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1866
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- Undertaker. Aparece.
A ordem chicoteada não deixou espaço para questões. Apesar de não poder evitar sorrir ao abrir a tampa do caixão em que estava escondido, sabia que algo estava errado. Ela visitara-o nos primeiros dias do novo ano, para saber como estava a recuperar dos seus ferimentos - inumanamente rápido, claro. A sua preocupação pelo seu bem-estar fora claramente óbvio, mas também o fora o resquício da discussão naquela terrível noite. Trocaram muito poucas palavras e nenhuma sequer se aproximou do tema da discussão, nem quando ambos sabiam que Claudia já entregaram um relatório à Rainha, fosse ele qual fosse. Após assegurar que Undertaker estava de facto a recuperar, não regressara. Já se tinham agora passado duas semanas.
Afastando a longa franja do rosto, viu Claudia junto à porta, tendo-a fechado atrás de si mas sem avançar. Não iria ficar muitos tempo, então.
- Estáis de péssimo humor hoje~ - trauteou ele, levantando-se e saindo do caixão. Alguma normalidade tinha de ser restaurada nas suas vidas; não podia ficar muitos dias sem sorrir, afinal.
- Eu...
A pequena tentativa foi abalada. Aprendera a temer a hesitação de Claudia.
- Decidi não contar toda a verdade.
Undertaker estacou; talvez um movimento demasiado abrupto, revelando demasiado a sua reacção às palavras dela.
- Considerei a reacção de Sua Majestade à informação, e... qualquer um ficaria fascinado e aterrorizado. Qualquer um - enfatizou ela. Tendo em conta que o importante era ela ter seguido o conselho de Undertaker, não se importaria com o ênfase como mecanismo de defesa; aquela lealdade incompreensível com a Rainha.
Mas também não lhe concedeu uma concordância com a natureza humana corrompivel da Rainha em voz alta. Claudia conhecia a sua opinião, e seria uma nova discussão infantil. A carranca no rosto dela era suficiente pelos dois.
- Acima de tudo, ponderei como entregar esta informação inevitavelmente incluiria o teu envolvimento. E decidi não o fazer.
Undertaker pestanejou, assentindo devagar.
- Confiaste-me a verdade sobre quem és há anos. Talvez não da maneira concreta que me confessaste no fim do ano, mas seja como for, nunca receaste ou tiveste de te esconder de mim. Confiaste em mim. Ponderei que, apartir do momento em que te mencionasse a Sua Majestade, tudo seria inevitavelmente revelado, e algo como isso... É perigoso.
Pausou então. Parecia estar a tentar engolir um nó doloroso na garganta, as duas últimas palavras revelando subitamente uma verdade para a qual não estava preparada.
Undertaker deveria ter dito algo, mas em vez disso permaneceu em silêncio. O conflito de Claudia silenciara-o no momento em que deveria ter sido o seu apoio e segurança.
- Esta decisão tem consequências que eu deveria estar totalmente preparada, no entanto pareço estar a ser completamente irresponsável. Tenho de relatar à Rainha, e devo-lhe a verdade deste caso. No entanto, não poderia fazer isso sem revelar a existência de demónios e do poder imenso que possuem. Até apresentar este facto é... deveria ser o correcto a fazer, no entanto não consigo ignorar este pressentimento. A simples menção disto irá requerer investigação, e serei obrigada a revelar-te como informador. Mesmo que não o faça, será inevitável. Como poderia eu ter sobrevivido a um ataque de tal natureza? E como poderias tu ter sobrevivido? Personagens estranhos do submundo de Londres é uma coisa. Isto são águas simplesmente profundas demais para explorar. Um homem com tamanho conhecimento do oculto, a Rainha exigiria a tua colaboração. E expor-te de tal forma... A tua natureza e a realidade da Morte caminhar por aí, simplesmente não posso... - Claudia suspirou audivelmente - Tenho de escolher entre dois males. Escolher um lado e trair o outro. E que Deus me ajude, não escolhi a minha Rainha.
- Não estás a trair ninguém.
- Estou omitir informação importante da Rainha. Se, quando, esta informação for descoberta noutro momento, sob outras circunstâncias, serei responsabilizada pela minha decisão.
- Explica-lhe exactamente o que me explicaste. Se ela é digna do respeito que lhe dás, poderá não aceitar, mas compreender os teus motivos.
Mas esse era o problema. É perigoso. O que Undertaker sabia sobre governantes e poder por experiência própria, Claudia começara a compreender.
As suas próprias palavras soaram demasiado condescendentes e vazias. Se aquela era a sua forma de fazer Claudia sentir-se melhor, não aprendera nada nas últimas décadas sobre interações humanas ou sobre Claudia. Ou talvez tivesse. Era humano usar tais palavras, embora, e especialmente porque, ambas as partes sabiam o quão vazias eram.
Portanto tinha de assumir o seu papel, ainda que as suas novas palavras fossem baseadas numa verdade obscura.
- Deixa-me aliviar a tua consciência, Claudia. Porque achas que é perigoso um governante descobrir sobre a existência de demónios?
Claudia resfolegou, voltando-lhe as costas.
- Disse o que tinha a dizer. Tenho sítios onde estar. Com a Rainha, para começar
- Respondes-te à pergunta a ti própria. Di-lo em voz alta. Ninguém nos ouve senão os mortos.
- Eu sei a resposta, portanto isto não tem qualquer propósito. Ouvir as palavras não as tornará melhores ou piores. Estás a tentar fazer-me ver que não estão erradas, e est-
- Estás a trair alguém quando a informação que omites poderia alterar o decurso de guerras e da História?
- Não me voltes a interromper. Insistes em-
- O que faria o governante de um país, se soubesse que podia invocar monstros e interagir com seres além da Vida e da Morte?
Ela travou antes de sair pela porta, mas não se virou para ele. Sem uma palavra, retornou o seu caminho. As dobradiças da porta chiaram agudamente quando se fechou.
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As visitas de Claudia diminuíram ao ponto de se passarem vários meses sem ela visitar a funerária. Sempre que certos hóspedes que pudessem ser do seu interesse entravam a seu cuidado, ela enviava Tanaka como seu representante.
Eventualmente, alguns dos hóspedes começaram a formar um padrão, um que deixou Undertaker cada vez mais preocupado, ao ponto de enviar um pedido por Tanaka.
Ela concedeu-lho. Quando sentiu a sua presença aproximar-se, não conseguiu evitar sentir um alívio apesar dos motivos sombrios. Estava determinado a restaurar alguma forma de normalidade e rotina, por mais pequena e insignificante que fosse.
Não era insignificante. Era tudo.
Não preparara uma recepção de caixão, mas sim um frasco de biscoitos aparecendo de subitamente à sua frente no momento em que a porta abriu.
- Isto é novidade. Ainda não me tinhas atirado ossos à cara.
- Hee hee, pelo menos é uma surpresa mais doce, suponho eu~?
Claudia atirou-lhe um olhar mortífero, pescando um biscoito com as pontas dos dedos. - Encantador.
- Passou-se muito tempo, Claudia.
- Tenho estado ocupada. O que me querias mostrar?
A frágil tentativa de Undertaker começou a desmoronar tão rápido. Era tão triste.
- Queria fazer-vos uma pergunta.
- Deve ser importante - retorquiu ela enquanto Undertaker se aproximava da secretária, pousando o jarro de biscoitos no tampo. - E não preciso que a faças. Sim.
Undertaker voltou-se para a encarar.
- Esta última quantidade de corpos foi consideravelmente mais alta que o habitual, mas já andas a reparar há algum tempo. Sim, fui eu que os matei.
Claudia nunca fora pessoa de fingir ignorância. A coincidência de certos corpos serem entregues aos seus cuidados durante as investigações de Claudia rapidamente se revelou não ser coincidência alguma, e esse padrão alertou-o. O caso mais recente fora flagrante do começo ao fim: um culto de satânicos que raptavam e abusavam de crianças, realizando rituais de invocação. Tanaka fora quem recolhera os relatórios das autópsias e a informação que recebera dos seus contactos, portanto Undertaker ainda ajudara efectivamente com a investigação.
Toda a situação fora desagradável e terrível no âmago. Não só pelas vítimas envolvidas, mas pelas circunstâncias das suas mortes. E então, o resultado da investigação de Claudia, que desmantelou a seita - ou talvez uma parte dela - após executar implacavelmente cada um dos treze membros encontrados.
- Gostava de poder dizer que este caso mais recente não é o problema - começou Undertaker. E desejava poder dizer que o maior problema era a natureza do caso: satânicos de uma seita do submundo, que tão casualmente e por acaso despertaram o interesse da Boa Rainha Victoria? Que coincidência. Mas não era. - O facto mantém-se que estes foram apenas mais treze a juntar à lista.
- Já o disse. Sim, matei-os. Aqueles treze pervertidos, aquela mulher na semana passada, aqueles reféns da outra vez, aqueles criminosos, aquele casal, aqueles irmãos, raios, tenho a certeza que te lembras de todos melhor do que eu. Não me digas que fizeste os teus preciosos medalhões de cabelo para todos eles? Não tarda vais deixar de conseguir andar com todos esse peso à volta da cintura.
Undertaker não sorriu nesse momento. Lembrava-se, de facto, de todos eles. - Quantos culpados prendestes nas vossas últimas investigações, Claudia?
- As minhas ordens não incluem agir como uma salvadora de almas, Undertaker. - Ela cortou-o antes de conseguir formar o seu pensamento concreto. - E não tentes. Nem tentes atirar as tuas culpas para a Rainha. As suas ordens não tiveram nada a ver com as minhas acções. A morte é premeditada.
Ele pestanejou. De novo, ela não lhe deu tempo para responder.
- Disseste que costumavas ver pessoas morrer. Como poderias lá estar para o testemunhar se não soubesse antecipadamente?
- Isso é... - Grim Reapers, listas de recolhas de almas e Cinematic Records e tudo o resto, de repente parecia ser tudo demasiado para processar, e demasiado que já devia ter sido explicado.
- Essa é apenas mais uma das verdades deste mundo. Deixa-me aliviar essa preocupação especifica da tua mente e deixar-te bastante espaço para todas as tuas outras centenas de preocupações: eu não contei a Sua Majestade.
- Estou preocupado convosco, primeiro que tudo.
- Tudo isto são cruzes que devo carregar. Todas as tuas verdades, todos aqueles poderes terríveis e informações que podem mudar a História, são todas minha para carregar. Incluindo esta que não me disseste, mas que eu não sou estúpida ao ponto de não ver: A morte é premeditada. Quer seja por ti, por pessoas como tu, ou seja por qual Deus nos governe, as pessoas morrem porque alguém já o decidiu. Por isso não me patronizes. Todas as aquelas pessoas que tenho matado estavam destinadas a morrer, de outra forma não estariam lá, eu não estaria lá. Todas as suas futuras vítimas não morrerão porque está premeditado que eu estarei lá para o impedir que aconteça. Seja qual for o método que eu escolha para as matar não é uma escolha de facto, já está decido. Não estou a mudar nada no teu grande esquema das coisas. É, aparentemente, o meu destino. Mas que poético. - Resfolegou então, amargamente. - É só isso.
Demasiado poder.
- Claudia...
- As nossas conversas têm-se tornado terrivelmente repetitivas, Undertaker. Se isto era tudo o que me querias perguntar, vou-me embora.
- Tenho saudades das nossas conversas. - E daquela tola, pequena e inútil tentativa de restaurar normalidade, Tenho saudades tuas. Porque não conseguia apenas dizê-lo directamente?
Claudia não parecia tão ansiosa quanto ele em restaurar aqueles preciosos momentos. Começou a rodar sobre os calcanhares em direcção à porta.
- Gostarias de beber um chá antes de partires?
- Não. Não estou a trabalhar em nenhum caso agora, e esperam-me em casa.
- Estou a ver. - A sua mão tocou no crânio que deixara na secretária distraidamente. Um par de segundos passou antes de dizer, assim que Claudia estava a segurar a maçaneta: - Compreendo que muito mudou, Claudia. Não importa de quem seja a culpa. Provavelmente, não é de ninguém.
A mão de Claudia moveu-se devagar, os dedos escorregando da maçaneta e caindo junto à anda antes de ela cruzar os braços em vez disso; quase numa teimosia infantil, como se estivesse a ser repreendida por mau comportamento, mas ele conhecia-a bem. Ela sabia a razão para o seu pedido hoje, respondera despreocupadamente, mas ainda assim viera. Estava a ouvir.
- Não desejo abandonar-te e deixar-te sozinha enquanto lidas com tudo isto. Estou cansado que as coisas aconteçam porque estão premeditadas, porque é suposto serem dessa forma. Estou cansado. - Ergueu o rosto para ela, um dos olhos espreitando por detrás da cortina de cabelo. - Sem metáforas ou discursos patronizadores, estou a pedir-te, por favor, para não me afastares. Junta todo o poder que agora tens nas mãos e por favor, não me afastes.
Claudia não se voltou. Undertaker baixou o rosto e assentiu.
- Até lá, Claudia.
- Vemo-nos por aí. - Antes de sair, no entanto, acrescentou: - Mas vou trazer biscoitos, precisas de melhorar a tua receita.
O comentário repentino provocou cócegas amenas no peito e ele viu-se resfolegar secamente.
- Tendes comido os meus biscoitos há anos, sabeis~ - Ela não provou o dela desta vez, no entanto. O biscoito em forma de osso ainda estava na sua mão.
Assim que ele pensou nisso, ela ergueu o biscoito aos lábios e quebrou-o audivelmente entre os dentes. Não passou mais de um segundo a mastigar antes de acrescentar: - Tenho-te feito uma cortesia. São horríveis.
Ela deixou-o a rir como antes, como sempre. Que coisa tão simples, efémera, a felicidade.
Sozinho na sua funerária, roubou um biscoito do jarro ofendido e regressou ao trabalho, a normalidade a regressar lenta mas seguramente. Algumas coisas não eram premeditadas; algumas coisas eram escolhas, e ele escolhida estar com Claudia nisto.
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Não sentiu nada.
Não acordou assustado de um pesadelo. As suas mãos não estacaram de repente nas preparações funerárias da sua hóspede naquele dia. Não houve qualquer ansiedade fantasma, respiração presa ao ponto de dor física. Nenhum arrepio frio sem qualquer brisa que o provocasse, nenhuma sensação de terror. Nenhuma dor penetrante. Se o dia escurecera e a noite caíra para sempre no mundo lá fora, não pressentira qualquer sinal disso.
Nenhum tipo de aviso.
Nada. Alguma coisa que o pudesse permitir mudá-lo antes que acontecesse.
E no entanto ele soube.
Quando a hóspede estava totalmente preparada, lavada, cosida, rosas frescas nos seus dedos gelados, bela e pacífica a dormir no seu caixão à medida, ele soube.
Tinham estado tão afastados nos últimos meses; não era como se aquela última visita fosse remediar as suas rotinas. Portanto, não havia nenhuma reunião marcada, nenhum caso importante sob investigação que justificasse uma visita de trabalho, ou um convite para chá na casa da cidade. Era Verão, o dia deveria estar agradável, convidando a um passeio ou uma discussão de leitura no exterior. Eles tinham sempre tido as suas rotinas pessoais, e os momentos em que estas se entrelaçavam nunca tiveram uma regra fixa.
Tinham todos os motivos para não precisarem de se ver naquele dia, tal como acontecia há meses. E tudo estava bem no dia seguinte, e no noutro, até à próxima vez que se vissem.
E no entanto ele soube.
Quando o dia terminou e não recebeu notícias de Claudia, tal como acontecera em tantos outros dias, ele soube.
Ela não estava segura, a trabalhar nos seus futuros casos, lendo os seus livros, discutindo as suas teorias, ensinando Francis, escrevendo a Vincent, ocupada com rotinas mundanas, ou a descansar e a dormir profundamente na sua cama ao lado do marido após um longo dia.
Eventualmente ela visitá-lo-ia após tais dias, como em tantos outros dias.
E agora não iria.
E quando soube, a sua mão gelou sobre o cadáver. Todo o seu corpo gelou, até o arrepio gelado lhe causar a respiração a falhar. Uma sensação de vertigem entranhou-se na sua cabeça com as tentativas cada vez mais fracas de respirar. Mal conseguiu agarrar o rebordo do caixão, algo apertando a sua garganta e cortando o ar de forma muito mais cruel do que alguma Death Scythe alguma vez faria. Não conseguia respirar. Isto faria sentido num pesadelo, mas estava acordado.
O dia escurecera e a noite caíra para sempre. Nunca mudaria, o tempo nunca mais voltaria a mover-se.
Não podia. Não podia, o tempo não poderia continuar até uma nova madrugada, lavando tudo como se nunca tivesse acontecido.
Não podia.
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Não.
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- Mr Undertaker! - A surpresa de Tanaka reflectiu a urgência que Undertaker emanava. - Aconteceu algo? Lady Claudia não-
- Onde está ela?
- Saiu há horas. Houve um desenvolvimento repentino num caso...
- A Claudia não tem nenhum caso.
- Não era nada grave. Eu próprio a assisti com as conversações com o Yard. O que... - A confusão mas urgência na voz do homem estava em conflito com a sua tentativa de processar os eventos na totalidade, porque razão estavam a discutir este assunto na ombreira da mansão, que informação era relevante naquele momento, e porque razão estava Undertaker ali para começar. Mas o homem não era mordomo de Claudia sem motivo. Os seus olhos arregalaram-se e qualquer vestígio de sangue desapareceu do seu rosto imediatamente antes de a sua postura se alterar. - O que precisa, Undertaker?
- Onde é que ela foi?
- Saiu com dois criados. O Assassino da Rota de Seda escapou de cativeiro e massacrou três oficiais da polícia. Lady Claudia recebeu ordens imediatas para o recapturar.
Era irrelevante saber quem era o Assassino da Rota de Seda. O caso não era nada grave, não grave o suficiente para requerer a assistência dele nem grave o suficiente para as vítimas terem chegado aos seus cuidados, ou para sequer ter ouvido um único sussurro sobre o nome do homem. Apesar disso a fuga do homem requeria acção imediata. A Rainha de Inglaterra soubera da fuga de um criminoso não importante naquele mesmo dia e ordenara que o Cão de Guarda agisse de imediato.
- Onde é que ela foi?
- Docas Oeste, na Isle of Dogs.
Tão perto. East End. Estivera tão perto.
- Eu irei-
Não ficou a ouvir o homem. Voltou-se e desapareceu da frente da mansão dos Phantomhive, reaparecendo a quilómetros de distância nas Docas da Índia Oeste. Não podia nem teria trazido o mordomo consigo, não quando um corpo humano não conseguiria resistir à habilidade de um Grim Reaper. Nem se importava com o facto de ter acabado de revelar a sua natureza ao homem. Nenhum desses pensamentos lhe atravessou a mente.
Não havia lua. Em vez disso, milhares de estrelas atolhavam o céu, os escassos candeeiros a óleo iluminando assombrosamente as docas através da neblina da noite. Era inquietante, e gritava perigo, terror e dor.
Nenhum destes medos que humanos sentiriam num lugar assim lhe assolava a mente. Tinha apenas um, e recusava-se a acreditar nele.
Com cuidado para ouvir qualquer sinal de vida, qualquer rasto de humanos por perto, atravessou a doca. O som ecoou uma e outra vez, passo atrás de passo. O próprio ar estava impregnado e pesado com todos os fedores doentios com que os East Enders tinham de sobreviver. Ratos correram pelas laterais de armazéns, guinchos baixos. A água agitou-se e raspou contra os portos, como sussurros na noite.
Não havia uma alma nas docas. Nem contrabandistas, nem trabalhadores nocturnos, ladrões ou crianças esfomeadas.
Como podia não haver ninguém num sítio como este?
Os passos revibraram suavemente pelo ar. Parecia tudo tão óbvio, tão claramente perfeito para uma armadilha, uma emboscada baseada no mais simples e eficiente dos defeitos: emoção cega. Lealdade.
Amor.
Mas ninguém o tinha a ele sob mira. A armadilha não lhe era destinada a ele. Ninguém o esperava aqui.
Os seus pés guiaram-no por vontade própria por uma fileira aparentemente infindável de armazéns sujos e desgastados até ao correcto, precisamente o último; como se alguma parte de si soubesse, guiada por aquele fio invisível que o atraía como uma melodia familiar. Como se ele conseguisse sentir exactamente para onde ir. Sentir agora que acabara.
A porta aberta do armazém erguia-se agora em frente de Undertaker. A janela ao seu lado fora quebrada. A porta assemelhava-se a uma boca de escuridão, onde raios de luz do candeeiro a óleo na esquina da rua trespassavam por uma fileira de janelas do lado do prédio.
Uma das janelas lançava luz sobre um monte no chão.
Ele viu-o. Se tentasse, conseguia discernir outra forma escura mais perto da porta, embrenhada naquela escuridão. Mas não havia necessidade.
Uma parte estranha, distante, sua estava grata por os seus olhos já não serem fiáveis. Essa parte foi amordaçada e sufocada pelo medo que queria evitar com cada milímetro do seu ser.
Também não havia uma alma no interior. Nenhum polícia. Nenhum criminoso. Nenhum bando de transeuntes inúteis que se amontoavam para apreço de violência e morte, mas um bando de pessoas nunca ali teria chegado para começar. Isto não era um homicídio de rua, um reles assalto, um terrível infortúnio de alguma pobre alma que se arrastava na sua vida dolorosa e que encontrara um fim horrível.
Isto fora deliberado. Planeado, tivesse ou não sido de forma simples e impávida, e executado. Premeditado. O fedor a sujidade e pó estagnado desapareceu sob o cheiro metálico que impregnava o ar, tornando-o pesado ao ponto de forçar o vómito.
Era demasiado familiar.
O primeiro que Undertaker viu foi o homem. O empregado que uma vez lhe entregara uma mensagem na sua funerária, há tantos anos, e que lhe fornecera tantas gargalhadas altas e alegres devido ao susto que Undertaker lhe pregara. Tão jovem na altura, mas quase duas décadas depois, amadurecera num servo de confiança sob as ordens de Claudia. Era o mesmo homem que estivera na fábrica subterrânea, o pobre homem que carregara a pilha de documentos de Undertaker. O homem estava agora caído de lado, olhos esbugalhados, cegos, a boca aberta, uma poça de sangue escuro e entranhas derramadas do seu abdómen dilacerado.
O mundo ficou lentamente suspenso ao seu redor, o mais ténue dos sons desvanecendo num zumbido, o ar já sem estar pesado, o fedor já sem incomodar. Já não precisando de oxigénio para respirar. Avançou, o corpo leve, a mente vazia.
Havia outro corpo ali perto. Um estranho; um cúmplice, os punhos da camisa manchados de sangue e a faca caída junto da sua mão. Outro cúmplice, um monte escuro do seu lado esquerdo estava dobrado atrás de uma barricada que claramente não cumprira o seu propósito. Mal reparou noutro corpo caído contra a parede à direita, escondido por entre as sombras e longe da luz que irradiava da porta. Uma única gota de sangue pingou sinistramente para uma poça; seguindo o som, encontrou outro homem num piso superior, o seu ponto de vantagem descoberto e agora jazendo com o braço pendurado na ponta.
O próximo estava alguns metros à frente, a empregada, mais um rosto familiar coberto de fios de cabelo, que os ajudara tão recentemente no caso do demónio. Iluminada de forma assombrosa pela luz do candeeiro a óleo que trespassava uma janela gordurosa como uma visão de um pesadelo. O resultado real, acordado, era um corpo caído de cara para baixo como lixo descartado. Todo o sangue nela parecia envelhecido, o vermelho diluido de alguma forma a castanho sob a luz, rastos tingido o branco sépia do seu uniforme vindos de incontáveis ferimentos de balas. Alvejada pelas costas muito mais vezes do que as necessárias para a matar.
O seu corpo continuou a mover-se contra sua vontade. Nesta realidade suspensa e abrandada, o seu cérebro já não tinha controlo sobre as pernas. Sobre os olhos, que se elevaram da criada para a escuridão que se seguida, o trilho de corpos que o guiava de forma tão clara para o desfecho.
Os raios de luz que cortavam pela janela seguinte não a alcançavam. Em vez disso, lançavam uma luz queimada, amarelada, sombras difusas sobre a forma escura, o corp- a pessoa caída à sua frente.
A suspensão do mundo desapareceu e tudo desmoronou.
Os joelhos cederam sob si. A dor física seria uma carícia, caso ele fosse capaz de sentir o corpo naquele segundo. Talvez isso fosse uma bênção, como naquele único momento, não sentiu nada. Não havia nada.
A poça negra brilhava ligeiramente. Fios escuros de cabelo destacavam-se de forma estranha sob a meia luz, mergulhados no sangue como raízes de uma imagem saída de algum pesadelo. O corpo de Undertaker rastejou por aquele pesadelo, de alguma forma. As mãos primeiro escorregaram, depois arranharam a poça escura, joelhos e roupas a ensoparem, cabelo prateado caindo sobre o dela agora molhado e tingido de negro. As mãos dela estavam encharcadas como as dele, caídas ao lado dela, uma tão perto do rosto. Colocou a mão sob a nuca dela, pesada e mergulhada em sangue ainda morno, levantando a sua cabeça do chão. Deslizou e entranhou-se na sua manga, até à pele do braço. Uma madeixa de cabelo caíra sobre o rosto dela, atravessando a face e os olhos. Lentamente, afastou-a para o lado, manchando sem querer o seu rosto com mais sangue. Os olhos azuis estavam escuros, frios e cegos, longe da luz que lhes teria dado a cor e a vida que tinham.
Ficou ali, a segurá-la daquela forma. Completamente imóvel, dolorosamente imóvel.
Ela morrera.
Claudia m-
Isto não pode ser real.
A alma dela desaparecera. O Grim Reaper que a viera buscar desaparecera. Já não havia ninguém.
Ela morrera.
O Assassino da Rota de Seda tinha dois cúmplices também. A cara do homem estava obscurecida por uma boina preta, e a sua nítida pressa frenética estava a stressar os capangas.
- Vamos fazer isto depressa, já! - sibilou o homem por dentes cerrados.
O grupo entrou no armazém, os capangas inspeccionando rapidamente as redondezas antes de o seguirem para dentro.
- Victor, cobre as docas. Pode haver mais homens escondidos. Alice, comigo.
- Yes, my lady.
Aproximaram-se do armazém; a porta fora deixada entreaberta. Ambas mulheres espreitaram pela janela mais próxima, apanhando movimento no interior. Os homens pareciam estar a transportar algum tipo de carga, falando em vozes abafadas. Estavam com pressa, compreensivelmente, mas não por terem sido alertados. Não suspeitavam que Claudia agisse e descobrisse a sua rota de fuga pelas docas em tão pouco tempo após a fuga da prisão.
Fez sinal à empregada. Os homens tinham as mãos ocupadas com as caixas, e o Assassino (qual era mesmo o raio do nome do homem? Ela não se lembrava, os seus delírios de grandeza e a sua alcunha autoatribuída tinham acabado por ser tal performance vazia que ela mal se dignara a lembrar muito do homem para além dos gritos dele antes de ser preso pelo Yard, que chegara na altura. Não estaria vivo se não fosse isso.) aparentava ser a única ameaça; isto se conseguisse alcançar a sua arma. Seriam alvos fáceis para um ataque surpresa; não deveriam ter muitos problemas.
Não pareciam haver mais pessoas no interior, mas a luz fraca poderia trair a contagem. Fez sinal a Victor para que ficasse junto à janela no exterior e abatesse qualquer possível apoio que pudesse surgir quando começasse o tiroteio.
Claudia atirou com a porta, ajoelhando-se num único movimento fluído enquanto Alice se erguia atrás de si, armas prontas e apontadas. Um dos capangas perto do Assassino berrou quando o tiro lhe trespassou a omoplata. Os outros dois reagiram de imediato, voando para direcções opostas e escondendo-se atrás de coixotes ali perto sob fogo de Alice. O homem ferido levantou uma pistola mas foi abatido antes de poder disparar; o tiro de Victor quebrou o vidro e atingiu o capanga na testa, atirando-o ao chão como uma pesada boneca de pano.
Claudia e Alice depressa encontraram refúgios para si, precisamente quando tiros foram disparados para os locais onde antes estavam. Claudia correu para a segurança de um caixote perto do lado direito da porta, apoiando as costas contra a madeira. Preparou a arma enquanto os olhos se voltavam para a porta, amaldiçoando-se por provavelmente se encadear durante uns segundos, e aguardou por uma pausa entre os disparos do lado do Assassino para espreitar pela lateral e abater os restantes capangas que estivessem sob alcance.
Foi então que viu o movimento nas sombras mesmo à sua frente e o seu coração falhou uma batida. O braço moveu-se puramente em reflexo e ela disparou na direcção da parede, mas mesmo com o rugido denunciante, o capanga escondido disparou a sua pistola antes de morrer. Claudia foi atirada contra o caixote e o ar foi chutado para fora dos pulmões, um grunhido de dor escapando dos seus lábios.
Do seu posto, Alice foi imediatamente alertada pelo tumulto, mas ao gritar pela sua senhora, um disparo explodiu pelo topo do caixote de madeira, mais alto do que qualquer um dos dois homens poderia ter disparado das suas localizações. A bala raspou a cabeça da empregada, falhando o seu crânio apenas por um centímetro. A mulher escondeu-se e foi forçada a uma posição de desequilíbrio que a impediu de identificar a localização elevada do atacante, uma segunda ronda de tiros começando do seu lado; mais um atirador?! Quantos eram?
Do seu posto, Victor apercebeu-se da armadilha e conseguiu abater o homem que se escondera no piso superior após alguns tiros. Inspeccionou o andar que aparentara estar vazio antes, certificando-se que estava agora completamente livre antes de tentar alvejar o Assassino quando o homem disparou, o braço esticado sobre a sua barricada. O capanga mais perto do Assassino disparou continuamente contra a janela, forçando Victor a retirar antes de conseguir disparar.
Claudia pressionou a mão com força contra o lado do tronco, tentando estancar o sangue que teimosamente por entre os seus dedos. Não teve tempo de ver quão grave era o ferimento. Olhou para cima e para a direita, tentando ver se Alice estava ferida ou morta, tiros ainda a voar e rapidamente forçando os homens a recarregar. Quando os seus olhos voltaram a passar pela porta, viu Victor entrar, movendo-se na direcção de Alice para a substituir e permitir que Alice avançasse. No momento em que Claudia reparou, era demasiado tarde; não conseguiu erguer a sua arma para disparar. Tal como houvera um homem escondido contra a parede do seu lado, havia um do lado de Alice também; a empregada não o conseguira ver com os tiros de cima que a tinham distraído. O homem apanhou Victor pela cintura; a facada foi tão brutal que Claudia conseguiu ouvir a lâmina rasgar a carne. Sangue escuro pulverizou o chão quando o capanga esventrou o seu empregado como se não fosse nada. O grunhido moribundo de Victor foi abafado pelos tiros de Alice que mataram o assassino pelas costas; Victor caiu de joelhos e sobre o ombro, o corpo estremecendo por um horrível momento antes de ficar imóvel.
- O Cão de Guarda vem à Ilha dos Cães de novo, hã? - O Assassino aproveitou o momento para clamar do seu lado. - Que poético, hã? Como vos sentis, sabendo que os vossos servos vão morrer p'a vos proteger?
Para alguém que já perdera quatro homens, ele estava estupidamente alegre. Mas porque estavam ali os homens, para começar? Quantos mais? Como é que eles podiam ter descoberto? Victor...
- Tenho-vos esperado, Condessa - continuou o Assassino, cuspindo alto o suficiente para ressoar pelo armazém. Alice disparou na sua direcção, mas a mira falhou e pedaços de madeira voaram em vez disso. - Sois bem rápida, hã?! 'Tava à vossa espera amanhã à noite, mas trocas e baldrocas, e chega-me aos ouvidos que vos moveis hoje?! Não me podeis deixar respirar ar fresco muito tempo, pois não?
Claudia tentou contar e pensar sem ouvir as palavras do homem; o Assassino e o primeiro capanga. Esses dois ainda estavam vivos de certeza. Havia ainda um terceiro criminoso, um que ela ainda não vira mas que disparara a Alice pelo flanco. Três alvos.
- Nariz demasiado empinado, n'é?! Achastes que isto seria um banquete, não vos irieis preocupar muito, pois não? Esse é vosso problema, sua cabra. Demasiado convencida, caralho!
Alice disparou dois tiros na direcção do homem, cobrindo Claudia que cerrou os dentes em frustração e se levantou apesar de o corpo gritar contra ela, disparando contra o capanga cuja localização sabia; do lado oposto do Assassino. Viu a cabeça dele espreitar por detrás da sua barricada e falhou por um triz. Deslizou para um caixote mais à frente e mais perto do Assassino, sentindo o assobio de uma bala passar junto da sua cabeça. A oportunidade não foi perdida por Alice, que conseguiu identificar o terceiro atirador; o homem gritou e o seu corpo caiu com um baque pesado.
O Assassino tentou disparar contra Alice e Claudia, grunhido audivelmente e caindo atrás da sua barricada.
- Não houve um único dia naquela cela que não tenha planeado isto. Cada suborno, cada contacto, garantindo a minha fuga e garantindo que vos apanharia quando saísse... Mas não vos podia apanhar no vosso território, pois não? Tinhas de vir a mim. Ainda bem que vos tinha mandado seguir! Só agilizastes o vosso fim! Quase vos posso agradecer!
A respiração de Claudia chiou quando pressionou a ferida de lado, ainda a agarrar a arma firmemente. Como é que o homem a poderia ter seguido? Ela teria reparado... Raios partam tudo. Tinha de recarregar, mas estava perto, talvez já ao alcance.
- Sabeis, isto mostra que eu sou o melhor de nós os dois - continuou o homem a vangloriar-se. - Os meus homens têm-vos mantido sob vigilância há dias, a preparar a minha fuga. Podia tê-los mandado matar a vossa linda filha ou o vosso nobre marido. Devia tê-lo feito, sua cabra, devia ter-vos feito vê-los esvaírem-se em sangue à vossa frente para saberes o que me fizestes passar! Não precisáveis de os ter morto! A minha mulher rendeu-se!
Alice devia ter-se aproximado mais também, a julgar pelos tiros que começaram a rugir à volta deles. O homem ainda gritava depois: - Matastes-os aos dois! Eu tinha-me rendido! Eu tinha-me rendido e matastes-os à mesma! O meu irmão não tinha nada a ver com aquilo! Ele só carregava a mercadoria, ele não devia ter morrido!
Claudia estava a recarregar a arma, o punho escorregadio pelo sangue e os dentes cerrados de frustração com mais força. Felizmente o discurso do homem arranjara-lhe mais tempo para isso.
- Mas também, ainda tenho tempo. Ainda é vingança se morreres sabendo que vou matar a vossa família depois de vos matar. Isso será-
Claudia atirou-se ao chão e torceu o corpo de lado, apontando ao homem, que não conseguiu apanhar a sua posição tão depressa. A sua bala atingiu carne e Claudia deslizou de volta à barricada sob o urro de dor do homem e uma onda de disparos que tentaram atingi-la a ela ou a Alice. O caos reinou durante alguns segundos infinitos, gritos de 'Ela acertou-me! A cabra acertou-me! Matem-na! Matem-nas às duas!' enquanto os dois homens restantes corriam de barricada em barricada. Claudia espreitou para ver o Assassino tentar fugir pela porta, agora deixada desprotegida por Alice. O seu capanga estava escondido longe de vista, para o cobrir.
Claudia cerrou os dentes e levantou-se, apontando a arma mais alto e removendo a mão do ferimento aberto para fazer pontaria à nuca do homem.
- My lady! - gritou a empregada quando Claudia erguera ambas as mãos para segurar a arma. Uma bala trespassou as costas da criada e despedaçou-lhe a costela, o impacto quase desequilibrando a mulher, e num instante o seu olhar chocado caiu sobre a frente do seu uniforme. A bala não saíra. Se a ausência de sangue a tranquilizou ou se um último ímpeto de adrenalina a tomou, ela levantou a arma, mas não para o homem que a alvejara. Apontou-a a Claudia.
O sangue de Claudia gelou e ela reagiu de imediato. Quando a empregada foi impiedosamente abatida antes de conseguir disparar, Claudia girou sobre os calcanhares, mas o seu braço foi agarrado com força pela pessoa atrás de si.
Os seus reflexos foram dignos de louvor. Incapaz de se virar e encarar o novo oponente, ela torceu o pulso e disparou à queima-roupa para trás, o tiro rebentando-lhe o tímpano. Mesmo com a dor evidente, ela tentou um segundo disparo antes de lhe partirem o pulso com um puxão cruel. O responsável moveu a mão livre, empunhando algo brilhante, primeiro contra o lado do tórax, enterrando-a profundamente e arrancando-a para fora, indiferente ao grunhido de dor que lhe provocou, o corpo dela dobrando-se para a frente em reflexo. Então tomou a distracção intencional para a prender sob o queixo de Claudia, puxando-a para cima.
O golpe foi rápido. Quase misericordioso, nalguma realidade distorcida que não esta. Um único movimento, cortando profundamente, deliberadamente.
Claudia arquejou. A pistola caiu da sua mão, o pulso ainda preso, e a outra mão voou para o golpe, o sangue escapando pelos seus dedos sem ela poder fazer nada. Estava a sufocar, e ao tossir por ar, só sangue saiu, vertendo pela sua boca em torrentes. O aperto forte no seu pulso desapareceu e os joelhos cederam sob ela, o corpo caindo para trás. O cabelo solto derramou-se no chão, ficando rapidamente ensopado e pesado pela poça que se derramava sob ele. O pânico instalou-se quando a onda de sangue não parava, o peito tremeu, os seus arquejos asfixiados e desesperados o único som que agora ecoava no armazém após o tiroteio ter cessado, os criminosos silenciosos na sua própria confusão ou descrença de como tudo acabara. Ela ainda tentou estancar o sangue, o golpe esticando horrivelmente quando ela se debateu para virar a cabeça, para encontrar a pessoa que deveria estar erguida sob ela em vitória, que deveria estar algures por perto, em algum sítio onde Undertaker o pudesse ver sob a luz do candeeiro que emanava pela janela mesmo atrás deles, mas não estava. Lentamente, os espasmos começaram a suavizar. Os seus dedos escorregaram e deslizaram sobre o seu ombro, a mão caindo ao lado do rosto. Ela pensou nos filhos naquele momento. Os seus olhos estavam cobertos por uma madeixa de cabelo caída sobre o seu rosto, mas que não escondeu como ficaram desfocados, ou o momento em que perderam a sua luz.
... o Cinematic Record chegou ao FIM.
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Eventualmente, forçou-se a levantar-se. Mal conseguiu caminhar na direcção da empregada caída a três metros de distância e golpeou um dos ferimentos de bala, observando a sua vida de forma indiferente, as suas dificuldades e conquistas, até estas docas, este armazém, a sua pequena Claudia de pé a três metros de distância, viva, ferida, a lutar. Quando a primeira bala atingiu a empregada, a mulher apoiou-se no seu treino, na sua vontade de viver, nas suas ordens para salvar a sua senhora da ameaça que ela não via. Mas a empregada sim. Encadeada pela luz que vertia assombrosamente sobre ela, ela viu-o, a forma atrás da sua senhora, o cobarde que se aproximava pela escuridão. Uma sombra, brilhando quando um raio de luz tocou numa fracção de roupas brancas tornadas num sépia envelhecido pela noite. E as suas memórias acabaram com a morte do corpo.
Um flash de branco. Era tudo o que tinha da pessoa que matara a sua razão para sorrir.
O resto da noite decorreu para ele como um filme distante. Talvez alguém um dia o fosse ver no seu próprio Cinematic Record. Ele não viu nem registou nada.
Tanaka chegou a certa altura, tal como mais empregados e o Scotland Yard. As palavras emocionadas ressoaram em alguém, mas não nele. As palavras que ele próprio falou não alcançaram os seus ouvidos; Francis e Cedric podiam estar em perigo. Não sabia se os servos o tinham ouvido.
Queriam levar Claudia. Uma mão tocou-lhe no ombro, levemente, com compaixão. Tudo o que sentiu foi um peso. Tanaka. Mais ninguém se atreveria a aproximar-se. A expressão do mordomo foi ignorada, não se dignou a levantar os olhos ao homem. Uma mão baixou-se sobre o rosto de Claudia, e ele travou-a com uma simples palavra. Tanaka estacou por um momento, mas os dedos do homem ainda caíram sobre os olhos dela, bloqueando-os de vista, movendo-se suavemente e escondendo-os para sempre.
Tanaka queria levá-los. Uma outra palavra simples parou o mordomo.
Ele levou-a. Os empregados, assim como os criminosos, tiveram de ser transportados com a ajuda do Yard, mas foi ele que a levou. Ele era o Undertaker. Era o seu trabalho humano. Aquele que teria elegido por associação, mas que ele aceitara pelas memórias de Claudia.
A madrugada não se atreveu a irromper antes de ele chegar à funerária. Por uma vez, pela última, concedeu-lhe essa paz.
Os dois empregados foram pousados nas mesas ao fundo. Seriam tratados como todos os seus hóspedes. O caixão da hóspede que estivera no centro da mesa, abandonado horas atrás, foi recolocado ao fundo, contrastando dolorosamente nas suas vestes e flores frescas contra os corpos massacrados e ensanguentados que teriam de aguardar para entrar na câmara. Os criminosos foram atirados para o chão de outra câmara; eles também necessitariam de cuidados, em breve, mas ele não os queria por perto agora.
O procedimento era sempre o mesmo. Água, panos, esponjas, agulhas, linha, óleo de embalsamamento, escova de cabelo, vestes limpas, flores.
Desde o primeiro momento, foi diferente. O sangue que pingava das suas mangas e das suas mãos manchou a água limpa, fazendo-o aperceber-se que não poderia tratar de nenhum hóspede daquela forma. Vários fios prateados do seu cabelo molhado tinham secado em coágulos de sangue. As mãos estavam cobertas com uma camada tão grossa de sangue que não conseguia ver a cor da pele. Tinha de tratar de si primeiro se queria trabalhar. Não se lembrava de alguma vez se ter movido tão lentamente, de forma tão suspensa, como se flutuasse.
Se afogasse.
As roupas foram queimadas. O lençol branco pousado sobre ela tornou-se escuro e húmido. A esponja mais suave disponível limpou o seu rosto, as suas faces, lábios, queixo, maxilar, nuca. Todo o sangue desapareceu, deixando os ferimentos expostos e escuros. Queixo gentilmente erguido. Pele esticada, puxada pela linha e lentamente unida de novo, suturas perfeitas. Bala retirada da costela, embrulhada em pele e osso, golpe de faca cosido e selado até poder ser confundido com uma costela pressionando gentilmente contra a sua pele. Todos os vestígios de sujidade sob as suas unhas desapareceram. Bacia após bacia foi cheia e voltada a encher, o seu cabelo ondulando gentilmente sob a superfície. Não reparou quando substituiu a água por desinfectante.
Ele sentiu a presença mesmo antes de a porta da funerária se abrir e fechar. Os passos foram respeituosamente imperturbáveis, e saíram rapidamente. Tanaka, deixando três conjuntos de roupas para enterro.
O resto do processo era mecânico; a mente dele estava distante, o corpo movendo-se sozinho de novo enquanto perfurava a pele sob o braço dela com cuidado e observava o sangue ser drenado do corpo. Substituiu-o com uma mistura de químicos e óleos que preparara. Seguiu com incisões minuciosas, pontos estratégicos para drenar os seus órgãos e encher o peito com afinco com mais da sua mistura para que a hóspede pudesse ficar bela.
Não olhou para o rosto dela nesse momento. Quando o fez (pois a hóspede precisava ser penteada e maquilhada), o peso afundou-se sobre ele e forçou-o de volta ao que isto realmente era.
O cabelo húmido secou num halo azul acinzentado em torno da sua cabeça enquanto ele enlaçava óleos de fragâncias. O vestido era preto; ficava-lhe bem, realçava a sua pele, maquilhada e menos pálida agora.
A sua pele estava tão fria.
Undertaker parou. Ela estava quase pronta, mas o cabelo não estava bem ainda. Não estava como ela gostaria. Devagar, como se receasse perturbá-la - como se não tivesse passado a última hora a prepará-la - os dedos deslizaram pelas madeixas de cabelo acetinado. Entrançou dois conjuntos de cabelo, um para ela e um para ele, emoldurando e caindo sobre os ombros delicadamente. Estava ligeiramente melhor agora.
Então pegou na tesoura.
Ela tê-lo-ia provavelmente fulminado com o olhar e afastado a mão com uma bofetada, dizendo que era inapropriado negligenciar o espaço pessoal ou algo do género. O som que ele fez foi tão familiar. e no entanto agora tão estranho, mas antes que pudesse evitar, estava a rir e a sorrir só pelo pensamento. Conseguia ouvir a voz ríspida de Claudia dizendo aquelas palavras, aquela expressão hilariante no seu rosto e aquele pequeno sorriso maldoso ao virar-lhe as costas, simultaneamente um sinal para não desobedecer à sua ordem mas agradada pelo carinho demonstrado.
O sorriso esmoreceu quando o seu lábio tremeu, desmoronando sob o peso do mundo. A tesoura embateu agudamente no chão
Sorrir não o aliviava. Magoava-o mais.
Sem pensar, removeu a mão do cabelo dela e tocou-lhe nos ombros, prendendo-a de ambos os lados do peito e puxando-a para si. A cabeça ainda caiu para trás como uma boneca, como se estivesse a dormir, ainda que aquele golpe na garganta nunca pudesse enganar os seus desejos mais profundos, antes de cair contra o ombro dele. E ironicamente, naquele momento apercebeu-se que nunca a segurara nos braços, tocara as suas mãos ou o seu cabelo antes deste dia. Todos estes anos, missões infiltradas, horas incontáveis de conversas, sessões de chá e gargalhadas partilhadas... nunca. Como que para reforçar esse facto, a sua mente trouxe a suavidade dos dedos dela quando tão destemida lhe relevara o rosto e a natureza enquanto jovem mulher, e em vez de tremer ou recuar, rodopiou-o como uma boneca num salão de cabeleireiro de criança. O seu rosto hilariante na sessão de alfaiataria do seu casamento, agarrando-lhe no pulso e puxando-o para o que ela descrevera como sendo o seu Inferno mas que não fora nada do género para ele. Aquele maldito fim do ano, quando ela o ajudara com os seus ferimentos, com cuidado para não o magoar.
Nunca lhe tocara até ela ter desaparecido.
Nada daquilo o fez sentir melhor. Nem a memória dela há dias, nem há anos, nem a visão do seu Cinematic Record, nem quando ela era adolescente a brincar com o cabelo dele, nem quando era uma criança disfarçada, nem quando era uma bebé, sorrindo para-
Puxando-a, apertando-a tão dolorosamente contra si, tentou aplacar aquilo de qualquer maneira que conseguisse. Se a tivesse segurado desta forma quando ela era uma criança, uma bebé... tão pequena e... se a tivesse segurado há dias atrás, ou naquele horrível fim do ano... Ela não passara o Natal com a família, nem participara de todas as reuniões sociais que deveria no final do ano, todas aquelas superstições tolas sobre boa sorte.
O esforço e força com que a puxava queimou-lhe os músculos dos braços, do peito, a caixa torácica perfurando o seu coração e pulmões, mas ela não o sentiu, não quando ele a magoava para aliviar a sua dor nela, não quando ele se magoava a si próprio para forçar as suas feridas e a morte para dentro dele.
Ele não devia estar vivo. Eu não devia estar vivo, matei-me para que isto, esta dor, desaparecesse, para sempre e eles tinham-no forçado a viver. Não queria estar vivo. E quando encontrara uma razão para estar vivo, a única razão, não conseguia fazer o que precisava e o que estava certo.
A vida dele não lhe pertencia. Deixara de lhe pertencer quando a terminara. Estava vivo por ela, e agora não podia devolver-lhe o que pertencia a ela desde o começo.
Oh, a ironia da vida.
A morte é premeditada.
Não.
Estou cansado que as coisas aconteçam porque estão premeditadas.
Sufocando, afogando-se e morrendo, Undertaker enterrou o rosto no cabelo de Claudia para parar de respirar de vez, e quando não conseguiu, gritou. Não conseguiu um segundo grito antes de a sua voz sufocar e se afogar e ele se desfazer em lágrimas.
Ninguém o ouviu senão os mortos.
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continua
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Nota: Comecei a escrever este capítulo entre 13 e 14 de Novembro de 2017, que são datas dolorosas para mim. Só me apercebi disso umas horas depois de ter começado a escrever, e que o tema do capítulo estava ironicamente ligado à data, e tentei escrever tudo de uma vez. Claro que sou uma idiota. Passei 10 horas a escrever, e não o acabei.
O primeiro esboço do capítulo que já estava totalmente escrito e revisto tinha uma iluminação diferente durante a cena da Claudia - lua cheia. Decidi espreitar só por curiosidade a fase da lua a 13 de Julho de 1866 e era uma porra de uma lua nova. Por isso tive de mudar tudo. Como imagino as coisas na minha cabeça como um filme, acho que a luz amarela dos candeeiros a óleo na verdade dá um ar ainda mais haunting a tudo do que a luz pálida da lua cheia. Também li umas quantas coisas sobre embalsamamento, mas não sabia bem como o incluir.
Agora na tradução, esforcei-me para publicar o capítulo dia 5 de Setembro de 2021.
Destaque para as músicas principais quer na escrita quer na tradução, 'Never Go Back' e 'End of the Dream' dos Evanescence, tal como versões do 'Imperfection'.
Apesar do nome do capítulo, isto ainda não é o fim do fic.
Obrigada por lerem.
