Capítulo 2 - O baú

POV - Jade

Pode me chamar de obcecada se quiser, vou até usar uma placa nas minhas costas se for preciso, mas eu não consigo parar de pensar nela. Como um fantasma, ela está constantemente assombrando meus pensamentos. Aquela misteriosa mulher de 1869. Uma coisa jovem e linda que faz o meu coração machucado se mover toda vez que eu a vejo. Hoje, enquanto saio do meu apartamento e vou pra faculdade, numa manhã nebulosa, eu penso nela. Da velha igreja que fica de frente pro meu apartamento, até o ponto em que eu sinto na sala de aula, eu penso nela.

Eu quero saber mais. No meio da aula de figurino me vem uma ideia. O velho da loja de antiguidades disse que tinham mais coisas dessa propriedade dos Oliver. Talvez tenha algo mais que pertencia a Victoria. Assim que as aulas acabaram, eu fui direto para aquela loja.

Entrando, vi o senhor em seu lugar atrás do balcão com um sorriso amigável.

"Olá, posso ajudá-la?"

"Ah-... Sim. Eu tava aqui semana passada mais ou menos. Eu comprei uma foto antiga da propriedade dos Oliver. Você disse que eram umas coisas que estavam esquecidas no porão." Eu respondi, deixando um pouco da minha ansiedade aparecer.

Ele pensou por um momento e então pareceu se lembrar. "Ah sim... Aquela foto da moça bonita. Eu lembro agora. Você não quer devolver, né? Não aceitamos retornos..."

Balanço a cabeça. "Não. Na verdade... Eu quero ver o que mais você tem."

O senhor tocou os dedos no balcão por um momento. "Hmm, deixa eu ver... Eu vendi a maioria daquelas coisas no outro dia para um colecionador. Uns castiçais velhos, uma mesa de cabeceira... Ah! Sobrou uma coisa. Venha."

Enquanto eu seguia ele, perguntei. "O que você sabe sobre a propriedade?"

"A família Oliver já foi bem próspera. Um deles era até um membro do parlamento por um tempo, épocas atrás. Mas ao longo do último século, por aí, suas fortunas diminuíram. Aquilo foi o maior escândalo. Hmm, um dos herdeiros principais, um jovem muito promissor, creio eu, foi morto na Batalha do Somme, em 1916. Daí, a família foi gradualmente morrendo, até o último deles falecer nos anos 80. A propriedade já estava completamente falida. A velha casa ficou desocupada por anos enquanto tudo passava pelos tribunais. A terra foi vendida para cobrir os débitos para um desenvolvedor que, eu te disse antes, derrubou a casa e agora está colocando um supermercado no lugar." Ele explicou enquanto revistava as coisas num canto escuro. "Ahh, aqui está." Ele disse, mostrando um pequeno baú de madeira. Era simples, parecendo ser feito de bordo, com uns 60 centímetros de altura e largura, e 30 centímetros de altura. "Esta é a última peça. Um pequeno baú de madeira."

"O que tem nele?"

Ele deu de ombros. "Não faço a mínima ideia. Está trancado e não encontraram nenhuma chave."

Eu não tinha ideia do que tinha naquilo, mas eu tinha que saber se algo da Victoria estava lá. "Quanto é?"

Ele colocou a mão no queixo. "40 libras."

Xinguei silenciosamente. Eu só tinha 31. "Eu tenho 31 libras. Que tal?" Eu barganhei, colocando uma mão no ombro dele. Às vezes uma aproximação casual faz mágicas.

Pareceu ter funcionado, já que ele assentiu. "Okay, aceito 31 libras."

Estendi os braços e peguei o baú. Agora é certeza que tem algo dentro, pois está um pouco pesado, mas eu consigo carregar. Depois de pagar, me arrastei pra casa feliz. Agradeço às estrelas de que ele aceitou minha oferta. Eu meio que esperava ter que sair e arranjar um jeito de ganhar esse dinheiro.

Falando em dinheiro, eu precisava arranjar um emprego. Pelo menos um de meio período. Fiz uma nota mental pra começar a procurar no dia seguinte. Esse baú, quanto mais eu carregava, mais pesado ele parecia ficar. Mas eu finalmente consegui arrastá-lo pra casa e colocar na mesa da cozinha.

Agora eu tenho outro problema. Tá trancado e eu não tenho a chave. Eu poderia usar minhas preciosas tesouras e passar horas tentando escancarar essa coisa. Mas, ao invés disso, eu peguei um martelo e quebrei a parte da frente. Não faz sentido eu perder tempo nisso aqui.

Tendo destruído um baú antigo pra chegar no conteúdo, como a americana violenta que eu não nego ser, eu abro o baú. Em cima tinha os restos apagados do que uma vez um vestido branco de seda. Ele praticamente se despedaçou nas minhas mãos, mas dá pra perceber que ele já foi muito bonito. Senti uma pontada de tristeza em ver um vestido que devia ser tão elegante se desfazer assim.

Eu tentei imaginar a Victoria vestindo ele em alguma ocasião chique. Senti meu coração vibrar com o pensamento. Acho que foi só de saber que ela, Victoria, já usou ele.

Debaixo do vestido havia uma porção de coisas. Pareciam ter sido jogadas de qualquer jeito e sem nenhum cuidado. Em cima tinha um velho, mas bem preservado, livro. Ele tinha uma capa vermelha com o que pareciam ser pilares decorativos. A espinha dizia "Moore's Lalla Rookh". Dentro tinha escrito "Victoria Vega Walker".

Uma rápida pesquisa no Google me disse que o livro era um romance oriental de 1817. Bom, agora eu sei que ela sabe ler e parece gostar de romance. Debaixo tinha um uma cópia de 1852 em mal estado de "Muito Barulho Por Nada", de William Shakespeare. Também tinham outros três livros.

Curiosa, peguei outro livro gasto e abri para a página do título.

"O Imortal; Tristezas de Rosalie e outros poemas. De Caroline Norton."

Olhando o índice, o título de um me chamou a atenção; Meu coração é como uma noz a secar.

Folheei o livro para achar tal poema, e li as primeiras linhas em voz alta.

"Meu coração é como uma noz a secar,

Chacoalhando dentro de sua concha oca;

Você não pode abrir meu peito e colocar

Qualquer coisa fresca dentro dela para habitar."

É sobre um coração partido, algo que eu sabia muito bem como era. Me identifiquei com o poema naquele exato momento, e achei ele excelente. Gentilmente pus ele e o resto dos livros de lado por enquanto.

Em seguida tinha um conjunto de jarras de vidro. Cada um continha uma substância colorida. Abrindo um, senti um pouco um cheiro de lavanda. Creio que eram perfumes, óleos e outros itens de maquiagem. Achei também um espelho de mão quebrado, umas pinças e outras coisas pequenas que não reconheci.

Não pude evitar sentir uma grande empolgação, já que eu sabia que eu tava vasculhando as exatas coisas que ficavam no quarto dela. Embora eu tenha sentido um pouco de culpa, já que eram suas coisas pessoais. Eu comprei, mas, na minha cabeça, ainda pertenciam a ela.

Também tinham uns prendedores de cabelo, assim como um lindo broche. Debaixo parecia ter um pequeno caderno de desenhos. Nele tinham desenhos de paisagens em carvão. Pareciam ser o parque que tinha no canto da cidade.

Ela era uma artista também. Os desenhos eram muito bons, e ela tinha uma certa atenção aos detalhes. Eu fiquei muito impressionada. Ao lado dele tinha um pente que parecia ser feito de marfim. Sem nem pensar, penteei meu cabelo com ele. Fez eu me sentir mais próxima dela. Ao lado também tinha uma escova, também feita de marfim. A escova ainda tinha algumas cerdas grossas. Eu estava para colocar de volta no lugar quando eu vi uma coisa.

Era um único fio de cabelo, preso e retorcido entre as cerdas. Meu coração pulou nessa descoberta. Rapidamente tirei o longo fio de cabelo escuro e segurei pra cima. Tinha por volta de 20 centímetros e era um lindo fio único de cabelo.

Eu nunca fui uma pessoa romântica, mas encontrar um único fio... Por um instante, o abismo que são os anos que nos separam sumiu. Ela estava aqui comigo, mesmo que uma minúscula parte dela. Pode parecer insignificante, mas ter essa pequena parte faz toda a diferença pra mim. Eu, uma gótica sombria e cínica, empolgada por causa de um fio de cabelo. Devo estar ficando doida.

Levei o fio pra luz, pra ver se consigo perceber que cor era. A foto era em preto e branco, então eu não conseguia saber se o cabelo dela era castanho ou preto. Olhando de perto, percebi que ela tinha cabelo castanho. Longos e belos cabelos castanhos. Eu mal podia acreditar que ela estava aqui comigo.

Não querendo perder o que eu tinha, coloquei aquele fio em um envelope com cuidado. Caramba, eu tô muito louca pra estar guardando o cabelo de uma mulher que já tá morta há provavelmente uns 60 ou 70 anos. To agindo como uma completa fangirl. Mas o meu coração tá partido, tô sozinha em um país estrangeiro com um total de zero amigos aqui, então eu tenho o direito de enlouquecer um pouco. Mas tudo que eu tenho que fazer é olhar para aquela foto, olhar para aqueles olhos e eu não me sinto mais tão doida.

Mais embaixo tinha um pedaço de lençol branco. Colocando de lado, fiquei surpresa ao ver uma série de livros pequenos. Pegando um, não vi nenhum título na capa. Não sabendo o que tinha dentro, abri em uma página aleatória.

3 de Outubro de 1866.

Choveu a maior parte do dia. O clima desde a última segunda-feira tem sido um tanto gélido, cinzento e chuvoso. Sinto falta dos raios de sol. Contudo, isto não os afastou da taverna. Ficamos ocupados bem até a noite, até o último dos ébrios partir. Por vezes me preocupo sobre eles, alguns dos soldados parecem muito brutos. Eles encaram-me constantemente e até agarram-me quando meu pai não está olhando. Mas meu pai, sendo um condecorado ex-oficial do exército, sabe como cuidar deles. Eu possuía esperanças de ver minha amiga Caterina hoje. Mas com a chuva e a multidão, não encontrei tempo para ir vê-la. Se não chover amanhã, suponho que irei cavalgar além da vereda Pennington. Não há mais por hoje.

Meu coração quase parou. Peguei outro livro e lá estava mais um registro.

18 de Julho de 1863.

Faz uma semana desde que enterramos a mãe. Agradeço ao Senhor que Ele a tomou rápido e o seu sofrimento pela doença não foi prolongado. O Reverendo Watts pronunciou uma oração especial para ela hoje na Igreja. Infelizmente, isto fez pouco para levantar meus espíritos. Deveras, os espíritos meus, do pai e de minha irmã Trina estão todos muito baixos no momento. Todos sentimos uma terrível saudade. Isto é tudo que quero escrever por hoje.

Eu não conseguia acreditar. Eu não só tinha as coisas dela, um fio de cabelo, mas eu também tinha os diários. Eu poderia realmente conhecê-la. Colocar uma personalidade para aquele lindo rosto. Não dá pra botar em palavras a quantidade de emoção que eu estava sentindo.

Folheando os diários, rapidamente encontrei o primeiro e coloquei no meu criado-mudo, assim como o livro de Thomas Moore. Eu planejava ler todos, mas ia começar com aquele. Ia ser uma ótima mudança de rotina dos romances de terror e HQs que estive lendo.

Já era hora do jantar, então decidi ir ao bar local para comer. Pedi umas porções de cerveja, com bife e torta de ostra. Aprendi a gostar deste prato em específico. Quando eu estava indo para casa, passei por um quadro de mensagens. Pessoas procurando contratar frequentemente colocavam mensagens de que estavam procurando por funcionários. Eu olhei pra ele, já que eu estava precisando de um trabalho de meio período.

"Procurando assistente de laboratório. Não é necessário experiência, mas precisa ser aventureiro e discreto. O pagamento é péssimo e demorado, mas possíveis ótimas recompensas."

Logo embaixo tinha um número de contato e um endereço de e-mail para alguém chamado Professor Sikowitz. Mais estranho do que a escolha de palavras da nota, parecia que foi escrito com giz de cera. E rosa ainda por cima. Eu estava tentada a continuar andando e esquecer isso, mas alguma coisa dentro de mim me disse pra pegar a nota. Peguei o papel do quadro com pressa e enfiei no meu bolso.

Eu não fazia ideia do que esperar desse trabalho, se eu conseguir. Mas meus pensamentos se voltaram rapidamente para Victoria, como normalmente fazia esses dias.


Foi brabo traduzir esse poema pra fazer ele rimar. Tive que fazer uma tradução livre, porque eu não achei uma oficial. E achei divertidíssimo procurar palavras pra fazer o diário parecer arcaico.

O poema que a Jade lê se chama, originalmente, "My heart is like a withered nut", e foi escrito por Caroline Norton.