Aviso: Conteúdo perturbador em diferentes níveis. A violência não é muito gráfica, mas tem os seus momentos. Também há referências a profanidade e blasfémia, o que já foi aludido no capítulo anterior e todo o caso começar a 24 de Dezembro.

O triviazito sobre o First-Foot/primeira visita do ano e as coisas do Ano Novo são coisas que li rapidamente sobre festividades na era Victoriana. É sobre a primeira pessoa que entra na casa após a meia-noite trazer um presente e dar boa sorte à família. Era melhor essa pessoa ser um homem de cabelo escuro, enquanto que um homem loiro daria azar. Aparentemente, ser uma mulher teria o mesmo efeito. As mulheres deviam voltar a casa antes da meia-noite, e o que se fazia no momento da passagem do ano iria aparentemente ditar o que se faria ao longo do ano.

Quanto à linguagem: fica finalmente estabelecido que o Undertaker trata a Claudia por 'vós' num contexto normal de servo para com um lorde, de informador para com o Cão de Guarda da Rainha, e por 'tu' quando se dirige a ela como pessoa que quer proteger/humana que conhece desde criança/como Shinigami. Volto a dizer, se estas mudanças forem particularmente irritantes, digam-me. Decidi por este caminho porque há frases que não me soam bem com 'vós'.

Por último: sim, é gadanha, não foice. Mas foice soa muito melhor.

Este capítulo é grande.

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30 de Dezembro, noite

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Claudia estava impaciente a seu lado. Recusara-se a viajar dentro da carruagem, e em vez disso sentava-se com ele enquanto ele conduzia os cavalos ao seu destino.

As palavras delas não o alcançaram. A mente estava presa naquela sala de jantar, na sua destruição. O sangue e carnificina que não eram tão perturbadores quando a sensação arrepiante de desconforto, um desconforto que não conseguira identificar na altura.

Aquela angústia pura e inexplicável que o pânico cravado nas paredes lhe provocara.

As únicas palavras que ouviu foi quando parou a carruagem em frente de uma casa de Verão familiar.

- Nem penses nisso - ladrou Claudia, percebendo claramente qual era a sua intenção. De novo, Undertaker ficou em silêncio. Saiu do lugar, mas Claudia cerrou um punho enluvado sobre a sua manga. - Não me vais largar aqui como uma bagagem incómoda.

- Podeis ficar descansada, o caso será resolvido - insistiu Undertaker, libertando-se da mão dela e caminhando para a porta. Claudia saltou do lugar e seguiu-o, alcançando-o e forçando-o a parar.

- Não sou uma criança, Undertaker. Vais trabalhar comigo, e começar por me dizer como os apanhamos.

- Fá-lo-ei.

- Óptimo. Então começa-

- Não, eu farei isso. Eu vou apanhá-los. Por favor, ficai aqui.

A expressão dela era tão inflexível quando o tom dele.

- Esta investigação é minha. Há pessoas a morrer, e eu vou apanhar os culpados segundo as ordens que me foram dadas.

- Eu farei isso.

- Posso não ser como tu, Undertaker, mas não sou uma criança. Já vi muita escuridão. Estás a desrespeitar-me profundamente ao afastares-me desta forma.

- Estou a manter-vos fora de perigo.

- Estás a agir como se eu fosse um incómodo e uma incompetente. Se aquilo que eu sei sobre eles não é suficiente, então tu vais ensinar-me o que sabes sobre demónios. É tão simples quanto isto.

Claudia lera as expressões dele antes, quando ele próprio compreendera o que se passava. Aquela confirmação final, quase redundante - as palavras balbuciadas pela mulher do calceteiro a Claudia - foram apenas um catalisador. Tal como ele próprio, as peças encaixaram no lugar na mente de Claudia. Demorara um momento a aceitar por completo, a surpresa clara, mas quando aceitara, fizera-o com simplicidade. O caso encontrara provas decisivas, os culpados tinham sido identificados. Tudo o que lhe restava era capturá-los.

Como se fosse assim tão simples.

- Eles têm alguma fraqueza? Agem apenas seguindo ordens? Os livros não elaboravam muito estes aspectos.

- Já vos disse uma vez, é-

- Em vez de me infernizares, devias ensinar-me - interrompeu-o Claudia friamente.

- Não podes lutar com um deles. Não posso deixar isto mais claro.

- Não. Eu sou o Cão de Guarda da Rainha. Este caso é meu.

Um leve farfalhar de cortinas na janela atrás deles chamou-lhe a atenção. Deviam ter falado um pouco alto demais e as suas vozes foram ouvidas dentro da casa de Verão. Instintivamente, soube que não era Tanaka. Undertaker sentiu quem era mesmo antes de a porta da frente abrir, e Claudia voltou-se esperando notificar o seu mordomo das suas tarefas nessa noite mas em vez disso encontrou Cedric sob a ombreira.

- O que fazes aqui? - as sobrancelhas de Claudia arquearam-se.

- Claudia - cumprimentou-a ele, o sorriso esmorecendo muito depressa quando confirmou que os tons de voz que ouvira eram de facto sinal de que algo não estava bem. - Como está a correr o caso?

- O que fazes aqui? - repetiu ela. - Onde está o Tanaka? Porque não estás na mansão?

- O Tanaka está aqui. Quero dizer, não aqui, agora. Foi recolher informação a meu pedido.

- Informação? Então e o Vincent e a Francis?

- Deixei os criados a tomar conta de tudo. Está tudo bem.

- Ainda bem que viestes, Lord Cedric - cumprimento Undertaker, o sorriso voando para o seu rosto num reflexo. - Se fizeis o obséquio, levai a Claudia para dentro. Temos trabalhado arduamente nos últimos dias.

- Pára com isto imediatamente, não vou ser deixada para trás - atirou Claudia, voltando-se para ambos num salto. - Tive um grande desenvolvimento no caso, Cedric. Informa o Tanaka quando ele regressar.

- Isso é o que-

- A Claudia deveria descansar - disse Undertaker no seu lugar, assim que Claudia girou sobre os calcanhares e começou a andar de volta para a carruagem. - Tal como esperado, ela não está a seguir o meu conselho.

O homem olhou para ambos, confusão cravada no rosto. Undertaker preparou-se para seguir Claudia. Se chegassem a isso, iriam aguardar pelo regresso de Tanaka. O marido e mordomo deveriam ter melhor hipóteses a persuadi-la.

- Não.

Em vez disso, Undertaker voltou-se de novo para Cedric, tal como Claudia. Cedric não estava a encarar Claudia, no entanto, mas sim Undertaker. O homem enfrentava os seus medos como quando fora mais novo, parecia até mais determinado agora.

- A Claudia não vai ficar aqui se não quiser.

Por mais engraçado que fosse, agora não era mesmo a melhor altura para Cedric fazer o papel de marido amável. Não daquela forma.

- Não estava bem a sugerir, Lorde Cedric.

- Nem eu. A Claudia disse que teve um desenvolvimento no caso. Porque não haveria ela continuar?

- Porque está a esquecer-se da importância das coisas que não podem ser recuperadas.

- 'A importância das coisas que não podem ser recuperadas?' - Assim que Claudia estava prestes a responder a Cedric, a escolha de palavras de Undertaker fê-la explodir de novo. - Isso outra vez? Estamos a falar sobre uma investigação, homicídios, e prender os responsáveis. Não das tuas malditas metáforas, por amor de Deus!

- Pareceis incapaz de compreender as minhas declarações directas, por isso tentei uma metáfora. Não vos vou deixar colocar neste perigo.

- A vida da Claudia esteve sempre em perigo - retorquiu Cedric. Undertaker não pôde evitar revirar os olhos, o que nenhum deles conseguiu ver. Preferia muito mais que Cedric se abstivesse de falar de todo. Porque estava ele na casa de Verão, sequer?

- Do que tens medo? Que eu vá magoar inocentes de novo? É disso que estamos a falar agora?

- Eu estou-

- A importância das coisas que não podem ser recuperadas. Disseste-me isso quando decidi matar aquele homem, aquele 'inocente' há anos. Então e agora, a Sarah Delane é alguma pobre alma inocente que eu irei esquecer quando a matar?

- Era um aviso.

- Seja como for, de quem estou eu a esquecer-me agora?

- De ti própria.

Claudia resfolegou em irritação. - Oh mas claro.

- Tens de te colocar no teu lugar, não no de serva de uma Rainha que te atira para fossos de escuridão para cumprir as suas ordens. Não se trata da tua reputação. Vais resolver o caso. Vais simplesmente deixar que seja eu tratar disso.

- O meu marido disse as palavras que tu pareces incapaz de compreender. Se estás preocupado com a minha vida, bem, então deves ter sempre estado, porque sempre esteve em risco. Eu posso morrer por respirar, compreendes, esse é um aspecto da vida que sempre discutimos. E também pareces incapaz de compreender algo ainda mais importante. Eu sou o Cão de Guarda da Rainha. Isso é aquilo e o que eu sou. Não estou a sacrificar nenhuma parte de mim ao agir ou pensar sob as ordens da Rainha. Isto sou eu. Claramente és incapaz de ver que não existe diferença.

- Agora que isto está resolvido - procedeu Cedric, sem perceber que nada ficara 'resolvido' para que ele continuasse. Apesar disso, ignorou Undertaker e falou para Claudia. - O Tanaka informou-me sobre o caso e as vítimas. Eu conhecia o Lorde Tarl, e quero ajudar.

- A vítima mais recente. Sim, eu também o conhecia.

- A sua esposa e Sarah Delane, a tua suspeita, eram conhecidas.

- E sabes disso porque?

- O Lorde Tarl tem... tinha uma resistência ao álcool muito menor do que gostava de apregoar. Partilhava os problemas que tinha com a mulher com frequência, mencionou alguns dos grupos de amigas. Tanaka descreveu-me a informação que têm sobre Sarah Delane, e parece corresponder a uma dessas amigas.

- E?

- Esse elo com Lady Tarl pode ser útil. A família possui várias propriedades em Londres. Se eram amigas, talvez Lady Tarl tenha falado a Sarah sobre alguns deles. Pode estar escondida em algum.

- Estou a ver - a anterior expressão séria de Claudia suavizou para uma de satisfação. - O homicídio aconteceu ontem e as mortes têm sido espalhadas por tantas classes sociais, e com os outros casos, confesso que negligenciei interrogar Lady Tarl de imediato. Teria sido sensato confirmar a ligação entre as duas mulheres. Então, o Tanaka foi investigar a localização das propriedades.

Cedric assentiu e sugeriu: - Vais resolver este caso, mas seria melhor aguardar pelo regresso de Tanaka e as informações que ele terá serão cruciais. Podes descansar enquanto esperamos. Amargura-me que isto provavelmente se estenda até à véspera de Ano Novo, mas não há nada que se possa fazer. Se possível, volta para casa antes da meia-noite e ainda poderás estar com os nossos convidados.

- Devo ser a primeira visita do Novo Ano - resfolegou Claudia em vez disso. - Cabelo escuro, mas uma mulher. Não trarei muita sorte.

- Deus sabe que eu também não seria sortudo - sorriu Cedric, acenando para os seus cabelos loiros, esta pequena e alegre conversa festiva fundindo-se com a troca anterior como se fosse a coisa mais banal do mundo. Talvez devesse ser, esta maravilhosa capacidade que Claudia e a sua família tinham de unir o macabro com o mundano.

Undertaker foi efectivamente ignorado durante toda a conversa, olhando para ambos e para a sua ignorância das profundidades deste caso. A sua anterior conversa com Claudia não terminara, mas era claramente algo que teria de esperar, por exigência de Claudia.

- Talvez seja melhor descansardes aqui também - Cedric dirigiu-se a ele de novo, como que numa oferta de paz. Os olhos de Claudia fulminaram-no, embora visivelmente mais calma após a intervenção do marido. - Podem ambos descansar e decidir o vosso plano de acção de manhã.

- Não creio que tenha sido claro o suficiente.

- Fostes. E por essa razão, sei que fareis o que sempre fizestes - completou Cedric. - Ireis mantê-la a salvo.

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31 de Dezembro

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Pelo menos, a súbita aparição da espinha dorsal de Cedric não incluíra nenhum heroísmo idiota de se lhes juntar na missão ou algo do género. Tanaka ofereceu-se de facto para os assistir, mas Claudia recusou.

- O Undertaker está comigo.

Uma garantia, algo que deveria apaziguar as mentes de todos os envolvidos.

Claudia voltou-se e fixou-os no olhos escondidos sob o cabelo.

- Vamos?

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Tanaka interrogara Lady Tarl e providenciara-lhes as moradas das três propriedades que herdara do seu falecido marido. Estavam espalhadas pela cidade, e a melhor forma de as excluir era verificando-as pessoalmente.

As primeiras duas localizações revelaram ter criados a fazer manutenção ao lugar, e nenhum dos criados vira um casal, ou não tinham conhecimento de estarem a albergar algum.

Disseram-lhes que a terceira propriedade estava em ruínas, e que a família tencionava vendê-la.

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Havia sempre a hipótese de estarem errados. Esta pista não era uma garantia que iriam encontrar Sarah Delane. Ela poderia ter achado um abrigo diferente. Ou poderia estar lá escondida, mas poderiam encontrar o sítio vazio. Os últimos três assassinatos tinham uma diferença de dois dias entre cada um; faria sentido se um novo acontecesse hoje. Sem uma pista sobre o próximo alvo, esta era definitivamente a pista mais forte que podiam seguir, mas não era garantida.

Claudia parecia convencida, no entanto. Apesar do perigo, Undertaker conseguia sentir a sua respiração e ritmo cardíaco acelerar, não tanto de medo mas sim de excitação.

- Não atacareis primeiro - disso Undertaker em voz baixa quando saiu da carruagem. Tentou ajudar Claudia, mas ela voltou-lhe as costas e começou de imediato a percorrer as filas de ruas que conduziam até à morada.

- Essa é a melhor abordagem em qualquer situação. Estás a dizer-me que devo dar-lhes a hipótese de disparar primeiro?

- Estou a dizer que, se algum de nós atacar, serei eu.

- Não tens uma arma, Undertaker.

- Costumáveis ter mais fé em mim.

- Costumavas confiar mais em mim.

Undertaker ficou calado, decidindo que isto rapidamente passaria a uma discussão de crianças. As ruas à volta deles estavam mais movimentadas que o habitual, com a véspera de Ano Novo aproximando-se. A tradição de socializar na data era óbvia, e quando a noite começou a cair, as multidões só pareceram aumentar. Órfãos passavam a correr por casais na rua, agarrados a preciosas moedas que tinham conseguido roubar ou receber, esperando ingenuamente que lhes fossem trazer as riquezas muito necessitadas no próximo ano. Um mordomo acompanhava um lorde, carregando um presente embrulhado que o homem esperava oferecer à família ou a um amigo como primeira visita do Novo Ano, First-Foot. Ninguém prestou muita atenção a Claudia ou a Undertaker. Os candeeiros de rua foram acesos enquanto passavam por eles, os empregados encarregados da tarefa também não lhes prestando atenção. Apesar de terem iniciado a investigação à tarde, o tempo arrastara-se nas outras duas propriedades. Já estava de noite quando chegaram à rua certa.

Claudia olhou para os edifícios e rapidamente achou aquele que procuravam.

- Não há criados neste. Aquela empregada disse-me.

- É melhor irmos pelas traseiras.

- Concordo.

Contra o seu pedido, Claudia continuava a andar à sua frente, tal como quando era criança a resolver mistérios sozinha. A imagem da sua pequena figura envergando roupas andrajosas e disfarces atravessou a sua mente de forma indesejada. Undertaker afastou-a.

- É provável que estejam juntos, não é? - perguntou ela antes de virarem a esquina. A luz do candeeiro de rua desvaneceu, deixando-os lentamente para trás.

- Sim.

- Então será difícil atacar a Sarah, imagino?

- Eles tendem a proteger o seu contratante, mas são os meios para um fim. Não sei o que especifica o contrato deles.

- Então, pode não mencionar o facto de que o demónio a deve proteger?

Undertaker pensou por um segundo. - Os demónios são farsantes. Pode tê-la enganado. Se ela morrer, aquilo terá o que quer. Mas as condições do contrato devem ser cumpridas. Portanto, é pouco provável. Ela não é a mais perigosa entre os dois.

- Então matá-la seria o ideal, já que existe a chance de isso nos livrar do demónio. Ele recebe o que quer e vai-se embora, certo?

Uma batida de silêncio. Ele não olhou para Claudia.

- É uma pequena possibilidade. As chances não são...

- Óptimo. Gosto de poucas chances. - Claudia confirmou se o cabelo estava devidamente preso e desimpediu a visão, reajustando o coldre na anca. Avançou pela rua, baixando o tom de voz mas intensificando a sua determinação. - Vai poupar-nos o trabalho a ambos. Matamos dois coelhos de uma cajadada só.

Undertaker quis voltar a dizer-lhe; esperava que o aviso entrasse por fim. No entanto, a outra razão para o aviso, a única coisa importante que mais temia que Claudia se esquecesse e que não podia ser substituída, ressoou na sua mente. E por essa razão, o destino de Sarah Delane era indiscutivelmente complexo.

As hipóteses de a mulher sobreviver a noite eram extremamente baixas. Se Claudia a abatesse sem misericórdia, então o ficheiro da mulher já estava marcado e um Grim Reaper estaria prestes a aparecer. Existia um limite racional de optimismo que pudesse ter no cenário de um Grim Reaper aparecer no meio de uma luta com um demónio, e quão pequenas eram as chances de a sua verdadeira natura permanecer indetectada por seres sobrenaturais. Um Shinigami, um desertor, um demónio e Claudia. Não era um cenário agradável. E depois, claro, havia o próprio demónio. Tinha um contrato. A sua natureza nefasta iria ser acicatada ao ver uma refeição legítima, voluntária, ser roubada mesmo sob as suas garras. E se a coisa fosse bem sucedida, a mulher morreria à mesma, de forma horrível.

Se ela sobrevivesse esta noite, todo um novo problema surgira. Ela sabia demais, e seria colocada numa posição acessível a terceiros poderosos para a interrogar e investigar a natureza dos crimes que cometera.

E Claudia tinha um papel a desempenhar no resultado. Se matasse Sarah Delane, então seria mais um prego naquele caixão que estava a talhar para si própria. Se não a matasse, então outra pessoa teria de matar a mulher; de outra forma, o prego atingiria um ponto mais fundo e mais perigoso.

Toda a situação era uma desgraça anunciada, e cada arrepio gelado que se lhe entranhava nos seus ossos só ajudava a enfatizar esse facto, desde o momento em que descobrira que um demónio aparecera perto de Claudia.

Criaturas nojentas. Corrompiam tudo à sua volta pela sua simples presença.

Estavam prestes a virar a próxima esquina quando os ouviram: grunhidos e gemidos de dor abafados, contidos, tornados em sons indiscerníveis de palavras.

Claudia trocou olhares com Undertaker, o dedo sobre os lábios. A sua outra mão pairou sobre a pistola. Os gemidos de dor continuaram, vindos de ali perto; mesmo ao virar da esquina, talvez apenas a alguns metros. Tinha sido relativamente claro a princípio, mas a cada passo lento e cauteloso que davam, mais certo se tornava que a voz era feminina.

- ...acontecer?

- Talvez já chegue, não achas?

A segunda voz fê-los a ambos estacar. Contrastando com a voz dolorosa da mulher, a voz masculina estava calma, quase enfadada.

- O teu corpo vai continuar a rejeitá-lo. Posso não saber muito sobre isso, mas sei que vais continuar a sentir dor durante as próximas horas. Seria melhor acabarmos com isto agora. Já conseguiste o que querias, não foi? Todos aqueles homens horríveis e indecentes. Podes descansar melhor agora.

- Eu disse fim. O ano ainda não acabou, pois não? - As tentativas de protesto da mulher foram interrompidas pelo grunhido audível. - Oh Deus, o que está a acontecer?

- Ambos concordámos que não irias durar muito mais fosse como fosse, não foi? Não nesse estado, sem ajuda médica. Mas para quê o esforço, de qualquer das maneiras? O fim do ano é uma altura poética, simbólica. E estamos tão perto. Uma noite agradável, uma altura agradável, mortes agradáveis. Tudo está bem.

- Eu disse que não! Tenho mais um. Posso matar mais um e depois... - A voz esmoreceu sob um novo gemido de dor.

Undertaker tinha de tomar uma decisão agora. Confiaria naquela pequena chance de Claudia se livrar do demónio matando a sua contratante, ou arriscava-se enfurecê-lo? Não podia esperar matar um demónio com um único golpe; isso sabia. Portanto, num ataque surpresa, que alvo seria o melhor?

Claudia decidiu a questão. A arma voou para a sua mão e ela virou a esquina, apontando-a em frente e pressionando o gatilho.

Ouviu-se um grito de choque. Tudo o que Undertaker pôde fazer foi testemunhar o que resultou disso.

A mulher estava apoiada contra a parede, curvada sobre si própria em claro sofrimento. As suas feições estavam desfocadas pela visão fraca de Undertaker, e no entanto ele conseguia perceber o cansaço no seu rosto, os seus olhos esbugalhados de choque mas a dor física impedindo-a de se endireitar ou fugir. As manchas escuras no seu vestido, aumentadas pelas sombras do candeeiro distante e fraco, eram restos ensanguentado do corpo obliterado do marido e dos que se lhe tinham seguido. Contra o contorno escuro da noite, a sua forma magra, com o vestido cor de pérola escolhido para as festividades de Natal esfarrapado e sujo, quase o fez pensar numa boneca de pano que perdera o enchimento e estava caída sobre si própria.

E então havia a coisa. Parecia-se com um homem jovem, aproximadamente - propositadamente - da idade da mulher. As roupas não eram nada perto de aprimoradas ou aristocraticas, pelo contrário. A cara era igualmente modesta, o que seria uma primeira escolha incomum para aquilo, mas servia o seu propósito como tudo o resto. Sarah Delane era uma aristocrata que queria escapar de tudo o que era nobreza, familiar e abusiva. A forma que tomara cumpria esse desejo e o objectivo do seu contrato.

E claramente, esse objetivo incluía não deixar a contratante morrer.

- Ora. Isso foi imprudente - disse o demónio, o braço erguido voltando a cair lentamente para junto do corpo. O buraco de bala estava perfeitamente cravado no tecido, na pele e no osso sob ele. - Parece que temos um novo desenvolvimento, Sarah.

Undertaker ficou ao lado de Claudia, averiguando a cena de forma tão impassível quanto podia - quanto tinha de ser. A primeira coisa que conseguia ver era que, mais uma vez, a criatura sobrenatural não conseguia sentir a natureza de Undertaker de imediato, tal como o colega Grim Reaper não sentira há anos atrás no topo daquela fábrica.

- Sarah Delane - começou Claudia, arma ainda empunhada. - És responsável pela morte de seis homens.

- Parece que foste descoberta - arrastou a coisa, virando a cabeça num ângulo estranho para registar os detalhes de ambos. - Fazem polícias estranhos nesta era.

- Mata-os - sibilou a mulher, tentando e visivelmente falhando em endireitar-se. O demónio pestanejou, a cabeça virando preguiçosamente para ela.

- Só vejo um macho - disse enfadado. - E até isso parece questionável.

- Quantas vezes te tenho de dizer?! - gritou a mulher, os dentes cerrados de raiva e dor em igual parte. - Tens de fazer como te mando! Mata-os aos dois!

- Como desejares - suspirou como se estivesse infinitamente aborrecido, mas o sorriso que se estendeu como uma doença sobre as feições dizia o contrário. Os olhos caíram primeiro sobre Claudia, absorvendo os detalhes do seu corpo de uma maneira que fez cada fibra de Undertaker contorcer-se de repulsa. - Parece que vais ser a segunda da fila, minha querida Sarah. Já tenho saudades do doce sabor de uma mulher. Duas numa hora é uma maravilha.

Claudia não perdeu tempo e disparou a arma, a bala desta vez perfurando a têmpora direita da coisa. Enquanto a mulher se assustou com o som e impacto, voltando a gritar quando os olhos voaram para a coisa ao seu lado em choque, o demónio nem se mexeu. A cabeça balançou ligeiramente para trás, mas poderia ter sido um insecto desastrado que embatera contra a sua pele. Sangue tornado negro pelas sombras e pela noite jorrou da ferida, vertendo sobre as feições.

Apesar de saber que a coisa não era humana, Claudia nunca vira um em pessoa. Undertaker conseguia sentir o medo gelado que emanava dela perante a imagem da coisa a abrir os braços, a arma na sua mão traindo o quão instável o seu punho se tornara.

- Oh minha querida - cantarolou aquilo, agradado. - Não me podes matar. Sou o pior monstro que temias em criançinha.

Claudia não baixou a arma trémula mesmo depois de comprovar que era inútil, duas vezes. O seu passo não vacilou numa reacção subconsciente, mas isso exigiu mais do seu esforço do que ela alguma vez admitiria.

- Todos os monstros que conheço são humanos - respondeu ela em vez disso, encarando a criatura nos olhos.

A coisa riu-se, aparentemente sem esperar que ela o fosse abordar sem medo na voz. Mas conseguia sentir o que emanava dela, tal como Undertaker sentia.

- Adoro aqueles que tentam ser fortes. É ainda melhor.

- O que estás a fazer?! Mata-os agora! - gritou-lhe a mulher. Ainda estava curvada sobre si própria, como se estivesse a tapar ou a segurar algo no corpo.

- Será mais aconselhável continuares agarrada a esse pedaço de carne morta na barriga. - Toda a alegria de apenas um segundo atrás desapareceu num terrível piscar de olhos. - Isto é um incumprimento do contrato, digo-vos eu. É melhor não insistires muito mais.

A mulher estremeceu, mas não devido à dor desta vez.

Nem Claudia, nem a mulher nem o demónio lhe tinham prestado atenção. Undertaker permanecia imóvel, observando as conversas desenrolar. Todas as suas reais emoções, o medo e o nojo mantidos afastados da máscara no rosto e longe da sua mente. O demónio deleitava-se na emoção que construía à sua volta, avançando de forma lenta e enfática.

Tinha razão nas suas anteriores palavras. O fim do ano era uma altura poética, simbólica.

Um.

O fim de algo que passou e a continuação para algo novo.

Dois.

De alguma forma, por entre a escuridão e o sangue à sua frente, conseguiu pensar nisso.

E que a melhor abordagem não era um ataque surpresa, mas sim um na altura certa.

Undertaker puxou Claudia para trás de si quando o demónio atacou, o seu chapéu caiu e os medalhões tilintaram quando atirou o braço para trás. A Death Scythe apareceu na sua mão e rasgou o ar num único golpe violento que atingiu o demónio profundamente no peito.

Sarah Delane voltou a gritar, mal conseguindo manter-se de pé. O demónio foi atirado contra a parede do outro lado da rua, sangue jorrando do golpe, ossos estalando pelo impacto.

Atrás dele, a respiração de Claudia ficara presa na garganta, os olhos arregalados e boca aberta, a pistola pendendo inútil dos dedos. Undertaker puxou a foice para trás, a sensação do cabo continuava familiar, maravilhosa. As gotas de sangue ecoaram ao deslizar pela lâmina e pingaram para as pedras da calçada. Afastou os cabelos prateados da frente do rosto; se era para ser familiar, então este detalhe também deveria ser.

Claudia moveu-se atrás dele. Ele levantou o braço, e ela parou de imediato.

Sabia melhor do que ninguém que não conseguia matar um deles num único golpe.

- Já não via um como tu há muito tempo - grunhiu o demónio, contorcendo-se no chão e erguendo o corpo novamente como uma marioneta puxada por fios invisíveis. Um pesadelo. O sangue que lhe enchia a boca foi cuspido na direcção de Undertaker. - Já tinha saudades. Da última vez, enfiei-lhe o lindos óculos bem fundo naqueles olhinhos brilhantes e moles e arranquei-lhe a cabeça. Ou terá sido na vez antes dessa?

Undertaker abriu o fecho da corrente de medalhões à cintura. O tilintar de antes fora quase doloroso aos seus ouvidos. Iria danificá-los. Assim que os libertou, o seu casaco exterior abriu-se e o pano cinzento deslizou pelo seu ombro, desimpedindo os seus movimentos.

- Por favor, segurai neles por mim - pediu a Claudia, estendendo o braço para trás de novo mas desta vez de forma gentil. Não removeu os olhos da criatura enquanto Claudia cerrava o punho firmemente na corrente de medalhões.

- Não tens os teus óculos bonitinhos, pois não? Já ouvi falar de vocês, desertores - sibilou a coisa. - Também estás muito marcado, olha essas cicatrizes. Ooooh, isto vai ser maravilhoso. Deves achar que já estás tão habituado à dor.

Sarah Delane começara a a arrastar-se para o fundo da rua, lutando contra o corpo para tentar correr. A rua deveria ser a sua rota de fuga mais segura, mas não conseguia fazer mais do que desejá-lo. Caiu sobre os degraus da porta das traseiras da propriedade e atirou-se para o interior. Claudia reagiu atrás de si, mas não avançou ou apontou a arma, não da posição em que estava e com os dois à sua frente.

- E a saborosa, maravilhosa dor da perda - continuou o demónio, avançando um passo. O corpo retorceu-se de forma perturbadora, os ossos soltando-se das articulações e voltando a unir-se, uma brincadeira para aumentar a sua aura assustadora. - Oh, foi isso que te matou? A perda magoa infinitamente mais do que um corte na pele. Deixa-me adivinhar~ uma família? Uma doce, maravilhosa e amável mulher e uma ninhada de crias, era? Ou só uma, um passarinho frágil que tiveste de ver morrer à fome e de quem nem sequer conseguiste guardar a mais pequena recordação? E enquanto tudo isso acontecia, tu sobrevivas, testemunhavas tudo e eras deixado para trás. Quão doloroso deve ter sido. Hmmmm~?

O demónio riu-se e os olhos rolaram para Claudia.

- Oh céus. Como eu adoro despedaçar entes queridos membro a membro.

Claudia tentou disparar, mas não foi rápida o suficiente. O demónio puxou um punhal das roupas e atirou-o, correndo de imediato atrás dele. Como esperava, Undertaker voou para a frente de Claudia, o punhal cravando-se no seu peito como fogo. No instante em que se curvou para a frente, o demónio estava em cima dele. Cerrando os dentes, a foice desenhou um arco para cima e falhou, mas o demónio foi forçado a recuar, saltitando alegremente. O esgar era monstruoso.

- Ora ora. Isso deve doer.

- Não tanto quanto o teu - Undertaker concedeu-lhe a resposta. Bloqueou efectivamente as emoções de Claudia naquele momento; ficaria comovido com a sua preocupação mais tarde.

O foco tinha agora de ser no quão perto Claudia ainda estava do demónio, perigosamente ao alcance. Detestava a ideia de se separarem, mas pelo menos mantê-la-ia fora de perigo e de testemunhar o fim disto. O demónio não se incomodaria a carregar muitas armas, quando o seu propósito era matar homens fazendo-os implodir. O punhal fora um mero capricho; e agora um meio a menos para atacar. Estava agora reduzido a ataques de curto alcance.

Ou talvez não.

- Tens aí uma atrevidota deliciosa - o demónio recomeçou a sua troça. - Ela é a tua nova mulher ou a tua filha? Talvez ambas, é? Tens andado a tentar brincar às casinhas com essa humanazita? Deve ter acalentado o teu coração frio e morto ver uma boneca viva tão bonita. Aposto que te mataria se a tivesses de ver morrer. Uma pessoa morta pode morrer duas vezes, pergunto-me?

Undertaker atacou o demónio, a foice rasgando o ar e Claudia aproveitou a deixa, correndo pela rua para a porta da propriedade. A foice quase o decepou, mas o demónio desapareceu e a lâmina destruiu a parede atrás dele em vez disso.

Undertaker parou de respirar. A luz fraca da rua estremeceu e apagou-se quando sombras enlaçaram o próprio ar, cordões de escuridão cercando Claudia. Ela vacilou, apanhada pela escuridão flutuante.

- Isto é suposto assustar-me? - atirou ela para o ar, os punhos cerrados em torno da arma e da corrente de medalhões. Undertaker girou sobre os calcanhares, a falta de oxigénio impedindo-o de pensar. Os punhos cerraram-se em torno do cabo e ele investiu na direcção de Claudia.

A gargalhada ressoou-lhes nos ossos.

- Não és tu que eu quero, minha querida.

Claudia voltou-se prontamente, arma em riste de novo. Undertaker viu-a e parou o ataque, a respiração a falhar de novo antes de a dor e fogo lhe rasgarem as costas, forçando um grunhido a escapar-lhe dos lábios e atirando-o de joelhos ao chão. O grito de Claudia foi pior - tão pior - quando ela disparou a arma e a bala atingiu osso com força. O demónio recuou desta vez, mas o rugido inumano que soltou não era de derrota. Tudo o que Undertaker pôde fazer foi agarrar a Death Scythe caída a seu lado e girá-la num arco.

Apanhou o demónio entre as costelas quando este saltou sobre Claudia. O demónio caiu ao chão, sangue a jorrar em torrentes do golpe aberto, entranhando-se nos frisos das pedras da calçada. O grunhido era de dor agora, a ameaça afogada no sangue que lhe caiu da boca. Os dentes brandidos estavam empapados, fazendo-o parecer um animal moribundo, perigoso, os olhos a brilhar num vermelho infernal e semicerrados na direcção de Claudia.

- Puta de merda. És esperta, hã.

Undertaker cerrou os dentes também, a dor latejante ameaçando empurrá-lo para o chão mas o seu corpo forçando-o a levantar-se de novo. O demónio olhou para ambos. O peito arquejava descompassado, as roupas pesavam e puxam-no para baixo, ensopadas com demasiado sangue.

Já não estava a tentar rir de novo. As suas feições tinham-se transformado e desfigurado para revelar um vislumbre do seu verdadeiro aspecto.

- Não preciso desperdiçar o meu tempo contigo e com a tua putinha humana - cuspiu o demónio a Undertaker. - Posso sempre voltar mais tarde para ela, quando ela tentar cortar os pulsos para se te juntar nessa vida após a morte. Não preciso dela. Tenho o meu jantar pronto e servido.

Undertaker não baixou a guarda uma segunda vez. mas quando a coisa desapareceu, o próprio ar pareceu ficar mais leve. O candeeiro de rua brilhou com uma nova luz.

Claudia mal teve tempo de processar o desaparecimento e como podia agora expressar o seu choque. Correu para Undertaker, a corrente tilitando com cada passo e embatendo contra o braço dele quando ela o agarrou, tentando ajudar mas sem saber como.

- Não - disse quando Undertaker moveu a mão para o peito. O punhal ainda estava cravado na carne. A lâmina arrancou-se da pele e levou consigo o ar dos seus pulmões. Não conseguiu conter o grunhido de dor, e todo o seu corpo caiu na direcção de Claudia, que segurou o seu peso com toda a sua força. - Está tudo bem. Estás bem.

Antes de ela poder dizer mais alguma coisa, um grito trouxe de volta o horror.

- NÃO!

A cabeça de Claudia voltou-se para cima. Undertaker moveu os olhos para a janela da propriedade, e arrependeu-se.

Sarah Delane escancara a janela e atirara-se por ela. O corpo não chegou a cair sequer um metro antes de ser apanhada no ar - parada pela mesma escuridão que afogara a luz antes. A luz do candeeiro de rua extinguiu-se precisamente quando a escuridão rasgou a carne da mulher, fazendo chover sangue na rua pelos ganchos com que a suspendeu. Os seus gritos trespassaram a noite quando ela foi puxada para trás com uma força que não podia ser real, continuando quando o corpo e ossos foram esmagados pelo vidro da janela e ela desapareceu para dentro da propriedade.

Algo molhado, pesado e horrível sufocou os gritos de vez.

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Os minutos podiam ter sido horas ou as horas podiam ter sido minutos. Undertaker só se apercebeu que tinha caído de joelhos quando o frio conseguiu latejar mais do que os golpes no peito e nas costas. Claudia estava a levantar-se a seu lado, caminhando para a porta. O seu cabelo tinha-se soltado, madeixas caiam desalinhadas.

O demónio desaparecera. Ficara demasiado enfraquecido para se atrever a regressar, mesmo sabendo que Undertaker ficara ferido. Ainda assim, mesmo sabendo isso, precisavam sair daqui. Claudia precisava ficar longe disto.

Ele precisava ficar. A sua consciência que regressava aos poucos trouxe consigo aquele pensamento que não podia abandonar - tinha de destruir a propriedade e o que quer que tivesse sido deixado lá dentro.

E em vez disso, Claudia avançava nessa direcção.

Ela ignorou o seu rogo. Os seus pulmões protestaram e os músculos gritaram mas teve de os obrigar a mover, fazendo-o levantar-se. A Death Scythe desapareceu das suas mãos, deixando-o subitamente desiquilibrado, mas conseguiu recuperar e deu o seu melhor para seguir Claudia, para a alcançar antes que ela pudesse continuar.

Quando o fez, ela já estava no segundo andar.

Havia sangue deliberadamente espalhado na parede, não da mesma forma que criara nas cenas do crime nos últimos dias, e no entanto era inquestionavelmente, e assombrosamente, reminiscente. Formava formas e linhas numa mensagem grotesca e dramática. O sangue caia em linhas grossas, linhas que os seus olhos fracos conseguiam ler.

Ceifei a dela por ti.

Sempre espertos, as criaturas nojentas.

Mesmo abaixo da mensagem estava o corpo. Desta vez deixara um corpo. Também deixara aquele que apodrecera no seu interior, agora arrancado do ventre e deixado empapado sobre dedos ensanguentados.

Claudia estava tão imóvel que parecia ter deixado de respirar. O seu olhar descera pelas linhas gotejantes até à carcaça atirada no chão contra a parede.

Undertaker soltou uma expiração lenta, controlada e profunda que enterrou um profundo golpe nas suas costelas. Conseguia sentir a onda de emoções avassaladoras, terríveis, confusas, que emanavam de Claudia, tornadas tão mais intensas pelo toque da sua mão gelada sobre o braço dele. Os dedos dela cerraram-se com força à sua volta, a corrente de medalhões pendendo do braço.

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Teve de invocar a Death Scythe novamente. O ombro latejou quando retesou a pele ferida do seu peito, mas ele persistiu. Um único traço de raiva delineou o seu ataque.

Os vizinhos poderiam de alguma forma ter confundido a anterior gritaria como sendo barulhos festivos, mas não um edifício inteiro colapsando sobre si.

.

Quando irrompeu a madrugada, vertendo tons cor de equimose sobre o negro da noite, transformando o vermelho sangue em laranja e tão depressa clareando-os para branco e azul no céu, algo parecia estar errado. A manhã surgiu como em qualquer outro dia, lavando a escuridão e o horror como se nunca tivesse ocorrido.

Parecia errado que algo assim pudesse ter acontecido quando existia um amanhecer como aquele.

Mas acontecera, e nunca poderia ser apagado.

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Claudia ficara em silêncio ao seu lado durante toda a viagem de regresso para a funerária. Devia estar em casa agora, Tanaka e Cedric deveriam ter sido avisados, mas nenhum dos dois parecia capaz de se separar ainda, os horrores da noite prendendo-os por mais alguns minutos, algumas horas, talvez como se isso os fosse ajudar a ambos a apaziguar os respectivos medos. Mais ninguém poderia partilhar aquilo que eles tinham.

A funerária recebeu-os com a escuridão que era subitamente estranha, fria e ameaçadora, mesmo neste único lugar que sempre fora um conforto e um resguardo do exterior. Claudia tentou detê-lo, mas Undertaker declarou que não iria ceder, e por isso ela aguardou à porta, a escuridão permanecendo ao seu redor até Undertaker acender o primeiro fósforo e acender a primeira vela. O calor foi imediato, e no entanto, não parecia ser suficiente. Undertaker terminou de acender a segunda vela e colocou-a no castiçal de ferro, seguindo lentamente para as restantes.

Ela ajudou-o com o tratamento, apesar de ser claro que não sabia bem o que estava a fazer e como podia ajudar. Undertaker apreciou o esforço, tal como apreciou os dedos frios que lhe tocaram cuidadosamente na pele quando ela limpou as suas feridas antes de o ajudar com as ligaduras. Permaneceram em silêncio o tempo todo. Os olhos de Claudia caíram sobre as cicatrizes no seu peito, nos braços, a cicatriz exposta no seu pescoço, mais do que uma vez. Ele voltou a vestir-se, caminhando lentamente para a mesa. Claudia seguiu-o e sentou-se num dos caixões no chão. A luz bruxeleante das velas cravou sombras carregadas no seu rosto, envelhecendo-a profundamente.

- Como é que aconteceu?

As suas primeiras palavras em horas.

- Como aconteceu o quê, Claudia? - Demasiadas coisas tinham acontecido numa única noite.

- O demónio. Como é que a Sarah Delane o chamou... o invocou?

- Não é relevante.

- Como... porquê... Porque haveria alguém de invocar algo desta natureza?

- É irrelevante, tendo em conta que o final é o mesmo.

- Mas...

Undertaker ergueu os olhos para ela enquanto Claudia tentava procurar as palavras.

- Não mudaria nada, saber o que aconteceu, como aconteceu? Como esta mulher e aquele monstro cruzaram caminhos, e ela fez tal juramento para com uma criatura assim?

- Estais a tentar encontrar razões para justificar este fim. Não podeis humanizar a sua morte, Claudia, porque o que a matou não é humano. É por isso que os demónios são monstros com os quais não se deve brincar. Para vós, saber como tudo começou poderá trazer compaixão pela mulher, e trazer apenas mais inquietação pela sua morte. Mas tudo isso é irrelevante para o demónio, e irrelevante para vós seguindo em frente.

- Mas porque haveria uma criatura de servir um humano, porque haveria tal coisa brincar ao faz-de-conta? Porque não a matar de imediato quando ela o invocou? O que o fez decidir naquele momento que a ia matar, e não antes?

Sabia que a ia perturbar. Claudia era demasiado racional. Os demónios estavam além da razão.

- Eles brincam com as vidas humanas.

- É isso? Ele falou de um contrato. Um contrato faustiano. Eles podem quebrá-los quando lhes apetece?

Undertaker expirou com dificuldade. - Não. Não podem.

- Então o contrato terminou? Já ia terminar antes de intervirmos, ou ela quebrou o contrato por nossa culpa? E ele estava só a desempenhar um papel antes disso para... quê? O processo é como um tempero? Só estão a deixar a refeição mais saborosa?

A resposta silenciosa não funcionou para apaziguar o choque duradouro. Pior, só a instigou mais, contra os desejos de Undertaker, contra o seu medo racional enraizado em pânico irracional.

- Como pode não ser relevante?

Undertaker conseguia sentir como a pausa de segundos de silêncio estava a cravar os pensamentos dela profundamente na sua mente, afundando e nunca mais a abandonando.

- Independentemente de qual fosse o livro, todos os tomos que li mencionavam um preço; algo com que 'pagar a passagem' do demónio. Sempre que pensei no assunto, não conseguia compreender se este preço era a alma da própria pessoa, ou se era a de outrem, um sacrifício. A informação era contraditória, tal como os próprios requisitos para invocar-

- Claudia...

- Sarah Delane não preparou nenhum ritual. Nada perto com nenhuma das cerimónias que li nesses livros, descrevendo um sacrifício antes de o demónio ser invocado, e mesmo assim, não era garantido. Foi como se ela o pudesse invocar por simples vontade, como uma prece-

Não precisou interrompê-la desta vez. As palavras de Claudia foram subitamente cortadas quando a loucura começou a tomar forma e sentido.

- Não é uma prece a Deus, é contra Ele. Não é? - Os seus olhos penetrantes voltaram-se para ele. Tudo o que ele quisera fora mantê-la longe de tal escuridão. Como um medo sem nome e irracional, fora sempre demais para si imaginar como a iria afectar, como a faria reagir, como aquela incompreensível lealdade àquela mulher que governava o país a faria reagir. - Ele teve um sacrifício. Era isso a que o demónio se referia. Foi assim que aconteceu.

Undertaker queria esconder os olhos; inútil. Ainda seria capaz de sentir a expressão no rosto de Claudia e a emoção que pulsava nas suas veias, e ela conseguiria perceber exactamente o medo que ele queria esconder.

- Ela perdeu o bebé. Numa discussão. O marido dela... - 'Nunca mais.' Palavras enfáticas. - A violência era uma constante, e não parou mesmo na gravidez. Na véspera de Natal, aquela mulher, Sarah, foi abandonada por Deus que nunca lá esteve para começar. Como poderia, se a Deixou ser abusada daquela forma constante e Deixou um inocente morrer no ventre da mãe? Ela Amaldiçoou-o. E isso, de alguma forma, é suficiente? Demasiada emoção, dor e ódio. E um sacrifício. Tudo oferecido àquele que ouviu as suas preces.

Ela pausou. Os olhos escureceram, escondidos sob fios de cabelo soltos e sombras.

- Como pode aquilo ser invocado com o sacrifício de uma criança, de um bebé ainda por nascer?

Uma das coisas que a aquilo dissera fora de facto verdade. Eles eram monstros.

- Como pode uma coisa destas acontecer?

O silêncio que se seguiu foi, de alguma forma, o mais pesado e doloroso de toda aquela noite interminável.

Então, os olhos dela surgiram sob o cabelo. As rugas no seu rosto eram ainda mais fundas, se isso fosse possível.

- Como é que estás vivo?

Uma simples questão que Undertaker sabia de onde surgia. Claudia sempre soubera o que ele era - a sua própria noção, uma definição que não se incomodara a colocar em palavras e que provavelmente também não se incomodara em descrever totalmente na sua mente. Claudia não precisava de o rotular como algo além da pessoa que conhecera toda a sua vida. Sabia que ele não era humano, e a sua visão dele como a Morte fora-se adaptando ao longo dos anos. Ela sabia, e ao mesmo tempo, não sabia.

Não lhe respondeu, mais devido a não saber por onde começar do que por relutância em responder. Claudia poderia ter tomado o silêncio renovado como a sua resposta, mas não vacilou. Aguardou. Os segundos arrastaram-se até minutos. Por fim, cedeu.

- Perdoa-me. Estás ferido. Esta conversa pode esperar.

Não. Se tinha de acontecer, era melhor ser agora. Undertaker inspirou devagar.

- Eu fui castigado.

- Castigado?

Após tudo o que acontecera nesta noite, isto deveria ser a parte mais fácil de falar, especialmente com Claudia. Questionara-se, por vezes, como ou se deveria algum dia puxar o assunto. A conversa que tinham tido há anos sobre suicídio poderia ter sido a melhor oportunidade, mas agora aqui estavam eles.

- Estava tão cansado. Toda a minha família... - Voltou a inspirar, expirando de seguida. O demónio atirara palpites para abrir feridas, mas por vezes os seres humanos eram dolorosamente óbvios. - Não conseguia aguentar sofrer mais. Mais não. Não conseguia viver mais, não conseguia suportar que as pessoas responsáveis só...

O latejar no seu peito cortou-lhe as palavras. Deixou-se acreditar nisso, tal como se deixou acreditar que os seus olhos enfraqueceram por cansaço e não pela lágrima que caiu deles.

- Tentei acabar da única forma que consegui pensar. Não deveria ter sido difícil, mas falhei da primeira vez, e só me trouxe mais dor. Foi demasiado. Não era uma segunda chance de vida, era castigo. Da segunda vez, não falhei. Tive de me se certificar que não falhava.

Claudia assentiu levemente.

- Então o teu castigo...

Contra tudo o que sentia, Undertaker não pôde evitar sorrir. Apenas fez com que uma segunda lágrima caísse e o cansaço no rosto de Claudia aumentasse.

- Fui punido novamente. Não me podia matar, compreendes. Isso é um crime. Não é um crime ver a tua família definhar e morrer lentamente à tua frente sem que ninguém se importe, mas é um crime libertares-te disso.

- Quem te castigou? O mesmo Deus que abandonou Sarah Delane? - a voz de Claudia estava enlaçada com raiva que fez a luz da vela a seu lado estremecer.

- Foi a hipocrisia que me marcou, sem eu ter percebido exactamente o que tinha sido - continuou Undertaker. - A hipocrisia é que nós que quisemos morrer somos obrigados a viver na esperança vã de nos redimir, e depois temos de ver todos os outros morrer, todos os outros que mereciam viver. É uma punição. É deveras uma existência interminável, de facto. Por isso, vim-me embora.

- Vieste-te embora de onde? De onde desertaste?

- Da sociedade dos Grim Reapers. Quebrei as regras. Na punição pelo meu crime, cometi outro. - O sorriso tornou-se num riso que fez o seu pulmão arder e oscilou outra lágrima do canto do seu olho. - Suponho que sou irredimível, hã~ É tão engraçado, agora que penso nisso. Honestamente, é hilariante. Nunca tinha pensado quantas vezes já fui punido.

- O que fizeste?

- Não podemos intervir nas vidas humanas. Eu não pensava dessa forma. É engraçado como as nossas vidas foram adulteradas, mas nós não o podemos fazer. Por isso te disse que as minhas questões sempre tiveram motivos egoístas. - Porque ainda estava a sorrir? - Sempre tiveram. 'E se o fim tivesse uma continuação?' O meu fim teve uma. Porque não posso eu dá-la a pessoas que a merecem? Porque não haveria de tentar impedir que as pessoas que gosto morram? Eu não decidi continuar a viver. Porque é que não posso decidir quem deve continuar?

A expressão nos olhos de Claudia era uma que ele conseguia sentir, mas não conseguia ver. Inevitavelmente, o pensamento atravessou-lhe a mente. Nesta noite interminável, era inútil tentar fingir que a pergunta ali não estava e deixá-la sem resposta.

- A minha avó... Ela suicidou-se.

- Eu sei, criança.

- Ela... foste tu que a levaste?

A criança que sorriu à Morte. Foi como tudo isto começou. Aquela criança que o fizera sorrir e alimentara as questões no fundo da sua mente na altura.

- Ela certificou-se de que estavas bem antes de tomar a morfina. É um pensamento deveras redundante mas reconfortante, saber que os teus entes queridos estão em segurança apesar de estares prestes a abandoná-los. Por isso estavas no quarto com ela.

- Ela... - a voz de Claudia ficou presa na garganta. Em vez disso, mais uma pergunta inevitável foi murmurada. - Como é que te chamas?

De novo, ele sorriu.

- Sou o Undertaker agora. É o único nome que me importa.

A esta hora da noite (não, já não era noite. A madrugada irrompera lá fora. Já era um novo dia), ela já deveria estar a descansar. Devia levá-la à casa de Verão; Tanaka e Cedric estariam lá. Não, não, era o Ano Novo. Estavam na mansão. Ou talvez Cedric estivesse. Tanaka não deixaria a sua senhora para trás. Podia bater à porta da funerária a qualquer momento, uma preocupação crescente com o paradeiro da sua senhora. Sim, isso era provavelmente a coisa certa a fazer; esperar que Tanaka a viesse buscar e a levasse para casa, para o marido e os filhos.

Mas esta noite interminável não acabava.

- Não posso deixar isto acontecer.

Undertaker pestanejou, a cabeça debatendo-se para se erguer para Claudia. As palavras não fizeram sentido. O rosto de Claudia continuava assombrosamente pálido.

- Há pessoas a invocarem estes monstros. Não posso deixar que isto continue.

Em qualquer outro momento, poderia ter sorrido, feito algum comentário sarcástico. Mas não sentia tal coisa agora. - Não podes erradicar todos os demónios.

- Não posso, mas posso informar a Rainha e-

E mais uma vez, o seu coração esqueceu-se de bater e apunhalou-o na sua ferida.

Não.

- Não.

Claudia voltou-se para ele, aparentemente esperando que ele continuasse já que ela não tinha mais reservas face à declaração. O seu rosto estava tão perturbadoramente pálido que dificultava a respiração dele, subitamente despertava cada fibra do seu ser e afastava a exaustão.

- Não podes.

- Não posso o quê?

- Não podes contar à Rainha. Ela não compreenderia. - Claudia bufou, sem humor. Undertaker tentou levantar-se. - Não podes, Claudia.

- Não creio que ela fosse duvidar de mim, por mais irrealista que possa-

- Ela não vai duvidar de ti.

- E além disso-

- Ela não vai duvidar de ti. Não vindo de ti. Não quando ela já ouviu ou teve algum contacto anterior com o que estas criaturas podem fazer.

- Então ela já sabe, é o que estás a dizer - Claudia levantou os braços. O sangue que lhe manchara as roupas já devia ter secado, e no entanto uma gota caiu da sua manga quando ela se moveu. - Estás a dizer-me para mentir descaradamente? À Rainha de Inglaterra?

Exasperação pareceu inundar e afogar a sua voz.

- Se ela soubesse da existência de demónios com certeza, garanto-te que já terias percebido. Porque achas que destruí aquele sítio? Não consegues honestamente entender o que quero dizer? - Não conseguia ela entender qual fora sempre o seu medo, como as águas negras que Claudia sempre soubera navegar tinham simplesmente demasiadas profundezas terríveis que a iriam mudar para sempre?

Que já a tinham mudado?

- Os governantes em todas as eras, passado presente e futuro, vão sempre, sempre corromper o poder se lhes for dado em demasia.

- Estás no limiar da paranoia, Undertaker. Não posso-

- Seja devido ao tempo, ou devido à sua própria natureza, seja devido à paranoia que acabaste de me atribuir, nenhum ser humano consegue deter tanto poder nas suas mãos sem o usar para os seus fins. E então os meios para alcançar esses fins mudarão, os próprios fins mudarão, tudo devido à intoxicação pelo poder, e no processo, o caos passa a dominar. Só traz sofrimento e dor. Decisões que não podem ser desfeitas.

- Mas que poético da tua parte. - A aspereza do seu tom manteve-se, e no entanto havia uma nova nota na voz de Claudia agora. Toda a sua preocupação de antes parecia ter desaparecido. - 'Quando te tornas demasiado poderosa, deixas de compreender a importância das coisas que não podem ser recuperadas.'

Undertaker ficou em silêncio.

- É mesmo assim. Eu própria comecei a ter demasiado poder, estabeleci-me demasiado no meu papel de Cão de Guarda e vi demasiado da sua escuridão. Perdi o foco no que é importante: o valor da vida humana. Intoxicada por mais e mais poder, por demónios e Deuses inexistentes, e sacrificando outros cada vez mais até que irei inevitavelmente magoar aqueles que mais amo. Uma completa corrupção da pessoa que era. Um fim inevitável que destrói tudo à minha volta. É isto que te assusta.

- Isso-

- É isto que te assusta. Tu e a tua maldita metáfora. Não é apenas Sua Majestade; o teu feudo com ela tem mais do que um motivo. Detesta-la porque temes que essa sede de poder e controlo a faça magoar inocentes sem sofrer repercussões. E temes que isso tenha uma consequência maior: temes que eu vá ser seduzida por tudo isso e aja impune sob suas ordens, que vá perder a minha essência de que tu és tão incondicional e ilusoriamente protector.

Undertaker ficou calado. Claudia sufocara-lhe a voz.

- Estás a dizer que eu sou assim. Que já desci a esse ponto. É daí que vem o teu aviso? Tornei-me num dos governantes que tantos desprezas.

- Não. Não és. - As palavras foram asfixiadas, dolorosas, magoadas.

Claudia continuou a ignorá-lo, vertendo as suas próprias palavras.

- Veremos, não é? Qual dos teus medos se concretizará.

- Claudia...

- Até depois, Undertaker.

- Por favor, Claudia. Não podes-

- Vou fazer o que sinto que devo fazer. Em vez de te esconderes atrás dos teus medos, devias começar a ter mais fé naqueles que te rodeiam.

- É precisamente por isso que te avisei. Estou a tentar proteger-te.

Claudia abriu a porta da funerária. O som e luz do mundo lá fora irrompeu no interior, como se destruísse a realidade suspensa em que tinham estado submergidos nas últimas horas intermináveis. A pálida luz da manhã trespassou pela porta em raios preguiçosos, o ar fresco enregelando a atmosfera. Os sons arrastados de pedras da calçada a serem esfregadas por alguém que limpava algumas das festividades de ano novo. O baque dos sapatos dos trabalhadores que começavam o seu novo dia. O murmurar distante e preguiçoso de algumas vozes.

Aquela noção invisível de fim e continuação da vida. O fim de algo que passou e a continuação para algo novo.

- Claudia...

- Vamos tentar ter um bom ano. - Normalmente, Claudia teria resfolegado, sorrindo pelas suas próprias palavras tolas. Agora, o seu rosto escureceu, a expressão carregada de exaustão e raiva. - Ah. Mas que começo maravilhoso está a ser, não achas?

Saiu sem olhar de novo para ele, fechando a porta atrás de si e selando todo aquele som e luz de novo.

E assim começou o ano de 1866.

.

continua

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Nota: há um paralelo entre a luta do demónio e do Undertaker e a luta do Sebastian e do Undertaker no Campania - o Undertaker é enganado pelo demónio com o mesmo método que usou lá contra o Sebastian, usando o Ciel como isco para o fazer baixar a guarda, e o Undertaker é golpeado nas costas como o Sebastian.

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