Esclarecimento: Só reiterando que esta história não me pertence, ela é uma adaptação do livro de mesmo nome, de Barbara Cartland, que foi publicado na série homônima de romances, da editora Nova Cultural.
Capítulo 3
- Posso falar com o senhor ?
Mamoru Chiba levantou os olhos do jornal que lia e viu Usagi ao seu lado. Não a ouviu entrar. Percebeu que ela estava nervosa.
- Mas é claro, miss Hasegawa. Em que posso ser-lhe útil ?
- O senhor me pediu… ontem… para eu ir a Buenos Aires.
- E a senhorita recusou categoricamente.
- Mudei de idéia. Irei… se ainda me quiser.
- Naturalmente que a quero. Tornei as coisas bem claras desde o começo, creio.
Houve uma pausa, após a qual Usagi sussurrou:
- Mas, se eu for… quero que uma quantia de duzentas libras seja paga antes de minha partida.
Apesar da resolução de se manter calma, ela sentiu as faces pegando fogo. Ficou furiosa consigo mesma porque seus dedos tremiam.
- Duzentas libras ? - repetiu Mamoru - Acho que entendo, miss Hasegawa ! Alguém usou de mais habilidade que a senhorita neste assunto.
- O que o senhor quer dizer com isso ?
- Suponho que seu namorado tenha percebido seu valor para mim, lançando mão disso para conseguir vantagens.
Usagi ergueu a cabeça.
- Não é nada do que o senhor está pensando.
- Seu namorado não sugeriu esse pedido ?
- Não tenho namorado.
- E espera que eu acredite ?
- Acredite no que quiser, senhor. A verdade é… - ela parou de falar. Teve receio de revelar coisas sobre si mesma, coisas que vinha escondendo desde o início de seu trabalho.
- Estou esperando que complete a sentença, miss Hasegawa. Gostaria imensamente de saber a verdade.
- Minha verdade não lhe interessa - ela protestou - Estou pronta para partir com o senhor e executar meu trabalho. Mas não posso fazer isso sem conseguir o dinheiro que lhe pedi.
Ela falava com determinação, mas não pôde impedir que suas mãos continuassem tremendo. Era-lhe difícil engolir seu orgulho e suplicar por dinheiro.
Contudo, de que importava seu orgulho em se tratando da saúde da mãe ?
Mamoru fitava-a atentamente. E disse:
- Estou pronto a lhe dar qualquer quantia razoável, miss Hasegawa. Porém, como seu empregador, valho-me do direito de saber a razão dessa necessidade.
Usagi pensou em desafiá-lo. Teve a impressão de que Mamoru divertia-se em provocá-la. Depois, refletiu consigo mesma que não tinha a mínima importância o que ele imaginasse ou sentisse a seu respeito. O essencial era sua mãe poder ir à Suíça.
"Mamoru reluta", pensava Usagi ,"só por uma questão de princípios; não tolera oposições da parte de uma mulher e quer que todos os seus empregados o obedeçam cegamente".
- Ainda estou esperando, miss Hasegawa - repetiu ele, ciente do conflito que crescia dentro dela.
- Minha mãe necessita de um tratamento especial.
- Onde ?
- Na Suíça.
- Sinto muito por ela estar doente.
- Obrigada.
- Darei instruções ao sr. Akagi para que lhe faça um cheque de duzentas libras. Direi a ele que acrescente cem libras para suas despesas de viagem à América do Sul.
- Como o senhor vai pagar tudo, penso não ter despesas extras.
- Haverá despesas extras, garanto - contrapôs Mamoru - Terá de comprar vestidos, pois o clima da Argentina não é igual ao daqui.
- Sei disso.
- Desde que começou a trabalhar comigo - continuou o sr. Chiba, ignorando o comentário de Usagi - , notei que seu guarda-roupa não foi muito variado. Pagarei pelo que precisar para a viagem a Buenos Aires.
- Não vou permitir que o senhor compre roupas para mim ! - ela protestou.
- Não seja tola ! Sabe, tanto quanto eu, que não pode fazer despesas extras, com sua mãe doente.
Era verdade. Mas, para Usagi, havia qualquer coisa de degradante em aceitar presentes pessoais, como roupas.
Então lembrou-se do quanto significariam para sua mãe as cem libras a mais. Tinha já uma idéia de como conseguir os vestidos, sem tocar nesse dinheiro.
- Aceito, então, o que me oferece, senhor - concordou Usagi com um suspiro - Será o mesmo que a libré… de um lacaio paga pelo patrão.
- Exatamente o mesmo, miss Hasegawa. Apenas com a diferença de que um lacaio se comportaria de maneira um pouco mais respeitosa.
Usagi percebeu que o atingira, e ele revidava o golpe. Estavam quites !
- Posso desde já prever que teremos uma viagem agradável, miss Hasegawa - acrescentou ele num tom sarcástico, enfatizando a palavra "agradável".
- Estarei o tempo todo ao seu dispor, para trabalhar - replicou Usagi.
E odiou-o ainda mais porque ele sorria.
Não obstante, ao levar o cheque para casa, naquela noite, sentia-se radiante. Iria fazer planos imediatos para mandar a mãe à Suíça.
- Tenho uma idéia, mamãe - sugeriu Usagi - Convide miss Yukimura para ir com você. Não pode viajar sozinha, e será uma boa oportunidade para miss Yukimura viajar. Ela poderá permanecer na Suíça o tempo que quiser.
- Mas você vai precisar das cem libras para as roupas, Usagi.
- E achou mesmo que eu ia gastar esse dinheiro em roupas, mamãe ? Tudo de que preciso está nas malas ainda fechadas, que trouxemos de Buenos Aires.
- Havia me esquecido delas ! - exclamou a sra. Tsukino.
- Mas eu não ! Alguns de meus vestidos, de dois anos atrás, são muito infantis para mim. Porém os seus serão perfeitos. Temos o mesmo corpo, lembra-se ?
Usagi foi buscar as malas que estavam guardadas num armário do corredor. Pegou alguns vestidos e experimentou-os.
- Servem mesmo para você ! - observou a sra. Tsukino. Havia pequenas alterações a serem feitas. Usagi propôs-se executá-las à noite, e miss Yukimura se ocuparia disso durante o dia. Até a sra. Tsukino insistiu em ajudar um pouco.
Muitos vestidos eram de musseline, leves, próprios para o verão, de cores vivas e bom gosto.
- São lindos demais para mim, para uma simples secretária - declarou Usagi.
- Seu pai sempre quis que eu fosse a mais elegante das esposas dos diplomatas ! Às vezes, penso que até exagerei um pouco.
- Você sempre se vestiu na última moda, mamãe. E o estilo não mudou muito nesses dois anos.
Na verdade, as blusas continuavam justas e as saias amplas, drapeadas, cheias de babados e ruches. Os trajes de noite eram decotados e de ombros nus.
- Não vou precisar de toaletes para a noite - disse Usagi.
- Leve tudo, minha filha. Enfim, nunca se sabe. O sr. Chiba pode querer que o acompanhe numa recepção, ou convidá-la para jantar fora. Não quero que se envergonhe de você.
Usagi riu muito.
- Vou ter uma aparência ridícula com esses meus óculos escuros. Sabe, mamãe, o sr. Chiba pediu-me que os tirasse. Ele disse que eu me parecia com uma coruja.
- Concordo com ele, Usagi. Mas tenho medo do que possa acontecer se tirar os óculos.
- Eu também. Não que faça alguma diferença no caso do sr. Chiba. Ele não gosta de mim…
- Não gosta de você, minha filha ?
- Vivemos em constante batalha - ela sorriu - O sr. Chiba me provoca, e eu o irrito o quanto posso.
- Então, por que quer levá-la a Buenos Aires ?
- Porque não encontrou ninguém eficiente para tomar meu lugar. Tenho certeza de que, se houvesse uma secretária para me substituir, ele se livraria de mim.
- Não gosto de pensar em você trabalhando nessas condições, Usagi. Enfim, de um jeito ou de outro, seu trabalho me preocupa.
- Só sei que os óculos de papai vieram a calhar. E agora, mamãe, vou pendurar estes vestidos para que as rugas desapareçam. Depois, passarei a ferro todos eles.
- Miss Yukimura pode fazer isso para você. Ela passa muito bem. Ficará radiante quando souber que vai comigo à Suíça, e gostará de retribuir de alguma maneira. Ela é esse tipo de pessoa.
"Enquanto que eu e o sr. Chiba só jogamos pedras um no outro", pensou Usagi.
No fundo da mala, embaixo de uma folha de papel de seda, ela encontrou mais um vestido. Puxou-o para fora.
- Não conhecia este, mamãe ! - exclamou.
- Eu nunca o usei, minha filha.
- É lindo !
O vestido de cetim branco era todo enfeitado com ruches de tule também brancos, o que lhe dava um aspecto etéreo.
- Seu pai mandou buscá-lo em Paris para um baile na casa do presidente da Argentina - explicou a sra. Tsukino - Eu ia vestia-lo quando seu pai entrou no quarto contando-me as mentiras e acusações que circulavam a respeito dele.
- Oh, mamãe ! Deve ter sido terrível !
- E foi. Desistimos de ir ao baile, é claro. Eu não havia mostrado o vestido a você porque queria fazer-lhe uma surpresa. Depois, com tudo o que houve, nem me lembrei mais de nada.
- Que pena você não tê-lo usado, mamãe. Parecia sempre uma princesa quando se arrumava para sair !
- Às vezes eu tinha um pouco de vergonha do dinheiro que seu pai gastava com minhas roupas. Ele comprava tudo do bom e do melhor.
- Eu sei… mas vou deixar o vestido aqui mesmo, dentro da mala.
- Não, não ! Leve-o, Usagi. Só me dará prazer o fato de você usá-lo. Gosto de pensar que talvez vá a um baile na casa do presidente com ele, ou a um dos palácios da Plaza San Martin, onde há sempre grandes recepções.
Ela fez uma pausa antes de continuar:
- Posso visualizá-la dançando pelo salão, seus cabelos brilhando à luz das velas, e sendo, de longe, a mais bonita das mulheres presentes !
Havia tanto entusiasmo no modo como sua mãe falava, que Usagi não discutiu. Apenas inclinou-se e beijou-a.
- Vou levá-lo, então, mamãe. E espero que seus sonhos se transformem em realidade.
Mas, consigo mesma, pensou:
"Não há a menor chance disso acontecer !"
Sabia que a mãe ainda a considerava uma moça da alta sociedade; uma moça festejada e cortejada; uma moça que os homens elogiavam não somente pela beleza, mas também pela posição social.
Por amar muito a mãe, Usagi não quis desiludi-la explicando que não havia a menor possibilidade de ela viver nesse mundo de luxo outra vez.
Por causa da mancha existente devido à memória de seu pai, homem nenhum desejaria casar-se com ela e reviver a terrível publicidade, as acusações e a vergonha.
Seu destino era ficar sozinha como miss Yukimura, e viver num quartinho em alguma ruela insignificante.
Sendo, contudo, uma mulher prática, resolveu não pensar no futuro. O presente era o que importava.
Podia até considerar-se uma pessoa feliz por ter encontrado emprego com alguém como Mamoru Chiba.
Ela o odiava, queria vingar-se dele pelo modo como tratara seu pai; mas, no momento, ele dava-lhe meios para que sua mãe tivesse conforto.
Numa situação normal, estaria cheia de gratidão por ele; porém dizia a si mesma que não havia motivo para gratidão, pois o sr. Chiba pensava apenas em si, em suas necessidades.
Quando não precisasse mais dela, a dispensaria… talvez quando voltasse da Argentina…
Mamoru Chiba era um homem, aos olhos de Usagi, cruel, egoísta, obstinado e arrogante. Ela às vezes tinha vontade de arriscar-se a perder o emprego e insultá-lo.
Ela fora bem rude, naquela manhã, e mereceria ser despedida.
Vira ódio nos olhos dele. Resolveu, por isso, ser mais prudente no futuro.
Houve tanto a ser feito nos dias subseqüentes que, a cada noite, quando Usagi punha a cabeça no travesseiro, dormia imediatamente.
Não tinha tempo para pensar, não tinha tempo para se preocupar.
O dr. Garajan providenciara todos os preparativos para a viagem à Suíça, e as duas mulheres partiram na véspera do dia em que Usagi seguiu para a Argentina na companhia de Mamoru Chiba.
Ela trabalhou horas a fio nos dias que antecederam sua partida, para prover o necessário à mãe, e concluir os trabalhos do escritório. Achava que nunca chegaria ao fim.
Além de cartas, relatórios que teve de preparar, havia uma infinidade de presentes a serem enviados aos amigos do sr. Chiba, e mercadorias a serem remetidas a bordo, antes do embarque.
Entre estes últimos incluíam-se caixas de orquídeas de vários tipos, que precisavam ser conservadas em geladeiras, à disposição do sr. Chiba.
Havia também uma coleção de perfumes franceses, luvas, pequenos objetos de arte, o que a fez acreditar que uma das mulheres na qual ele estava interessado os acompanharia na viagem.
Não teve idéia de quem seria até o embarque em Southampton. Usagi divertiu-se com o modo como seu chefe viajava. Nada menos do que quatro vagões do trem foram reservados na saída de Londres. Um para o sr. Chiba, um para os membros da comitiva, um para os dois valetes, e o quarto para os amigos que desejavam vê-lo a bordo para as despedidas.
Um secretário encarregado da bagagem cuidou de tudo, e Usagi não teve nada a fazer além de subir a prancha de embarque para o convés de primeira classe.
Ela esperou que lhe indicassem onde ficava sua cabine.
Mamoru Chiba, muitíssimo bem trajado como sempre, subiu a bordo acompanhado de amigos. Toda a tripulação apressou-se em recebê-lo, e Usagi percebeu que seu chefe era bastante conhecido. Claro, fazia essas viagens com regularidade, sempre pela mesma linha de navegação, concluiu ela. Mamoru conversava com o comissário de bordo quando uma passageira apareceu. Lindíssima, vestia-se com apuro e exagero, tal qual uma graciosa borboleta voejando entre as pessoas presentes.
Todas as mulheres vestiam-se discretamente, com roupas de cores escuras, como as senhoras inglesas consideravam adequado para viajar.
A recém-chegada olhou à sua volta e deu uma exclamação de alegria.
- Sr. Chiba ! - ela estendeu a mão enluvada num gesto dramático.
- Sra. Hernández ! - replicou Mamoru - Que surpresa, e que prazer !
- Não tinha idéia de que viajaríamos juntos. Agora sei que estou segura.
Os amigos de Mamoru a fitavam com indisfarçável admiração.
- Tenho tanto medo do mar - disse ela - Agora sei que, se o navio naufragar, você me salvará.
- Qualquer um de nós gostaria de fazer isso - um dos cavalheiros declarou.
- Então, vamos ficar todos juntos ! - revidou ela, com olhar provocante.
- Sua cabine é deste lado - alguém sussurrou ao ouvido de Usagi. Era o secretário do sr. Chiba.
Ela seguiu-o, ouvindo sonoras gargalhadas atrás de si, com certeza por qualquer coisa que a sra. Hernández dissera a Mamoru e seus amigos.
"Agora sei para quem são as orquídeas", pensou ela. "Deve ter sido enorme a habilidade da sra. Hernández para fingir que o encontro foi casual".
Nas semanas anteriores ao embarque, Usagi mandara, por ordem de seu chefe, flores e presentes a ela. Podia entender, naquele instante, a razão de Mamoru estar apaixonado, pois a sra. Hernández era realmente sedutora.
A cabine de Mamoru, uma das maiores do navio, tinha uma saleta contígua. A de Usagi ficava na outra extremidade do corredor e, apesar de menor, não deixava de ser confortável e razoavelmente espaçosa. Havia lá uma escrivaninha onde fora colocada uma máquina de escrever.
- Os valetes do sr. Chiba viajam na segunda classe - informou-a o secretário - Mas eles providenciarão qualquer coisa que a senhorita necessite.
- Costumo cuidar de mim mesma, obrigada - respondeu Usagi.
- Espero que faça ótima viagem.
- Obrigada.
Sua bagagem era enorme. Por insistência da mãe, trouxera todos os vestidos. Porém conservara na cabine apenas duas malas. As outras foram deixadas no depósito do navio.
Usagi embarcou com o mesmo vestido preto de todos os dias. Quis, de propósito, irritar o sr. Chiba aparecendo com o traje costumeiro, e não com as roupas que ele imaginava ter comprado para ela.
Havia, numa das malas, um lindo traje de viagem pertencente à sra. Tsukino. Mas, por perversidade, Usagi decidira não vesti-lo.
Sentou-se na cama pensando na mãe, que já estava na Suíça. De repente, encheu-se de entusiasmo por causa da viagem por mar.
Mamoru podia ser difícil, e ela o odiava; mas graças a ele estava a bordo de um navio. Algo muito jovem e incontrolável dentro dela a fez sentir-se encenando uma aventura. Usagi sonhava com Buenos Aires, amava a cidade, mesmo sabendo-a ligada às lágrimas que vertera ao ver a reputação do pai reduzida a zero, pelos inimigos.
"Pobre papai !", pensava.
Lembrou-se de que ele lhe dizia para levantar a cabeça, sempre.
"Não serei derrotada. Talvez, ao chegar à Argentina, eu tenha chance de destruir aqueles que o destruíram".
Ela odiava Mamoru Chiba, mas esse ódio era nada comparado ao que nutria por Tetsuo Inamoto. Tetsuo fora o instigador de toda a trama. Ele, deliberadamente, alimentara os boatos apenas porque amava sua mãe, embora "amor" fosse uma palavra decente demais para o sentimento que dedicava a ela.
Usagi entendia que o insulto infligido a Tetsuo pelas mãos de seu pai clamava por vingança.
Tetsuo Inamoto tinha um nome inglês e um pai inglês; mas a mãe era italiana, originária de Nápoles. Para uma napolitana, a vingança deve continuar até que haja derramamento de sangue !
"Tetsuo venceu ! Tetsuo triunfou !", repetia Usagi internamente, com amargura. "A morte de papai foi, para ele, a melhor das vinganças".
Em seguida, resolveu, nos próximos dezessete dias, não pensar nos inimigos que encontraria na Argentina. Eles não a reconheceriam, de qualquer maneira, e ela teria facilidade em arquitetar sua desforra com calma.
Antes disso, usufruiria com grande prazer daquela viagem por mar. A emoção de ver o navio zarpar afastou seus pensamentos fúnebres.
Ela foi ao convés superior, acreditando que ninguém estaria por lá. De fato, a maior parte das pessoas concentrava-se junto à prancha de embarque, conversando com amigos até o último instante.
A orquestra executava uma música alegre, as sirenes soavam e, entre gritos de despedida, acenos de mãos, lenços sacudindo no ar, o navio distanciou-se do cais seguindo o rebocador que o levava para as águas profundas do Canal da Mancha.
O Sol se punha. Ela sabia que, na primeira noite a bordo, o jantar era servido cedo.
Muitos passageiros não se preocupavam em trocar de roupa, com a habitual desculpa de que não tiveram tempo de abrir as malas.
Usagi, contudo, decidiu pôr um dos vestidos de sua mãe, bem simples, e tirou a sombria roupa preta que, sem dúvida, desagradara profundamente a Mamoru Chiba.
Desceu para a sala de refeições assim que a sineta tocou. Quando disse ao maître quem era, ele a conduziu a uma mesa junto à parede.
Usagi comeu sozinha. Divertia-se vendo os passageiros entrarem. Os mais importantes eram levados à mesa do comandante. Outros eram acomodados com oficiais graduados; e os demais, em qualquer lugar do salão.
Mamoru Chiba ocupava, é claro, a mesa do comandante, como também a sra. Hernández.
Apareceram no salão separadamente, mas sentaram-se lado a lado, e mantiveram uma conversa animada.
A sra. Hernández usava um traje de noite muito elegante, e parecia não se perturbar por ser a única mulher em traje de gala.
Estava linda de vermelho, cor que realçava os cabelos escuros e a pele de magnólia. Tinha os olhos brilhantes e lábios provocadores.
Usagi não se surpreendeu, na manhã seguinte, ao receber ordens de enviar uma caixa de orquídeas à cabine da sra. Hernández.
Pouco antes do meio-dia, de bom humor, Mamoru sentou-se para ditar-lhe um relatório e fornecer dados para vários contratos. Uma cópia ia ser enviada a diversas pessoas em Buenos Aires.
Ele falava depressa, mas não com a mesma velocidade usada em Londres, com o único intuito de provocá-la.
Após duas horas de trabalho, ele disse:
- Espero que esteja bem instalada, miss Hasegawa.
- Estou muito bem, obrigada, senhor.
- Permite-me que elogie o seu traje ? É lindo !
Usagi pusera um vestido azul-safira, de sua mãe. Tinha aquele toque de elegância de tudo que pertencia à sra. Tsukino.
- Obrigada, senhor.
- É cedo demais para lhe indagar se está se divertindo. Vou lhe fazer essa pergunta só quando chegarmos à ilha da Madeira. Acho que o mar vai estar agitado nos primeiros dias.
As palavras ditas por ele foram proféticas.
Soprou um vento forte na travessia da Mancha, e o mar ficou turbulento.
Usagi viajava bem por mar, e foi quase a única mulher a comparecer na sala de refeições no dia seguinte. Nem sinal da sra. Hernández durante quatro dias.
Não era fácil caminhar pelo navio. Após receber algumas golfadas de água no convés, resolveu retirar-se para sua cabine e ler, até que o sr. Chiba a chamasse.
A cada dia ela recebia instruções para mandar outra caixa de orquídeas à sra. Hernández.
Usagi soube, pela comissária de bordo, que a pobre senhora estava prostrada na cama, terrivelmente enjoada.
- E faz muito barulho por causa disso - informou a comissária, de mau humor - Corro o dia inteiro para atender aos chamados dela.
- A sra. Hernández não tem sua criada de quarto ? - indagou Usagi.
- Criadas de quarto ! São as primeiras a ficar doentes quando o mar está agitado. Sucumbem antes das patroas !
- Posso ajudá-la em alguma coisa ? - prontificou-se Usagi - Eu nunca enjôo no mar, e estou disposta a auxiliá-la.
- É muita bondade sua, miss - replicou a comissária, bastante surpreendida - Não é com freqüência que alguém me oferece a mão. Temos poucas comissárias nesta viagem, não sei por quê. Mas espero dar conta de tudo.
Entretanto, por Usagi ser tão insistente, a comissária lhe trouxe o vestido de uma passageira para passar, e duas camisolas para lavar.
Eram peças delicadas, cheias de rendas, porém Usagi lidou com elas sem dificuldade. E a comissária ficou muito agradecida.
- Nunca conheci ninguém tão bondosa como a senhora - disse ela.
- Não tenho trabalho demais a fazer. Pode, sem constrangimento, dividir sua tarefa comigo !
Mamoru Chiba trabalhava com bastante irregularidade. Às vezes ditava por duas ou três horas sem interrupção; outras, passava um dia inteiro sem dar sinal de vida.
Ele tinha muito a ler, imaginava Usagi, a se concluir pela quantidade de livros que trouxera consigo, e que enchiam sua saleta particular.
Eram compêndios sobre política, e ela achou que o pai estava certo ao dizer que Mamoru almejava a presidência da República Argentina.
Embora o detestasse, Usagi reconhecia que ele seria um bom governante.
Os argentinos amavam o esporte. Gostavam que seus líderes fossem esportistas, atléticos, aptos a passar um dia inteiro na sela de uma montaria sem sentir cansaço, e bons nas competições de pólo. Mamoru era um dos melhores jogadores do mundo, nesse esporte.
Além disso, ele conhecia profundamente as finanças do país, sendo hábil negociador. Todas essas qualidades eram quase impossíveis de ser encontradas num só homem.
O mar ficou mais calmo e o Sol brilhava no céu quando chegaram à ilha da Madeira, o único local onde aportariam, entre a Inglaterra e Buenos Aires.
Usagi apenas ouvira falar da ilha. Em suas outras viagens à América do Sul, sempre fora via Lisboa.
O navio ancorou na baía de Funchal. A ilha assemelhava-se a um refúgio de contos de fadas, subindo em escarpa da praia pedregosa às montanhas cobertas de nuvens.
Tudo era verde por trás das casas com muros brancos, amarelos ou azuis, telhados vermelhos e venezianas verdes.
Antes mesmo do navio atracar, ela reconheceu as bananeiras, as palmeiras e a profusão de videiras.
No momento em que o navio entrou no cais, uma multidão de pessoas em pequenos barcos saiu da praia ao encontro dele.
Eram vendedores de frutas, de cestos, e de trabalhos feitos de palha. Erguiam bem alto sua mercadoria e negociavam com os passageiros debruçados na amurada do convés.
Funcionários da alfândega subiram a bordo, com suas fardas pretas, branca e dourada. Meninos mergulhavam, praticamente nus, implorando aos passageiros que jogassem moedas para que eles as apanhassem nas profundezas das águas límpidas.
Usagi observava tudo, extasiada !
A agilidade e destreza dos meninos faziam-na desejosa de bater palmas; eles nunca perdiam uma moeda. De vez em quando, dois ou três deles lutavam embaixo d'água pela posse de um shilling.
Terminadas as operações alfandegárias, os passageiros puderam desembarcar. Sabendo que Mamoru não iria precisar dela, Usagi foi a primeira a descer a prancha.
Não era fácil caminhar nas trilhas cobertas de cascalho cinzento da ilha. O constante tráfego de carroças tornara-as escorregadias como sabão, e era preciso muito cuidado para não cair.
Fora da aldeia havia carruagens de aluguel para o turista que pudesse pagar. Não eram baratas. Podia-se então percorrer as matas e apreciar as flores multicoloridas, especialmente os copos-de-leite, nativos da região.
Por insistência de sua mãe, Usagi levara consigo dez libras para os gastos de viagem.
- Você precisa de algum dinheiro, querida - dissera a sra. Tsukino - Pode querer dar uma gorjeta, uma esmola na igreja, comprar um carretel de linha. E não tem cabimento pedir dinheiro ao sr. Chiba, depois de tudo o que ele lhe proporcionou !
Para não contrariar a mãe, Usagi tirou dez libras das trezentas fornecidas por Mamoru, propondo-se a comprar um presente para ela com o que sobrasse.
Mas não tinha intenção de desperdiçar dinheiro. Por isso, foi a pé pelos atalhos sinuosos até atingir a estrada poeirenta. De lá, subiu pela encosta do morro.
Imaginou que, bem do alto, teria uma vista magnífica. E acertou.
Soprava uma brisa suave que amenizou o calor do Sol, e a vegetação era tão linda que compensou o esforço da subida.
Lá embaixo, o mercado tinha o aspecto de um brinquedinho de criança. Usagi agradeceu a Deus por não ter ido até lá, fugindo assim da tentação de fazer compras.
Muitos passageiros do navio passeavam nas carroças de madeira, características da ilha. Usagi viu duas pessoas numa carruagem aberta, que passou bem perto dela. Não foi difícil reconhecer o vestido vermelho da sra. Hernández, e Usagi comparou-a a um botão de rosa.
O chapéu da bela senhora, enfeitado de flores, era amarrado sob o queixo com fitas também vermelhas. Ela estava coberta de diamantes, o que a sra. Tsukino consideraria de mau gosto para a ocasião, Usagi lembrou-se logo disso.
"Estará meu chefe apaixonado por ela ?", questionou-se.
Sentavam-se bem perto um do outro, e a jovem imaginou que estivessem de mãos dadas.
"Talvez", admitia ela, "vão apear no meio da mata para poderem se abraçar com mais liberdade. Como mulher casada, devia se comportar com mais compostura", pensou.
Afinal, o sr. Julio Hernández era um membro importante do governo. Usagi recordava-se de que ele fora presidente da Câmara do Comércio. No momento, ocupava o cargo de Ministro das Finanças do país. Apesar de atraente, tinha um temperamento fácil de se inflamar, e portava-se de maneira agressiva muitas vezes.
Usagi desconfiava de que seu pai nunca gostara do sr. Hernández, embora mantivesse algum contato com ele.
Enfim, não se podia negar que o sr. Hernández tinha uma esposa muito bonita.
Usagi achava que ele não ficaria nada feliz se soubesse que a mulher flertava com Mamoru Chiba, famoso na Argentina por suas conquistas amorosas.
Observando-os enquanto seguiam pelas vias tortuosas, ela notou que outra carruagem, com um só homem, os acompanhava. Achou aquilo estranho. Lembrou-se então logo da conversa que tivera com a comissária de bordo, no dia anterior.
- Há um homem sempre postado no corredor - comentara Usagi - É baixo e moreno e tem uma cicatriz na face. Nunca o vejo na sala de jantar, por isso suspeito que ele não esteja na primeira classe.
- E não está - respondera a empregada - Sei de quem se trata, e já falei com minha patroa sobre ele.
- Será um ladrão ?
- Acho que não. Mas não me surpreenderia se fosse um jornalista.
- Por que acha que ele trabalha para um jornal ? - insistiu Usagi.
- Bem. Porque fez muitas perguntas. Quis saber sobre todas as pessoas deste andar.
- Sobre mim também ? - ela teve um repentino receio de que sua identidade pudesse ser descoberta.
- Não, não sobre a senhorita, miss Hasegawa. Mas interessou-se sobre seu chefe.
-Por que será ?
Usagi supôs que talvez o homem fosse de alguma firma rival do sr. Chiba. Ela sabia que todas as concessões e contratos efetuados na Inglaterra tinham de ser mantidos em segredo até a chegada à Argentina.
Naquele instante, porém, no alto da montanha, ela teve certeza absoluta de que o homem que seguia a carruagem do sr. Chiba era o mesmo do navio, embora estivesse vendo-o à distância. Reconheceu-o pela silhueta e pelo chapéu esquisito que usava. E soube a resposta.
O homem em questão não era um jornalista, mas sim um detetive.
Os argentinos, terrivelmente ciumentos de suas esposas, jamais admitiam que elas mantivessem um romance fora do casamento. E Julio Hernández não consistiria numa exceção à regra. Sem dúvida contratara um detetive para seguir os passos da esposa.
Sentada no meio dos copos-de-leite, Usagi se perguntava se ali estaria a sua vingança.
Se o detetive informasse ao marido da sra. Hernández que ela alimentava um namoro com Mamoru Chiba, a desforra viria na certa.
Haveria um duelo, ou o sr. Chiba poderia cair no ostracismo, não sendo mais respeitado pelos membros da sociedade. E suas ambições à presidência da República iriam por água abaixo.
Os argentinos admiravam homens de sangue quente, esperavam que tivessem amantes, que fossem alegres e um tanto malandros. Porém, meter-se abertamente com a mulher de um homem famoso, seria outra história.
Na Argentina, a mulher era considerada propriedade do marido, quase uma escrava. E, assim como se punia um ladrão de cavalos com a forca, não se considerava crime matar, a sangue-frio, um adúltero.
"Eis aí minha vingança !", refletia Usagi. Mas… difamar o sr. Chiba...?
Ela voltou para o porto. Uma lancha levou-a ao navio.
Uma hora mais tarde, Mamoru e a sra. Hernández subiram a bordo. O homem com a cicatriz no rosto seguiu-os numa lancha, logo em seguida.
Usagi aguardou até o instante em que supôs que seu empregador estivesse na saleta, e para lá se dirigiu.
O navio levantava âncora e estava em meio ao processo para zarpar. Muitas pessoas aglomeravam-se no convés, apreciando as manobras. Mamoru, viajante experiente, não se interessava por isso.
- Ia mandar chamá-la, miss Hasegawa - disse ele, assim que a viu - Quero acrescentar um ou dois itens no relatório que redigimos ontem. A senhorita passeou pela ilha ?
- Passeei.
- É linda, não ?
- Muito linda, senhor.
Mamoru achou-a estranha, por isso perguntou:
- O que há ?
- O senhor foi seguido esta tarde. Há um homem a bordo fazendo perguntas sobre sua pessoa. Ele fica o tempo todo no corredor, aí fora.
- O que acha que ele deseja ?
- Não tenho idéia, mas julguei que devia preveni-lo.
- Por que se preocupa comigo, miss Hasegawa ?
Ela considerou a pergunta embaraçosa. Mas confessou o que pensava:
- Um escândalo… seria prejudicial à sua carreira.
- E com certeza isso a agradaria. Já demonstrou claramente, muitas vezes, que me detesta, miss Hasegawa.
- Não obstante, e sabendo disso, o senhor me trouxe nesta viagem.
- Eu precisava da senhorita. Ao mesmo tempo, estou curioso quanto à razão de sua atitude hostil.
- Acho… senhor… que devíamos começar nosso trabalho.
- Quero uma resposta à minha pergunta. Por que não quer que eu seja desacreditado ? Garanto que sabe, miss Hasegawa, o que esse homem deseja descobrir a meu respeito.
- Sei, mas não é de minha conta.
- Preocupou-se com a minha reputação. Será por estar grata a mim ? - não havia dúvida quanto à ironia da pergunta. E Usagi replicou:
- Não… não é isso.
- Então, o que é ?
- Uma pessoa cujo julgamento eu respeito… uma vez disse que o senhor seria um ótimo presidente da Argentina.
- Quer dizer que ouviu falar sobre mim antes de me conhecer ?
Usagi corou. Devia ter imaginado que a Mamoru não passaria despercebida essa observação.
- O senhor é bem conhecido - murmurou ela.
- Não muito fora da Argentina - após uma pausa, ele acrescentou: - E concorda com seu informante ?
- Concordo.
- Apesar de me detestar ?
- Sim.
Usagi falava em monossílabos e com certo medo.
- Ao menos é honesta, miss Hasegawa. E pode dizer por que me detesta ?
- Não !
- Por que não ?
- Porque não tenho obrigação de fazer isso, senhor. Permita-me lembrar-lhe de que estou aqui para trabalhar. Meus sentimentos, seja lá quais forem, não devem interessá-lo.
- Por mais estranho que pareça, me interessam. E, francamente, miss Hasegawa, acho irritante trabalhar com alguém cuja atitude é de ódio, e cujas palavras soam como se saíssem de um frigorífico - ele fez uma pausa e perguntou: - Não tem nada a responder ? Só Deus sabe como é horrível conversar com uma mulher tal qual uma esfinge, um enigma !
- Não estou aqui para conversar, senhor.
- Mas eu quero conversar com você - disse Mamoru, passando a tratá-la com mais intimidade - Se vou ficar privado do prazer da companhia da sra. Hernández pelo resto da viagem, tenho de me contentar em conversar com você.
- Sinto muito pelo sacrifício ! - replicou ela com sarcasmo.
- Não sei onde foi educada, mas é óbvio que lhe deram liberdade demais, um erro no caso de uma moça tão jovem. Só espero que um de seus amiguinhos, embora diga que não tem nenhum, lhe dê umas boas palmadas de vez em quando.
Usagi não respondeu, e ele disse, de mau humor:
- Bem, sente-se. Ao menos é um pouco mais humana quando trabalhamos juntos. Se eu tiver de descongelar esse "frigorífico", é melhor que comece pelo único contato que temos tido até então.
Ela sentou-se e abriu o caderno de notas.
- Estou pronta, senhor - declarou ela com falsa humildade. Queria enfurecê-lo.
Por trás dos horríveis óculos, Usagi tinha um olhar triunfante.
Conseguira atingi-lo. Vencera. Conseguira quebrar a arrogante auto-satisfação do sr. Chiba. Ao mesmo tempo… salvara-o !
P.S.: Nos vemos no Capítulo 4.
