Avisos: Lembrem-se que tudo o que o Levi assiste é através dos olhos de uma criança de 6 anos. Há diferentes níveis de violência, linguagem ofensiva, menções de homicídio-suicídio, e seguimos pelo ponto de vista do Levi antes de regressarmos à Kuchel.

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- Vá lá, Levi, mexe-te! Argh que miúdo irritante.

Levi ignorou Judy, uma das senhoras mais velhas que detestava qualquer forma de distúrbio que acontecesse num raio de cinco metros dela - ou se calhar só detestava crianças. Ele estava a regressar da cozinha de uma padaria próxima, a lamber manteiga dos dedos e a apertar um pão que tinha roubado. Tudo o que queria era regressar ao quarto deles, nem sequer tinha esbarrado com Judy nem nada disso, mas a mulher reclamava sempre se ele sequer se aproximava dela. Ela que se fosse lixar.

O bordel estava movimentado hoje, até as senhoras lá fora estavam a falar com vários dos homens que por ali passavam. Levi teve de se desviar rapidamente das filas de pernas dos adultos que mal o viam, pequeno como era, e tinha sido nessa altura que passara por Judy e tivera de a ouvir berrar-lhe aos ouvidos. Levi passou por um casal que se estava a apalpar mesmo ao lado da porta, o homem agarrado ao peito da senhora e fazendo aqueles suspiros e gemidos que estava habituado a ouvir vindos dos quartos, mas ignorou-os e entrou. O homem mau sem dentes não gostava que as crianças entrassem pela porta da frente, mas até agora Levi tinha conseguido escapulir-se sem as pessoas se importarem muito.

O hall de entrada parecia transpirado e o ar estava pesado por toda aquela gente estar a respirar lá dentro. As vozes e conversas não pareciam ir passar a gritos ou brigas tão depressa, apesar de o cheiro a álcool estar entranhado na mobília e nas paredes após um dia inteiro de trabalho. Espalmou o pão contra o lado do corpo para o manter longe de vista e moveu-se às voltas para alcançar as escadas que levavam ao primeiro andar, para a fila de corredores apertados onde eram os quartos das senhoras. Mas foi apanhado antes de conseguir subir as escadas, por um dos homens que trabalhavam para o homem mau.

- Ei, puto! - cumprimentou ele alegremente, e Levi voltou-se cautelosamente, ainda a esconder o pão. Aqueles homens ajudavam sempre que era preciso carregar pesos, ou quando os clientes começavam a armar confusão na entrada. Ou quando o homem mau queria castigar as senhoras. Levi não gostava de nenhum deles, nem deste por associação, mesmo que ele não parecesse muito ameaçador. - 'tás a ter um bom dia?

- Acho que sim.

- Queres dar uma mãozinha?

Levi olhou para o homem de lado, intrigado. Ele estava a carregar um daqueles caixotes de madeira grandes que tinham batatas ou vegetais lá dentro, o que seria bom para ele poder surripiar e guardar para depois, mas o homem não parecia estar a precisar de muita ajuda. Já para não falar do óbvio: Levi não seria grande ajuda.

- Eu não sou tão forte como tu - respondeu ele em vez disso. A mãe não gostava que ele respondesse mal às pessoas, por isso ou ficava calado ou respondia assim.

O homem riu e continuou o seu caminho para um dos corredores que levava à despensa, despenteando-o pelo caminho. - Yá, bem, vais ser, n'é? É melhor começares a treinar!

Sem estar convencido disso e a fazer beicinho por mais uma pessoa lhe ter posto as mãos em cima e o ter feito sentir-se pequeno e desajeitado, subiu as escadas e virou para o corredor. As paredes húmidas e suadas nunca o faziam olhar duas vezes, nunca as conhecera de outra forma. Um pouco mais à frente começavam os primeiros quartos, e Levi passou pelas portas sem olhar. Às vezes perguntava-se se alguém estava a ser magoado, tendo em conta os sons que vinham de lá, mas evitava espreitar. Mas já o tinha feito, e só continuara o caminho mais confuso e preocupado com o que vira no interior.

O bordel era um prédio de dois andares. Os corredores conduziam a um pequeno átrio que era o espaço para as senhoras estarem e falarem, normalmente sem clientes, mas hoje havia lá um entre várias senhoras. Dois lances de escadas estavam mesmo junto à parede e toda a gente no átrio o conseguia ver subir, mas isto já era mais no interior do bordel, ninguém queria saber. Uma das senhoras estava a descer e, como de costume, tentou beliscar-lhe as bochechas ou despenteá-lo, mas esta mulher era uma que Levi conhecia bastante bem. Esquivou-se e desviou a cabeça antes de ela poder fazer o que quer que fosse.

- Estás a ficar atrevido, Levi - reclamou ela, irritada como Levi sabia que ela iria ficar. Stella, ela era mais nova do que Judy, mas sempre o fazia lembrar dela por algum motivo. Tinham o mesmo cabelo loiro escuro e fino e as mesmas unhas sujas. Tinham a mesma embirração por crianças. Levi não sabia o nome verdadeiro dela, só o que ela usava aqui. - Esqueces-te que te conheço desde que nasceste?

- Não gosto que me despenteiem - respondeu com simplicidade, mas então uma mão com unhas afiadas fechou-se à volta do braço e ele quase se desequilibrou, recuando alguns degraus. Ela esperava que ele gritasse ou começasse a chorar pelo susto, mas Levi não o fez.

- O qu'ê que tens aí, hã?

- Larga-me, Stella. - Ele apertou o pão e escondeu-o atrás das costas, só conseguindo deixá-lo mais óbvio ao fazer isso.

- O qu'ê que roubaste, hã? Entraste no meu quarto, seu ladrãozeco?

- Stella, deixa o miúdo em paz, caralho! - gritou alguém do átrio lá em baixo e Stella sibilou antes de o largar com um empurrão. A criança caiu contra os degraus atrás de si e arranhou o cotovelo. A mesma mulher de antes acrescentou mais baixo, mas ainda alto o suficiente para Stella ouvir. - ...foda-se, qual é que é o teu problema.

- Aw, o fedelhozito queridinho. A mascotezinha preferida das putas. O qu'ê que 'tás aí a fazer especado, vai ter com a tua mamã, seu minorca. Ela já acabou, por isso já podes ir babar-te para cima dela e enchê-la de ranho como o cliente já fez. Vai lá, vai lá. - Ela riu-se como se tivesse acabado de fazer a piada mais engraçada do mundo.

Levi queria atirar-lhe alguma coisa acima. Como a única coisa que tinha era o pão precioso, guardou a vontade para outra ocasião. Stella era ainda pior do que Judy.

Como parecia que toda a gente estava a esbarrar nele hoje, estava ainda mais ansioso para ir para o seu quarto, ver a mãe e receber mimo. Jantar e, esperava ele, talvez a mãe pudesse brincar com ele antes de irem para cama, se não houvesse mais homens hoje. Apressou-se e virou para o corredor deles, ignorando todas as outras portas fechadas até finalmente chegar à deles. A porta estava fechada também mas não trancada - não podiam, de qualquer das formas - e na pressa com que estava simplesmente abriu-a sem bater. A sua mãe não se importaria porque estaria sozinha a lavar-se ou a raspar o fundo da panela por alguns restos de comida e ambos sabiam já terem raspado há muito.

No momento em que ouviu os gemidos e grunhidos de um homem e de uma mulher e viu um homem despido deitado na cama deles e a mover-se contra a sua mãe, soube que tinha feito uma coisa que não podia e ficou parado em choque.

- Vai-te embora, caralho! 'tou ocu- - começou o homem, a voz áspera e ainda a mover-se da mesma forma antes de virar a cabeça para a porta. Ele também não tinha muitos dentes, e era assustador com os olhos esbugalhados e saliva nos cantos da boca e parou de empurrar o corpo contra o da mãe de repente. - Foda-se o miúdo! Vai p'ó caralho!

Kuchel arquejou, desta vez em surpresa, e também voltou a cabeça.

- Levi! Sai daqui!

- Desculpem! - o ar irrompeu pelos pulmões e ele saltou, virando-lhes as costas e fechando a porta com uma pancada antes de se atirar para o chão ao lado dela. Queria fugir e esconder-se, mas nem sequer pensou em correr para o fim do corredor como se lembrava vagamente de fazer quando era mais novo e a senhoria Sophia ainda lá morava. O seu coração bateu mais e mais alto e ele não conseguia pensar, só se agarrou ao pão e tentou respirar o ar que agora desaparecera. Isto era mau, isto era mau, tinha feito asneira! Ele tinha feito asneira, não devia ter entrado! Não sabia, não pensou que estivesse lá ninguém! Não tinha feito de propósito.

Estava habituado a ter de sair quando os homens chegavam, e não gostava; alguns homens eram assustadores e feios, e todos eles interrompiam quando ele estava a brincar ou quando Kuchel estava a contar uma história. A mãe também não gostava disso, preferia que ele já estivesse fora do quarto quando eles chegavam. Ele via como ela ficava sempre preocupada se algum dos homens se aproximava dele. Mas só tinha entrado uma vez no quarto antes quando a mãe estava a trabalhar. Dessa vez, ela também tinha gritado e ficado zangada, tinha-o posto de castigo por ter ignorado a ordem dela para nunca entrar. Levi tinha visto algo semelhante da outra vez, eles também estavam nus, mas dessa vez o homem não parecia ter ficado zangado ou assim, só a mãe tinha ficado. Mas desta vez...

Foi pior. Ouviam-se gritos vindos do quarto, a voz alta e estranha do homem que ele não conhecia a explodir sobre a voz da sua mãe. O homem estava a dizer uma data de palavrões, e depois houve mais grunhidos e arquejos e sons como aqueles que ele ouvia nos outros quartos, como se alguma coisa estivesse a mover-se rápido e à força contra outra coisa e a cama chiava muito.

Levi encolheu-se e conteve a respiração, sem saber o que fazer. Ela estava a ser magoada por causa dele? Sentiu lágrimas ameaçarem inundar-lhe os olhos só de pensar, mas fez força para elas não caírem. Ela ia ficar zangada com ele outra vez e pô-lo de castigo. Não podia abrir a porta de novo, e toda a gente sabia que não se podia chamar ninguém quando os homens estavam lá dentro, até a vaga memória de Sophia que ele tinha era dela a dizer-lhe precisamente isso. Mas o que é que ele podia fazer Os sons eram zangados, como um monstro, e a sua mãe estava a ser magoada, ele tinha a certeza. Não podia entrar outra vez, não podia pedir ajuda, não podia-

A porta abriu-se de rompante e Levi saltou de susto. O homem ainda estava a praguejar aos gritos e a puxar as calças para cima, lutando para as apertar enquanto berrava para a mãe dentro do quarto: - Merda p'ás putas que não sabem afogar as crias!

Ao voltar-se, viu Levi no chão e deu-lhe um pontapé na perna, de forma tão inesperada e violenta que Levi não se apercebeu do que ia acontecer. Na verdade falhou praticamente o alvo, por isso Levi ficou mais assustado pelo movimento violento do que pela dor do pontapé.

- Sai-me da frente, caralho! Um dia destes ainda te apanho!

O cliente percorreu o corredor à pressa, empurrando outra senhora para fora do caminho. A senhora em questão não se pareceu importar muito, no entanto, porque ela sorriu a Levi e seguiu o seu caminho, como se estivesse satisfeita com a cena. Levi não foi bem capaz de registar a sua raiva por entre o medo, mas conseguiu pensar (que se lixassem os palavrões) que a Stella era uma cabra.

A pequena distração desapareceu rapidamente e deixou Levi a morder o lábio, demasiado assustado para saber o que devia fazer além do óbvio. Desenrolou os braços das pernas e levantou-se. Apesar de a perna estremecer, estava mais preocupado do que magoado. Timidamente, empurrou a porta, à procura de sons que pudessem indicar que a mãe estava pronta para o ver. Ou que não estava completamente fula.

Ou magoada.

- Levi, eu sei que estás aí.

Quis encolher-se outra vez, recuando. Mas em vez disso reuniu coragem e entrou, preparado para o maior raspanete da sua vida.

A sua mãe estava a levantar-se devagar da cama, tentando puxar a manga do vestido ao mesmo tempo, e a tarefa estava a magoá-la. A respiração saiu num sibilar por entre os dentes cerrados. A cama estava uma confusão, tal como o cabelo dela, o quarto cheirava mal, fê-lo engasgar-se. Levi conteve a respiração, não por causa do cheiro mas porque viu o quão cuidadosamente ela se estava a mover e como ela estava dobrada sobre a barriga. Tinha sangue no lábio.

- Mãe, eu...

- Quantas vezes já te disse, Levi... - A voz dela estava rouca. - Não podes entrar quando há clientes! Quantas vezes!

Levi recuou de novo e conteve de imediato a picada na garganta, sentindo as lágrimas nos olhos, boca a tremer do esforço para impedir que tudo aquilo explodisse. Tinha medo de levantar os olhos, tinha ainda mais medo de perguntar o que temia, mas a sua resposta estava mesmo à sua frente: os gemidos abafados dela, os movimentos cuidadosos, o sangue na boca e no tecido do vestido colado à pele no cimo da sua perna, húmido e escuro. Ela não parecia ter reparado. Levi desviou os olhos e engoliu a sua preocupação. A mãe não gostava que ele falasse daquilo, e naquele momento ele estava demasiado assustado para tentar a sua sorte.

- Eu trouxe-te comida... - gemeu, a culpa fazendo-o encolher-se de novo.

Kuchel olhou para a criança, os olhos cheios de lágrimas e o pão esmagado no pequeno punho. O suspiro escapou o seu controlo.

- Levi, obrigada. Tu... obrigada. Mas... mas devias ter tido mais cuidado. Sabes que não podes entrar assim...

- Por favor não te zangues - implorou ele baixinho. Ela suspirou de novo, o que Levi tomou como um mau sinal. - Desculpa, Mãe, eu pensei... eu só te queria ver, pensei que não estava cá ninguém, até a Stella me tinha acabado de dizer que não havia clientes, eu só pensei... não queria fazer asneira, não queria.

Kuchel pestanejou perante a confissão, mas neste momento não se conseguia forçar a pensar além da criança assustada à sua frente, e do quão pouca culpa ele tinha na situação.

- Levi, eu não estou zangada porque... Eu só não quero que tu... vejas coisas, há coisa que não podes ver, percebes? - A respiração estava a falhar-lhe.

Levi abraçou o pão, à procura de algum conforto.

- Eu sei que eles te fazem mal.

- Levi, por favor, não...

- Todos eles, eu sei. Eu já vi as outras senhoras também, eu sei o que os clientes lhes fazem.

Kuchel rezava que ele não soubesse.

- Levi, eu estou a tentar proteger-te.

- Não devias fazer isso ficando aqui fechada! - A voz dele quebrou, e ele não queria falar disto, mas preocupava-o tanto, e preocupava há tanto tempo. - O que é que costumavas dizer, que nós íamos sair daqui e subir as escadas e ver o céu? Não importa o quanto tu trabalhes, não conseguimos sequer comer! Porque é que continuas isto se te está a magoar-

Uma pancada forte na porta assustou-os aos dois. Levi arquejou e saltou na direcção de Kuchel, segurando-lhe no braço quando ela se começou a mover.

- Não, Mãe.

Uma voz alta e familiar de homem soou lá fora, ficando mais e mais clara com o bater de pés pelo corredor.

- P'á quê que 'tás a bater, caralho?! - e o chulo gordo escancarou a porta, batendo com ela contra a parede e fazendo Levi saltar e agarrar Kuchel com mais força. Escondeu o pão instintivamente. O homem entrou com aquele capanga alto, o mesmo homem que Levi vira há pouco. - Olympia, temos um problema.

- Senhor, eu...

- Fui eu, desculpe - Levi intrometeu-se e pôs-se à frente, tentando segurar o pulso da mãe, embora não soubesse exactamente com que propósito. Estava aterrorizado, e sabia que não podia realmente proteger a mãe do homem mau, mas podia tentar protegê-la de alguma forma. Pelo menos era essa a sua intenção.

- Podes crer que foi, seu fedelho da merda! - o homem mau cuspiu e avançou para ele, fazendo Levi tropeçar para trás.

- Desculpe, e-eu não quis...

- Não, senhor, fui eu que-

- Cala a boca, puta! Eu só aturo os vossos fedelhos se eles não me fizerem perder dinheiro...

- Ele pagou, não pagou? Foi um acidente, não-

- Yá, e se muitos gajos me começarem a perguntar se algum puto lhes vai entrar pelo quarto enquanto 'tão a foder, eu vou começar a dizer que vem com o preço!

- Não! Não vai voltar a acontecer! Páre! - O chulo arrancou Levi de Kuchel e atirou-o contra a parede. Conseguiu não bater com a cabeça, mas bateu com as costas e deixou cair o pão, que rolou felizmente para debaixo da cama.

- Com este arzinho de menina que este tem, conseguia um lucro, hã Olympia?

- Não! Deixe-o em paz! - Kuchel mal tinha cambaleado na direcção dele antes de o capanga a agarrar, imobilizando-a sem qualquer esforço enquanto ela se debatia para se libertar.

Com o sangue a bombear com força nos ouvidos, Levi não sabia o que fazer de novo, estava a entrar em pânico e aterrorizado. A sua mãe estava à beira das lágrimas e a respirar com dificuldade, ele sabia que tinha feito asneira! E a verdade era que ele tinha seis anos, não compreendia bem o que se estava a passar, só que a sua mãe estava assustada e a chorar e que o homem mau os estava a magoar. Havia pouco que pudesse fazer para parar aquilo, mas era a única coisa em que conseguia pensar.

- Deixe-a em paz! A culpa foi minha!

- Pois foi, e nunca mais o vais voltar a fazer! - O chulo desdentado ergueu-se sobre ele, aterrorizador, e apertou a mão pesada à volta do seu braço, puxando-o da parede contra a sua barriga gorda, magoando-o e fazendo Levi gritar contra sua vontade. O capanga prendeu Kuchel e magoou-a também, Levi ouviu-a gritar, mas então ele foi atirado lá para fora, de forma demasiado violenta para uma criança aguentar e ele tropeçou e caiu no chão com uma pancada alta, magoando e arranhando as mãos e os joelhos.

- Não! Deixe-o em paz, por favor, ele é uma criança!

- Fedelho estúpido. - Atirou a mão ao cabelo de Levi e puxou-o para cima, a dor a queimá-lo tanto que ele gritou e começou a chorar. Kuchel implorou-lhe de dentro do quarto para ele parar e tentou escapar do aperto do capanga, mas claramente não conseguiu. Desapareceu da vista de Levi.

Caos implodiu no corredor. Kuchel gritava enquanto o chulo gordo esmurrava Levi, atirando-o ao chão sem qualquer preocupação e depois puxando-o pelo cabelo para o impedir de voltar a cair e tentar encolher-se para se proteger, e continuou a bater-lhe onde quer que o conseguisse atingir. Os gritos da criança eram altos o suficiente para serem ouvidos por todo o corredor e algumas pessoas confusas ou curiosas começaram a surgir para ver o que e passava, prostitutas e clientes que tinham sido alertados que algo errado se passava.

- Mãe! Mãe!

- Ele é uma criança, por favor! Deixe o meu filho em paz! Isto não vai prejudicar o seu negócio muito mais?!

Levi caiu com força no chão e viu os pés do homem voltarem-se antes de ouvir uma estalada violenta e um grito de dor que não era seu, mas que o magoou muito mais.

- Pára! - implorou ele.

Por essa altura já havia uma pequena multidão reunida, vinda dos quartos ou das escadas. Alguns sussurros e reclamações tornaram-se num ruído desagradado de fundo, mas foi só isso. Ninguém fez nada.

O chulo não se importou. Depois de ter esbofeteado Kuchel, voltou-se de novo para Levi, ignorou o desespero e as lágrimas e bateu-lhe com força na cara, atirando-o ao chão e então batendo-lhe uma e outra vez na cabeça e nas costas, os únicos sítios que conseguia alcançar depois de Levi ter consigo enrolar-se numa pequena bola chorosa. Eventualmente, o capanga aproximou-se e deteve o homem mau, pressionando uma mão contra o peito dele.

- Chefe, já chega, ele é um miúdo.

O chulo arfou e bufou de raiva, atirando uma mão à cabeça como se quisesse pentear o cabelo ou limpar algum suor da testa.

- Bem, ele aprendeu, não aprendeu? Aprendeste a comportar-te, meu cabrão!

Duas prostitutas que se tinham aproximado saíram do caminho para que o chulo e o capanga pudessem afastar-se, o homem a praguejar a altos berros enquanto dispensava as mulheres, mas mesmo essas não disseram nada depois de ele se ir embora. Agora que a situação tinha acabado, as mulheres que não tinham saído por medo de serem apanhadas no fogo cruzado começavam a espreitar dos seus quartos. Uma delas era de algumas portas abaixo, com apenas uma nesga da sua porta aberta, o suficiente para ela e uma menina conseguirem ver Levi enrolado no chão a soluçar. Kuchel também soluçava, estendida na ombreira onde o capanga a deixara, agarrada à cabeça zonza pela dor, gritos e lágrimas.

Tossiu e tentou recuperar o fôlego, os olhos inundados à procura de Levi. Alguém apareceu à sua frente, bloqueando Levi de vista, e puxou-a rudemente até ela estar de pé. Tentou empurrar a pessoa para longe, as unhas a magoarem-lhe o braço, dentes brandidos de raiva embora as suas faces estivessem manchadas de lágrimas.

- Pára lá com isso, Kuchel - disse Judy rispidamente enquanto Kuchel fazia aquela tentativa patética de lutar contra ela. - Vai buscar o teu puto e fica calada. Já fizeram espectáculo suficiente por um dia.

- Levi - chamou ela, empurrando Judy para fora do caminho. Por um momento horrível, temeu o pior quando o viu tão indefeso no chão, mas ele estava a mover-se, o corpo a tremer com cada respiração, ele estava vivo. - Meu bebé, oh não, o meu bebé... Levi, fala comigo, estás bem?

Um dos clientes que testemunhara a tareia saiu de um quarto e passou mesmo ao lado dela sem sequer olhar para baixo.

- Desculpa, Mãe... - Aquelas palavras conseguiram devolver oxigénio aos seus pulmões e Kuchel conseguiu voltar a respirar, mas silenciou-o de imediato e segurou-lhe na cabeça, afastando madeixas de cabelo emaranhadas à procura de sangue. A cabeça de Kuchel estava a latejar e zonza mas ela ignorou-a, tudo o que precisava de saber era o quão magoado ele estava. Voltou-lhe o rosto para cima, as mãos molhadas mesmo antes de o ver e fazendo-a arquejar em horror. Ele estava a sangrar do nariz e as bochechas e o lábio estavam rasgados e a inchar, sangue esborrato entre lágrimas e ranho.

- Oh, o meu bebé... - Não conseguiu impedir as palavras, aquele desespero, antes de se obrigar a concentrar, a preparar-se. - Vamos, Levi, vem cá, vem cá.

Judy estava estacionada à porta, as outras prostitutas a verem a cena também, a mãe a debater-se para pegar no filho ao colo, desgrenhada e espancada e ensanguentada, numa imagem não tão patética quanto horrível.

- Foda-se, porque é que havias de ter filhos, Kuchel? Hã? Não nos fodas o trabalho.

- Cala-te. Vão para o caralho, vocês todas! - gritou ela, conseguindo segurar Levi e levantando-se, cada um dos seus gemidos perfurando-lhe o peito como uma dor física e ajudando a entorpecer as suas feridas reais. Kuchel desequilibrou-se ao tentar endireitar-se, a cabeça a voar. Judy foi quem a segurou e a manteve de pé, mas Kuchel encarou-o como uma agressão, como um ataque.

- Vai à merda!

A prostituta mais velha removeu a mão com um grunhido, fumando o seu cigarro com os olhos colados em Kuchel.

- Estou a ajudar-te, sua puta ingrata.

- Não sou problema teu, Judy, por favor deixa-nos em paz. Deixa-nos em paz. - Kuchel não podia deixar-se sentir a exaustão que a iria devastar, por isso as palavras não carregaram o peso que ela de facto sentia.

- Yá, tens razão. Mas vou ficar atenta à Stella. Tu e o teu puto, quero lá saber. Vais juntar-te à Sophia mais depressa do que eu.

Kuchel estava demasiado cansada, mas tinha demasiado para fazer agora. Assim que a outra mulher se afastou, carregou Levi para dentro e fechou a porta atrás de si, desejando agora mais do que nunca que pudesse trancar a porta, mais ainda do que tinha desejado quando estivera com o cliente que começara tudo isto. A vela que tinha sido deixada a arder estava já meio derretida, mas a luz que ainda emanava seria mais do que suficiente para eles.

Kuchel pousou Levi cuidadosamente na cama, incapaz de retirar os lençóis ou de os desviar muito. Segurou o rosto dele com cuidado entre as mãos, inspeccionando as feridas e lutando para engolir o aperto que tinha na garganta.

- Estás enjoado? Estás a sentir-te com vontade de vomitar, Levi?

Ele abanou a cabeça devagarinho, o seu rostinho lindo coberto de marcas e pancadas feias, e a imagem do sangue era simplesmente horrível.

- Estou cansado, Mamã.

- Não, não, não podes dormir, ok, amor? Ainda não, tens de aguentar um bocadinho, ok? Só podes dormir quando eu disser, ok?

- Eu não queria que ele te magoasse, desculpa... - Contra tudo o que Kuchel podia fazer, Levi começou a chorar de novo. Kuchel engoliu em seco e abraçou Levi contra o peito, mal conseguindo evitar magoá-lo de alguma forma.

- Já te disse, não tiveste culpa. És uma criança, nada do que acontece aqui é culpa tua, estás a ouvir-me? Não é culpa tua, Levi.

Os soluços continuaram apesar disso, Kuchel acarinhando Levi e tentando acalmá-lo, afagando o cabelo que tinha ficado húmido de transpiração, felizmente e milagrosamente sem sangue. Tentou travar as lágrimas com os dedos suaves sobre as faces dele, murmurando uma melodia para os acalmar a ambos; a imagem do sangue no rosto dele era simplesmente demais para ela, tinha de o limpar.

- Estás a sangrar, Mamã - disse ele entre soluços, quase fazendo Kuchel resfolegar; o que eram as feridas dela comparadas com as dele? Kuchel não ligou importância e só esfregou o sangue que pudesse ter na cara com a mão. A sua própria dor estava dormente pela preocupação e adrenalina e era pelo melhor.

Quando Levi se acalmou por fim, ela procurou o pequeno pote com água que usava para se lavar. A água não estava limpa, mas ela não ia deixá-lo aqui sozinho agora para tentar desencantar mais água. Pegou na esponja dele, esfarrapada e estragada por uso excessivo desde que ele era um bebé, mergulhou-a e torceu-a o melhor que conseguiu, começando a lavar o sangue na cara, nas mãos, nos joelhos. A respiração ficou presa na garganta enquanto o despia para lhe lavar as costas. Lavou-lhe as pernas cobertas de urina. O rosto de Levi já estava a inchar e as manchas que se tornariam em nódoas negras feias já estavam a escurecer.

Ele parecia tão frágil, e era tão frágil, o seu bebé que falara naquela linguagem adorável e que lhe dava miminho enquanto ela dormia. Isto nunca devia ter acontecido, nada disto. As costelas nítidas contra a pele branca não eram fruto de um dia, mas dos anos desde que ele nascera. A sua altura e peso não eram só devido a ele ter uma mãe baixa. Ele era demasiado novo e já demasiado marcado. Não estava certo, não era justo.

Nunca perdoaria Sophia pelo que ela fizera, mas conseguia compreender o medo e a dor que a tinham guiado. A única coisa que as mães querem é manter os seus filhos a salvo, e aqui em baixo sem sol e sem liberdade, parecia ser impossível. Às vezes, o medo e a dor tornavam-se demasiadas, e só parecia haver uma escapatória.

- Estás a sentir-se enjoado, Levi?

- Não. Mas dói, Mãe.

- Eu sei, amor, vamos para a cama, vais descansar um bocadinho, está bem? Só precisas de esperar um bocadinho.

Queria arrancar os lençóis. Havia uma mancha vermelha escura recente que tinha repassado para o colchão. Deu o seu melhor para a conseguir cobrir e esticou o lençol restante. Um som molhado atrás de si chamou-lhe a atenção e ela voltou-se, vendo Levi tentar mergulhar a mão na água e beber.

- Não, Levi, está suja, não bebas daí.

- Eu sei, mas tenho sede.

Kuchel olhou apressadamente em torno do quarto, achando o pão que Levi tinha deixado cair. Tinha ficado empoeirado, mas ela deu-lhe uma sacudidela e partiu-o em dois.

- Também está sujo, Mãe.

- É só pó, não há problema.

- Mas... blegh.

Vendo uma oportunidade para o tentar distrair, Kuchel reuniu forças, forças que nunca poderiam partir do seu corpo doente e quebrado. Só poderiam partir de algo fora de si - e estava mesmo à sua frente. E por isso ela sorriu.

- A água suja é muito pior. Tu costumavas deixar cair as tuas fatias de pão com manteiga no chão e lambias tudo mesmo com a camada extra de pó quando eras bebé, sabias?

- Ah? Não, a sério? - Levi franziu o sobrolho. - Eu sei que é comida, mas blegh.

- Não tem problema nenhum. Podes só cuspir o pó se estiver no caminho. - Kuchel deu um risinho perante a expressão surpreendida e terminou de o lavar e vestir. Ele comeu o pão em silêncio sem reclamar, arrancando primeiro o miolo fofo com os dedos e mastigando devagar; o seu rosto franzia-se de dor de tempos a tempos. Kuchel não tinha fome nenhuma, estava só exausta. Tendo em conta o quão improvável era receber dinheiro durante os próximos dias, ia guardar a outra metade do pão em segurança para quando os roncos do estômago de Levi se tornassem fisicamente dolorosos.

Receando que fosse colapsar se se atrevesse a sentar, Kuchel foi ter com Levi e examinou as feridas dele de novo.

- Já podemos ir dormir? Tenho sono, Mamã.

Kuchel afagou o cabelo de Levi suavemente, sorrindo de novo de forma tranquilizadora. Ele ia ficar bem; tinha de ficar bem.

- Sim, vamos dormir.

Levi pegou na boneca que estava na mesa e levou-a para a cama. A boneca de pano era um bem valioso e o último brinquedo que lhe restava. Sophia tinha-lha oferecido antes de sufocar a filha e se enforcar nas barras das escadas.

- Posso dormir com ela hoje?

- Claro que sim.

Levi trepou para a cama com esforço e deitou-se de lado, aconchegando-se na cama e apertando a almofada, apesar de o contacto o ter feito gemer. Tê-lo agora calmo e em segurança - tinham conseguido, tinham sobrevivido - permitiu que Kuchel por fim quebrasse e se enterrasse na cama, a dor dos seus ferimentos arrebatando-a em ondas cada vez mais fortes. Mais do que o ardor penetrante entre as coxas, as suas tonturas tornaram-se flagrantes e gritavam a sua urgência. Mas ela racionalizou-a; tudo era urgente, tudo era impossível de mudar. Só mais um bocadinho. Descansa e amanhã consegues.

- Mãe?

O som trouxe-a de volta. Kuchel abriu os olhos devagar e voltou a cabeça de lado. Levi tinha-se aconchegado bem perto e não estava a olhar para ela, felizmente, mas sim para o tecto. A mancha de humidade estava a alastrar mesmo em cima das cabeças dele, a condensação da respiração dos dois só ajudando a piorá-la. Mais uma vez, uma urgência que era impossível mudar. Ela tentava ignorar todos os dias o quanto aquilo podia prejudicar a respiração de Levi no futuro próximo.

- Achas que podemos pintar o tecto?

- Podemos tentar um dia. Pode ser que ajude com a humidade.

- Não, não é por isso. Quero uma vista.

Kuchel deitou-se de costas e olhou para cima também.

- Imagina. - O menino levantou a mão. - Ia fazer com que cada dia valesse a pena, mesmo que acontecesse alguma coisa má. Se tivéssemos uma janela, podíamos dormir debaixo das estrelas e do sol.

Kuchel sorriu, afagando-lhe o cabelo suavemente.

- As estrelas e o sol não estão juntas ao mesmo tempo no céu.

- Oh.

- Há muita luz durante o dia, por isso não dá para ver as estrelas. Quando é de noite, elas brilham.

- Podes contar-me mais, Mãe?

- Conta-me tu. Como é que gostavas de pintar a tua janela? Com um céu azul ou com estrelas?

O braço de Levi baixou em ponderação, murmurando os seus pensamentos antes de voltar a erguer a mão.

- Hm, azul. Céu grande e azul.

- Tu costumavas dizer isso, lembras-te? Embora... - acrescentou ela, aninhando Levi tão perto de si quanto possível sem o magoar. Ergueu o braço ao lado do dele, partilhando do seu imaginário. - Se tivéssemos uma janela a sério, íamos ter o sol mesmo em cima de nós. - Levi riu quando ela lhe fez cócegas no nariz. - E os raios de sol iam bater-nos na cara todas as manhãs.

- O sol bate-nos? - perguntou Levi de repente, a voz a tremer.

- Oh não, não, Levi. - Kuchel voltou-se para ele, pousando a mão sobre o rosto dele. As nódoas negras já estavam a aparecer, e iam demorar semanas a curar. - Não, é só uma expressão. O sol é luz, e a luz não nos bate, está só lá. Temos pouca luz aqui no Submundo, ainda menos no nosso quarto. - A luz da vela oscilou como que de propósito. - O sol é o que tem mais luz de todos.

Aquilo pareceu tranquilizá-lo. Os olhos dele voltaram-se para o tecto, uma mistura de confusão e interesse.

- Então mas isso não ia magoar-nos os olhos?

- Provavelmente, antes de nos habituarmos. Depois não ia haver problema.

A boneca de pano foi pressionada entre eles. Kuchel beijou a cabeça de Levi e desejou-lhe boa noite, esperando que ele conseguisse encontrar algum alento nos seus desejos por uma vista.

Ele estava claramente a ponderar bastante. Kuchel estava meio a dormir de cansaço e dor enquanto ele ainda estava extremamente concentrado.

- Mãe.

- Hm?

- Não preciso de ver o céu a sério. Posso pintá-lo.

- Não é tão bonito como o céu a sério, Levi.

- Mas eu não quero ver o céu se tiveres de continuar a trabalhar.

- Não te preocupes com isso. Pode demorar um tempo, mas vais ver o céu. - Ou vou morrer se isso significar que podes.

- Eu não me importo se não vir. Vou só pintar o tecto quando for mais alto.

Depois de tudo, ela sorriu e suspirou. - Combinado.

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continua

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