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- Ei, Mãe. Estive a pensar e... e não quero uma janela no tecto. Já não quero muito ver o céu.

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O arquejo chocado demorou cerca de dois segundos a transformar-se num guincho que fez Kuchel rir.

- Uaaaaau! É fantástico!

- Isto é só um bocadinho - disse Kuchel, olhando para cima para a fenda acima das suas cabeças. A brisa que brincava com o cabelo dela fez com que parecesse quase mágico. Levi queria olhar para ela, mas não conseguia parar de olhar para cima, os olhos esbugalhados e o seu cabelo a dançar à frente da cara e fazendo-lhe cócegas no nariz.

- Então isto não é o céu todo?

- Não, é só um bocadinho que conseguimos ver de cá de baixo. Se estas pedras desaparecessem e olhasses para cima, só ias ver céu. É assim que é lá em cima. - O longo caminho por onde Kuchel o levara tinha compensado, este sítio era fantástico! Era como uma caverna, eles nunca conseguiriam trepar até lá a cima, mas tinha tanta luz! Mesmo estando aqui agora, Levi já estava a desejar e a imaginar a próxima vez que ali voltassem. O caminho era difícil, ele iria perder-se se viesse sozinho, mas Kuchel sabia por onde tinham de ir. Não se importava de ter de andar durante tanto tempo só para chegar aqui.

Então aquilo ali em cima era o céu! Pestanejou muitas vezes, cobrindo os olhos com a mão, e o sol nem sequer se tinha erguido, tudo o que conseguia ver dele eram raios de luz, tal como Kuchel tinha dito, eles não lhe batiam, estavam apenas ali. O pó estava tão bonito, a dançar e a brilhar nos raios que chegavam desde a fenda até ao chão. Levi tentou atravessar o braço num deles para ver o que acontecia, e estava só quente, não o magoou. O azul lá de cima era mesmo bonito.

- Não podemos ficar muito tempo, desculpa, Levi.

- Oh, está bem. - Levi queria poder ficar mais aqui, mas não queria deixar a mãe triste. - Mas é brutal! Obrigado.

Não lhe ocorreu de imediato que talvez este tempo aqui pudesse...

- Espera, não vai haver problemas por me teres trazido aqui, pois não?

Kuchel sorriu e despenteou-o de propósito.

- Ei, Mãe!

- Está tudo bem, Levi. Eu disse-te que íamos ver o céu, não disse?

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- Aquela vez foi suficiente, não foi? Eu não podia viver com o céu em cima da minha cabeça, os meus olhos iam doer. Não é?

A respiração ficou presa o peito e ele tossiu, mas ignorou-a de imediato. Os olhos voltaram-se para a mancha húmida no tecto.

- Desculpa ter-te chateado. Não precisamos de azul ali, também não seria um céu a sério, por isso...

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- Mãe - chamou ele suavemente. - Mãe, podes brincar comigo?

Kuchel gemeu baixinho, o seu rosto lindo contorcendo-se com uma dor que Levi não conseguia ver ou ajudar a passar. Ela demorou um pouco a falar, Levi estava quase pronto a chamá-la de novo.

- A mãe está cansada, Levi...

Ele mordeu o lábio, apertando a boneca na sua mão e assentindo, triste. Já se tinham passado tantos dias desde que tinham brincado, ele sabia que ela estava cansada, mas...

- Ok, desculpa Mãe... - disse ele em vez disso, afagando-lhe o cabelo e penteando uma madeixa atrás da orelha para a afastar do rosto, que estava enterrado na almofada sob ela. Ela suspirou e adormeceu, gemidos de dor a escaparem-lhe dos lábios ainda assim.

Levi não podia fazer nada para a ajudar, por isso deixou-a dormir e deu-lhe miminho quando os gemidos aumentavam, sentando-se ao lado dela no chão e rodopiando a boneca de Sophia, entediado.

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- Mas espera, tu gostavas, não era? Não te estava a chatear, tu gostavas que nós pudéssemos ter uma janela para o céu. - Levi quis dar uma palmada na testa. O peito doeu-lhe. - D-Desculpa, Mãe, sou tão parvo. Achei que tinhas ficado chateada...

Eles não tinham tinta. Por isso, talvez...

- Se quiseres, podemos... podemos só trabalhar com o que temos. Tenho estado a pensar, e... vês? Vês ali? Disseste que o céu à noite é mesmo assim, não é? - Levantou o braço, a mão aberta. - É preto, mas tem milhares de estrelas. Se calhar podemos pôr estrelas ali. E assim o sol não nos batia quando acordávamos. Não íamos precisar de dinheiro para tinta, usávamos só aquela mancha grande e tentamos fazer pontinhos brancos, limpo só uns pontinhos para os deixar brancos. É isso que as estrelas são, não é? Quando for mais alto, posso...

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- Mãe, acorda. Olha, comida.

A respiração de Kuchel estremeceu, mas não acordou. Levi engoliu em seco e apertou a fatia de pão meio comida que tinha roubado. Tinha tirado um pouco do miolo para si, o estômago estava a roncar demasiado, mas tudo o resto era para ela.

- Desculpa, só consegui arranjar isto. Mas vai fazer-te sentir melhor, prova.

Tentou levantar a cabeça dela um bocadinho da almofada, só para grunhir aos seus braços fracos que começaram a doer de imediato. Aguentou o esforço e tentou colocar o pão na boca dela. As sobrancelhas dela franziram-se.

- Levi?

- Sim. Come, Mãe.

Será que o pão era demasiado duro para ela conseguir comer? Claro, parvo, ele não tinha arranjado uma fatia boa...

- Espera - Levi deu uma dentada no pão e arrancou um pequeno pedaço, mastigando-o à pressa. Colocou cuidadosamente o miolo do pão nas pontas dos dedos e usou-os como colher para dar de comer à mãe. - Não tens de mastigar, tenta agora.

Pressionou os dedos até a mãe grunhir e afastar os lábios. Ajudou-a e esperou até ela conseguir engolir. Levi arrancou um pedaço ligeiramente maior de pão e repetiu, encorajando-a a continuar.

- Está bom, não está, Mãe? Queres mais?

A testa dela estava transpirada, a respiração fraca. Levi engoliu com dificuldade, mas continuou com palavras tranquilas.

Kuchel tossiu várias vezes, mas comeu tudo o que ele lhe deu. Suspirou novamente, tentando abrir os olhos. Levi disse-lhe para não o fazer e afagou-lhe o cabelo.

- Obrigada, Levi.

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- Se eu esfregasse a mancha preta, ia conseguir ter pontos brancos? Ou se calhar só ia fazer com que nos chovesse em cima e íamos ficar doentes. Eu... vês, e-eu não preciso de uma vista ou nada disso. Se calhar estamos bem assim. Não é?

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- Mãe. Acorda. Acorda, por favor. Comida.

Abanou-a, bateu-lhe no ombro, deu-lhe miminho no rosto e no cabelo.

- Mãe? Quero que brinques comigo, por favor, precisas de comer.

Abanou-a com mais força, tentando respirar.

Não conseguia.

- Mãe?

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- Não é, Mãe? E-Estamos bem assim. Mãe?

O braço caiu contra o peito e ele não conseguiu inspirar. A boca abriu-se numa tentativa de o ajudar a respirar entre as lágrimas. Tentou levantar o braço de novo, a sua mão era uma mancha confusa por entre a água e quase pareceu transformar-se em duas mãos. As lágrimas caíram pelos lados da cara até ao cabelo e apagaram qualquer ilusão que ele pudesse ter tido e então mais lágrimas lhe fizeram cócegas no nariz quando voltou a cabeça na almofada, talvez tentando ver se ela estava a dormir, como se talvez dessa vez ela estivesse mesmo só a dormir.

Era difícil respirar, não conseguia deixar de tossir e isso só fazia com que mais lágrimas caíssem. O estômago já não lhe doía agora, já tinha desistido de tentar arrancar o miolo de pão colado ao chão, e da próxima vez que tivesse tantas dores que só quisesse gritar, ia só enrolar-se sobre si mesmo e esperar que acabasse.

Era demasiado difícil respirar, cheirava demasiado mal, o seu corpo doía da tosse. Obrigou-se a levantar, cerrou os dentes com força por ser tão fraco mas não conseguia respirar na cama. Rastejou para fora da cama, caindo de joelhos e sobre o ombro no chão como tinha acontecido nas primeiras horas ou dias depois de ela parar de se mexer. Conseguia ver sombras de passos lá fora, no espaço por entre a porta e o chão. As lágrimas fizeram-lhes cócegas na cara e o pó arranhou-lhe a garganta, fazendo-o tossir de novo.

Não queria luz. Não queria céu, ou sol, ou estrelas, nem mais nada.

Rastejou até à parede e fechou os olhos, longe da luz que vinha de debaixo da porta e longe da cor que tinha imaginado no tecto.

Não queria nada. Não queria ver o céu, tinha-lhe dito isso. Só queria que ela saísse dali com ele.

Por isso, se ela ia ficar ali, então ele também ia.

Não queria nenhum céu.

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fim

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Nota: Escrito ao som da música 'Blackbird' dos Alter Bridge. Recomendo.

Obrigado por lerem, se acharem erros por favor digam.

- A cena onde Kuchel leva Levi a ver o céu está escrita pela sua perspectiva no fic 'Um dia'
- os seus momentos finais pela sua perspectiva no fic 'Algo importante'

disclaimer: don't own Shingeki no Kyojin.

- A cena onde Kuchel leva Levi a ver o céu está escrita pela sua perspectiva no fic 'Um dia'
- os seus momentos finais pela sua perspectiva no fic 'Algo importante'

Este fic faz parte de uma série chamada 'Uma família disfuncional', dito kid!Levi, histórias independentes mas que formam uma continuidade se as lerem por ordem. Podem usar ctrl+f no meu perfil para as achar e ler os sumários e avisos. Aqui está a lista:

1 - Palavras de despedida (Kenny, Kuchel)
2 - Mudança (Kuchel, Levi)
3 - Um dia (Kuchel, Levi)

4 - A Janela para o Céu - estão aqui -

5 - Algo importante (Kuchel, Levi)
6 - Escolha (Kenny, Levi)
7 - Primeira (Kenny, Levi)
8 - Dor (Kenny, Levi)
9 - Lembranças e destroços (Levi, Kenny)
10 - A Conversa (Kenny, Levi)
11 - Palavras (Levi, Kenny)
12 - Perda (Kenny, Levi)
13 - Decisão (Levi, Kenny)
14 - Pai com outro nome (Kenny)
15 - Sozinho (Levi)