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1886
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- Undertaker! Estás aqui?
Conhecia aquela voz.
Undertaker não estava escondido num dos seus caixões. Já se tinham passado dois meses desde a última vez que o fizera.
Três meses.
Um ano?
Vinte anos?
(Já se tinham mesmo passado vinte anos desde que...?)
Há quanto tempo fora? Talvez ainda há mais. Perdera a noção do tempo. Perde-se a noção do tempo quando estamos aborrecidos ou empenhados.
E quando estamos sozinhos.
O anúncio do recém-chegado alcançou-o ligeiramente abafado. Uma batida de coração falhada. Sentira pessoas a aproximar-se da funerária, a mudança no ar quando a porta de abriu e as dobradiças de metal chiaram. Lentamente, terminou de colocar a venda sobre o rosto em decomposição da jovem. Uma madeixa rebelde de cabelo foi penteada de volta ao sítio, emoldurando a pele que lembrava cera. Conseguia sentir a presença, a aura familiar, mesmo do outro lado da parede. Uma aura viva, a respirar, por fim. Finalmente.
E no entanto...
A diversão que era sua imagem de marca ainda não estava a construir a máscara sorridente, mas conseguia senti-la rastejar lentamente de novo para o seu rosto a cada passo que dava em direcção à entrada da funerária. Todos tinham os seus papéis a representar, e ninguém queria falhar. Ele incluído.
O visitante estava de pé no meio da funerária, não aparentando estar nem agradado nem com paciência, os contornos da sua figura desfocada destacados pelos tons quentes das velas. O visitante sentira movimento, e voltara-se em direcção da porta. O azul no seu rosto não devia sobressair daquela forma sob a luz ténue e escuridão, mas sobressaía. O olhar azul vacilou naquele mútuo reconhecimento. Undertaker sentiu o instante de hesitação do rapaz no seu papel, o único momento em que alguma vez sentiria a frágil mentira. Undertaker nunca veria essa hesitação como uma falha de representação. Ele fez um muito bom papel, muito melhor do que qualquer criança deveria ter de fazer.
Um papel bom o suficiente para solidificar a frágil mentira numa peça imersiva.
Podiam ter sido idênticos, mas eram diferentes em tudo o resto. Sempre fora imensamente fácil distinguir os gémeos por essa razão. Este rapaz não era aquele que todos tinham recebido; aquele que ele se apresentara como sendo.
...Também já não era o rapaz inocente que antes fora.
Nem o rapaz nem o seu irmão tinham entrado aqui antes. Parecia simultaneamente deslocado, e no entanto tão familiar. Como se fosse suposto e destinado a ser assim, apenas mais um dia naquela relação única, mórbida e perfeita. Aquela família estava destinada a entrar neste lugar e pedir a ajuda de Undertaker, tal como o seu pai antes dele, tal com a sua avó antes deles.
E no entanto...
Parecia tão novo. Tão frio, severo, resiliente. Saído do Inferno e de regresso ao mundo.
Ciel.
Ou antes...
Esse era o objectivo, não era?
Um Não-Ciel forjando um novo Ciel.
Consegues ouvi-lo, Ciel? O teu irmão regressou.
Undertaker sorriu.
- Pequeno Phantomhive~ Regressado dos mortos.
O rapaz resfolegou. - Isso seria problemático. Os desgraçados não me conseguiram matar.
Os efeitos físicos, visíveis, dos eventos estavam a começar a desvanecer do seu pequeno corpo. As verdadeiras cicatrizes estavam profundamente cravadas sob a pele, mas pelo menos a aparência estava a sarar. O crânio do rapaz já não tentava perfurar a pele, as suas faces tinham recuperado carne, o cabelo estava lavado e perfeitamente aparado.
Ele sabia. Vira a imagem espelhada, morta. Aquele que não estava a sarar e a respirar.
Ainda.
Mesmo as suas vestes nobres estavam lentamente a ajustar-se no seu pequeno porte. Ainda pareciam erradas, no entanto. Demasiado adultas para ele, demasiado responsáveis para uma criança que estivera tão ansiosa para brincar com o seu irmão, tão ansiosa por mais uma história à hora do chá, sonhando com doces e brinquedos; Vincent contara-lhe esse sonho de carreira. As olheiras escuras e pesadas sob os olhos ainda mostravam um vislumbre daquele Inferno que-
Não. Sob um olho. A pesada olheira de noites sem sono faziam aquele olho azul brilhante sobressair.
E o vislumbre do Inferno no seu outro olho estava tapado por uma pala.
Nem todas as cicatrizes físicas estavam a desvanecer, e aquela não desapareceria.
O pequeno Phantomhive não estava sozinho na sua funerária. Tal como Undertaker imaginara. E tal como ele sempre, tão arduamente tentara evitar...
Bem. A vida era irónica, não era?
- Novo mordomo, é?
- Boa tarde - respondeu o mordomo, a mão enluvada sobre o peito e um sorriso fácil e educado, a perfeição da etiqueta e estética e todas aquelas coisas tolas que os nobres da Inglaterra Victoriana valorizavam. Quando Undertaker se aproximou, apercebeu-se que a sua impressão não estivera errada; as diferenças denunciantes não eram suficientes para apaziguar a confusão, apenas aumentado o desconforto.
Parecia-se arrepiantemente com alguém que não devia. Parecia-se com Vincent.
Como ou porquê, Undertaker não estava interessado. Talvez fosse apenas mais uma ironia, aquela sempre presente e poderosa ironia que os governava a todos e à preciosa família de que Undertaker tanto gostava. Talvez fosse propositado, um capricho cruel para atormentar a vítima naqueles fios silenciosos de sofrimento. Talvez tivesse visto a imagem não nas memórias do seu contratante, mas nas do sacrifício. Ciel.
- Porque haveria alguém de invocar algo desta natureza? - perguntara ela em tempos.
- É irrelevante, tendo em conta que o final é o mesmo.
- Como pode não ser relevante?
Ela tivera razão.
Porque haveria uma criança tão feliz como ele fora invocar uma coisa como aquela, não tivesse sido por o seu irmão sofrer algum fim horrível? O sofrimento fora demasiado. Como estaria o demónio aqui de outra forma? Com o aspecto que tinha?
Independentemente da razão, o sorriso que aquele rosto lhe levou aos lábios era perigoso.
- Boa taaaaarde~! Tendes nome, pequeno mordomo?
- O meu nome é Sebastian Michaelis. Eu-
- Pfff Ha-ha haha! A última vez que ouvi isso, o Sebastian respondia a ladrar e a rebolar. Que bichinho peludo ele era. Suponho que não seja estranho, um Cão ter outro cão, hãããã~?
O rapaz fez um estalido com a língua.
- Que tipo de comentário é esse?
- Ouvi dizer que recebestes o vosso título oficial, Conde. Não são só os mortos que me trazem notícias. Sois o Conde Phantomhive, a vossa casa está de novo de pé, de regresso ao vosso fiel posto sob A Sua Majestade a Boa Rainha Victoria. A trela está de novo na mão dela e a coleira de volta no vosso pescoço, não é?
- Não vim cá para esta idiotice - interrompeu o rapaz. - Assumo que a tua lealdade ainda se mantém para com a minha família, não? Ou abandonaste-nos após a traição que sofremos?
Undertaker já estava perto deles, atraído pela coisa de pé ao lado do rapaz Phantomhive. Perante estas palavras, o sorriso que crescia no seu rosto expandiu além de máscaras de diversão e raiva dissimulada, até àquilo que se tornara graças a Claudia, Vincent, Ciel e Astre. Inclinou-se sobre o rapaz, demasiado perto para conforto de qualquer um mas perto o suficiente para ver o rapaz com clareza, o seu olho azul e o olho marcado sob a pala.
- Teríeis de vós esforçar muito para eu vos abandonar, Conde. E acreditai nas minhas palavras, nem vós nem o vosso novo mordomo conseguem fazer isso.
O rapaz não vacilou. Pestanejou, resfolegando desconfortável pelo movimento atrevido, mas não foi um reflexo intimidado - nem foi aquele medo infantil adorável que costumava sentir pela estranha figura assustadora e sorridente de Undertaker.
O Conde merecia respeito.
- Isso talvez seja demasiado perto para o meu Jovem Mestre se-
- Deixa, Sebastian - disse o rapaz, recompondo-se quando Undertaker se endireitou. - Eu acredito na tua palavra, Undertaker. É bom saber que os amigos da minha família ainda estão comigo.
- Claro~
A coisa voltou a sorrir, curvando a cabeça ao amigo peculiar do seu jovem mestre. Undertaker retribuiu o sorriso, como se este mútuo cumprimento fosse presságio de boa sorte e aprovação.
- Perdão. Saberei não sair do meu lugar da próxima vez.
- Não vos preocupeis com isso, pequeno mordomo. Tenho a certeza que tomareis bem conta do nosso Conde~ - respondeu Undertaker, a voz enlaçada com o estranho divertimento que a coisa passaria a esperar do coveiro.
- Muito obrigado, Mr Undertaker - disse a coisa. Undertaker cruzou os longos dedos em frente do peito, sorrindo mais abertamente. Estava tão perto, poderia acariciar a cara da coisa e as suas feições belas e elegantes, tão perfeitamente talhadas para preencher o seu papel de mordomo a fingir. E arrancar-lhe os olhos.
- Porque haveria uma criatura de servir um humano, porque haveria tal coisa brincar ao faz-de-conta? Não é~? Tudo apenas por uma refeição, tudo tempero para intensificar o sabor. Undertaker descobriria eventualmente: como o demónio entrara em contacto com o seu pequeno Novo-Ciel-Phantomhive, e qual fora o acordo deles. O demónio era, em última análise, responsável pela morte de Ciel, e pelo futuro sofrimento do Novo-Ciel. E este demónio Undertaker podia matar. Iria ficar muito perto, sempre, porque uma alma não fora suficiente. Queria o conjunto completo.
No entanto, talvez desta vez, não o conseguisse.
Não iria perder mais ninguém.
- Entããão... como posso ajudar-vos, pequeno Conde~?
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おわり
fim
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Nota: Apesar de este fic ter problemas (a tradução ajudou a encontrar alguns e a polir frases e falas), continua a ser um fic que me é bastante querido, pela duração de escrita, pelo planejamento ao longo de mais de um ano, por ser um canonverse AU que me o obrigou a sair da minha zona de conforto, e por ter tido mais feedback do que acreditei que tivesse.
Este fic foi terminado a 13 de Julho de 2018, e até à data de hoje, 13 de Setembro de 2021, continuo a não ter escrito nada tão extenso. Um dia, talvez.
Obrigado por lerem. Espero que tenham gostado. Vemo-nos por aí.
