender aquela centelha nela, Undertaker ergueu os braços para lhe chamar a atenção.

- Esperai, por favor. Recuai uns passos, para quando começastes a resolver o caso. As notas? - disse, tentando trazer Claudia de volta à investigação. A sua reacção fora tão abrupta e visível que parecia de facto que algo fora danificado, um sentimento que Undertaker não conseguia explicar racionalmente mesmo que quisesse. - O que vistes no sangue?

- As manchas. Coincidem - respondeu ela, os braços ainda caídos ao lado do corpo.

- Oh? Coincidem, como assim... - olhou para baixo, vendo como Claudia alinhara os papéis. Viu por fim o que ela queria dizer; ao escrever as notas, a assassina tinha aparentemente colocado as duas folhas de papel uma sobre a outra. As manchas de sangue estendiam-se de um pedaço de papel para o outro de forma contínua, como uma única pincelada de vermelho acastanhado. Quando separadas, a mancha no segundo papel ficava com uma aresta crua e forçada, recta. O que significava que a assassina não só escrevera ambas as notas, como as escrevera ao mesmo tempo. Só aí a mancha de sangue poderia fluir e coincidir daquela forma. O facto de Claudia ter reparado nisso era impressionante. Após uma rápida reorganização sua, viu que mais nenhuma nota tinha manchas de sangue coincidentes.

- Então, a nota encontrada em Londres e a nota encontrada em Manchester foram escritas ao mesmo tempo: no jantar de Londres, a 24 de Dezembro. Ainda não sabíamos com certeza a data do assassinato de Manchester, mas suposeste-lo só ao olhar para isto?

- Não deveria ser um indicador per se, não - admitiu Claudia, ainda ligeiramente distraída, mas felizmente regressando ao seu normal. - Claramente, estava certa, o relatório confirma-lo, mas a única prova concreta que isto nos forneceria era o assassino ter estado em Londres, e então viajado para Manchester de imediato. Apressei a minha conclusão. A mancha de sangue por si só não prova a cronologia.

Undertaker franziu o rosto. - Seja como for, estavas certa. O relatório confirma que aconteceu a 24 de Dezembro.

- Sim, mas não pode ser. - Claudia aproximou-se da secretária de novo, pousando o relatório de um lado e percorrendo rapidamente as suas notas mentais e conclusões enquanto reorganizava as folhas de papel.

- 24 de Dezembro, jantar de Natal, Londres
- 24 de Dezembro, jantar de Natal, Manchester
- 25 de Dezembro, casa do calceteiro, Londres
- 25 de Dezembro, Capela de St Mary, Londres
- 27 de Dezembro, bordel de Whitechapel, Londres
- 29 de Dezembro, mansão do Lorde Tarl, Londres

- Não estou a ver o problema. São todos centrados em Londres, cobrindo tanto áreas pobres como bairros mais abastados. Os primeiros homicídios ocorreram num curto espaço de tempo, depois no espaço de dois dias entre si. Talvez para planear, ou para escolher vítimas. Apenas o de Manchester é a carta fora do baralho no que toca à localização.

- É mais do que isso. Destrói o caso por completo - respondeu Claudia, a frustração ressurgindo. - O relatório diz: 'A governanta foi alertada pelo ruído na sala de jantar, sabendo que Mr Gainsworth não aguardava visita de familiares, e deparou-se com o cenário macabro. Correu temendo por sua vida no meio da noite para o vizinho mais próximo, quase três quilómetros de distância, onde partilhou o chocante e desesperado relatório do ocorrido. Devido à hora tardia e à distância, as autoridades só chegaram nas primeiras horas do dia 25, quando...', ele foi morto na noite de 24.

- Que foi a hora do jantar de Londres - disse Undertaker, percebendo de onde a frustração de Claudia despontara. - Comprovámos a ligação entre a vítima e a suspeita, mas agora a cronologia não bate. A mesma pessoa escreveu as duas notas, imediatamente após cometer o crime do jantar de Natal. As nossas provas levam a crer que o primeiro homicídio não foi premeditado, e provavelmente partiu de uma discussão violenta. Isto aconteceu entre as sete e as oito da tarde. O homicídio de Manchester teria de ter ocorrido mais ou menos ao mesmo tempo, já que o relatório menciona que a governanta ouviu barulho há hora de jantar. A menos que tivesse sido um plano prévio entre cúmplices, um único assassino viajar essa distância na própria noite...

- É impossível.

Undertaker chegou à mesma conclusão ao mesmo tempo que Claudia.

- Não apenas isso, mas não poderiam ser cúmplices - notou ele. - A mancha de sangue foi transferida após o homicídio de Londres. A segunda nota não poderia ter sido deixada em Manchester por um cúmplice previamente preparado para o crime lá. Apenas se fosse um imitador, e mesmo assim, seria impossível. Não em tão pouco tempo.

Ergueu os olhos para ela, a sua frustração dando lugar a resiliência que girava as engrenagens na sua mente.

- Não estamos a lidar com um imitador - começou ela, pronunciando os seus pensamentos em voz alta como sempre fazia com ele; como se ele fosse a sua consciência, e a troca de ideias pudesse acontecer com naturalidade entre eles. - É impossível que os dois homicídios de dia 24 não estejam relacionados um com o outro, que não tenham sido cometidos pela mesma pessoa. Uma vítima foi o marido de Sarah Delane, a outra o seu pai. São idênticos, salvo as divisões caóticas e destruídas. A teoria da Alice é a mais lógica, e uma que ainda não fui capaz nem de refutar, nem de comprovar. Estava a começar a contemplar a possibilidade de um cúmplice; teria sido assim que a discussão começou? Talvez um amante, o marido ciumento perde a cabeça e o casal vingativo mata-o impiedosamente? Faria sentido a existência de um parceiro nesse cenário, que traria a pólvora. Mas então, a morte teria sido premeditada. E depois, todos os outros homens? Qual é a ligação, se fosse tudo apenas por causa de um adultério? Mas e agora, Manchester? Manchester não poderia ter sido nem um assassino nem um par!

Claudia aparentemente lembrou-se que necessitava respirar, e a curta pausa impulsionou o fim da sua tese.

- Tu mesmo o disseste: não poderia ser um cúmplice, não com Manchester acontecendo tão pouco tempo depois de Londres. A nota foi escrita em Londres. Aquela primeira cena do crime é a chave para tudo, e mesmo que eu não consiga provar se há um ou dois assassinos, mostra que não foi premeditado. Uma carnificina pré-planeada não teria provocado aquele cenário caótico, mesmo se o assassino tivesse tido resistência da vítima. Todos os homicídios foram realizados pela mesma pessoa, sem dúvida. Mas como poderia uma pessoa estar em dois locais a trezentos quilómetros de distância um do outro, no espaço de apenas uma hora? Não há forma lógica ou possível de tal ter acontecido. Mas não posso ser convencida de que não é o mesmo assassino. Apostaria a minha vida.

Enquanto ouvia o raciocínio de Claudia, ou antes, ao mesmo tempo que também compreendia ser realisticamente impossível alguém cometer aqueles crimes àquela distância, o arrepio gelado que desceu pela espinha de Undertaker também lhe disse que não era totalmente impossível.

Afinal, não era como se ele não tivesse percorrido exactamente a mesma distância em menos tempo.

No entanto...

Nenhum Grim Reaper que alguma vez conhecera, ou provavelmente conheceria - apostaria a sua própria existência - mataria um ser humano daquela forma. Intrometer-se nas vidas humanas,? não tinha dúvidas; ele era a prova viva disso. Chacinar seres humanos?, não era inédito. Também sabia o que uma Death Scythe podia fazer ao corpo humano, começando pela sua própria. Outros Grim Reapers poderiam com certeza arranjar alterações únicas às suas Death Scythes.

Mas podia analisar a informação tal como Claudia fizera, subitamente e dolorosamente com menos variáveis e uma resposta mais objectiva.

A chacina do jantar de Natal de Londres era particularmente proeminente devido ao cenário de caos que apresentava: apressado, em pânico, aterrorizado e mortal. Essas mesmas emoções entranharam-se nas paredes ao ponto de as conseguir sentir. O que quer que acontecera, fora grave ao ponto de destruir a mesa de jantar e quebrar as janelas da divisão. O homicídio de Manchester tendo acontecido em tão curto espaço de tempo só servia para selar na sua mente a questão de que houvera um ser sobrenatural responsável, ou pelo menos envolvido, nas mortes. Poderia ser dado como certo que, o que quer que despontara estes massacres, começara no jantar de Natal de Londres. Não premeditado. Desencadeado por um jantar de Natal que correra mal, alguma discussão violenta, um medo e um pânico que foram demasiado dolorosos para sequer imaginar, demasiado frequentes para serem suportáveis. 'Nunca mais'.

Depois disso, Manchester seguiu-se de imediato. Aí, a assassina encontraria uma vítima que, também, 'Nunca mais' a magoaria. Algo fisicamente impossível, e no entanto possível devido ao desejo da assassina.

Portanto, o que quer que o tivesse começado, começara em Londres, naquele caos.

E de repente a natureza macabra das mortes já não parecia estranha nem misteriosa.

Undertaker não se apercebera de quão penetrantes eram os olhos de Claudia, cravados nos seus até que ele finalmente conseguiu regressar dos seus pensamentos e os fixar de volta. Aquela mesma resiliência de antes esteve presente apenas por mais um instante antes de Claudia estremecer pelo medo que ele não conseguiu esconder dos olhos.

- O que descobriste, Undertaker?

- A esposa do calceteiro. Falastes com ela.

- Tentei. Ela mal me viu.

- O que é que ela disse?

- Não disse muito. O que ela conseguiu murmurar foram palavras confusas e balbuciadas. Viu claramente o marido morrer. Não pronunciou uma frase e era difícil compreender palavras inteiras. Ou pelo menos palavras que não fossem 'sangue', 'monstro', 'demónio'.

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continua

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