Esclarecimento: Só reiterando que esta história não me pertence, ela é uma adaptação do livro de mesmo nome, de Barbara Cartland, que foi publicado na série homônima de romances, da editora Nova Cultural.


Capítulo 4

Usagi preparava-se para o jantar, quando ouviu uma pancada à porta. A comissária de bordo entrou, entregando-lhe uma caixa.

- Com os cumprimentos do sr. Mamoru Chiba - disse ela, toda contente.

Usagi verificou o conteúdo. Mal podia acreditar que ele lhe mandava as orquídeas que comprara para a sra. Hernández.

Pensou em enviar-lhe a caixa de volta. Tentava adivinhar por que a presenteara com as flores. Havia dois motivos possíveis. Primeiro porque, na sua ingenuidade, acreditava que ela tomaria aquilo como um agradecimento por tê-lo prevenido quanto ao detetive. Segundo, por querer desviar a atenção do mesmo detetive para outra mulher que não fosse a sra. Hernández.

Considerou a segunda razão mais plausível. Porém, de qualquer modo, não deixava de ser um insulto.

- São lindas ! - exclamou a comissária.

- Gosta ? Então são suas. Eu não gosto de orquídeas.

- E eu não tenho oportunidade de usá-las - replicou a empregada, rindo.

- Talvez tenha alguma conhecida que ficaria grata ao receber essas flores - sugeriu Usagi.

- Bem, na verdade, tenho. Há uma senhora neste mesmo corredor, que não está se sentindo nada bem. É a sra. Salas. Ela tem três crianças e realmente acho que um presente como este poderia reanimá-la um pouco.

- Então, leve-o para ela.

- Mas combinam com seu vestido, miss - insistiu a moça.

- Como já lhe disse, eu não gosto de orquídeas. São muito luxuosas para minha posição de simples secretária.

- Acho que está sendo modesta demais, miss Hasegawa. Mas, antes que me esqueça, tenho algo interessante a lhe contar.

- O quê ?

- Lembra-se do homem sobre o qual falamos, que não sai do corredor ?

- Lembro-me, é claro.

- Pois bem, minha patroa ordenou-lhe que permanecesse na segunda classe, a classe para a qual adquiriu a passagem.

- Ótimo !

- E sabe o que aconteceu ? Ele trocou seu bilhete para a primeira classe.

- Quer dizer que pagou a diferença ?

- Pagou ! Talvez não tenha achado a segunda classe boa para ele.

- Sim, deve ser - concordou Usagi.

Ela concluiu que fora uma felicidade ter dado aquele passeio pela ilha e ter visto o detetive seguindo o sr. Chiba. Caso contrário, o homem teria muito a relatar a quem o contratou.

Usagi desceu para jantar um pouco mais tarde que de costume, e o salão estava repleto. Notou que a sra. Hernández já se encontrava à mesa do comandante, linda como sempre, com um vestido de seda verde que combinava com seu longo colar de esmeraldas.

Usagi sempre admirara a beleza das jovens argentinas que atingiam a maturidade aos quinze anos. Infelizmente, porém, envelheciam depressa.

A sra. Hernández devia estar no clímax de sua beleza, e era fácil de entender que nenhum homem resistiria ao convite daqueles olhos escuros e lábios provocantes.

Assim que Usagi fez o pedido do jantar, Mamoru entrou no salão. Ele foi à mesa do comandante, sussurrou algumas palavras ao ouvido dele e, para espanto de Usagi, sentou-se à sua mesa. Trazia alguns papéis na mão.

- Expliquei ao comandante - disse Mamoru - que recebi alguns cabogramas importantes que necessitam de uma resposta imediata. Pedi-lhe desculpas por não sentar-me à mesa dele, a fim de poder discutir o assunto com minha secretária.

- E recebeu mesmo os cabogramas ?

- Sim. Mas não são de grande importância e nem necessitam de resposta urgente. Por isso, para sustentar minha alegação, precisamos conversar. Não podemos ficar em silêncio, como pessoas casadas que esgotaram todos os assuntos na vida em comum.

Ela sorriu. Mamoru apanhou um cabograma e deu-o a ela.

- Finja que aí está escrito, por exemplo, que os ingleses encomendaram milhões de toneladas de carne congelada - sugeriu Mamoru - Ou, se preferir, que a Argentina está em bancarrota, e que precisamos discutir como nos orientar ante a crise econômica do país.

O encarregado dos vinhos aproximou-se da mesa deles, e Mamoru perguntou a Usagi:

- Prefere vinho branco ou tinto ?

- Bebo água, obrigada.

- É uma bebida que eu não recomendaria numa viagem a bordo - protestou ele.

E pediu uma garrafa de Piesporter. Era o vinho preferido do sr. Tsukino, e ela tomou-o com prazer.

- Posso cumprimentá-la pelo seu vestido ? - perguntou ele.

- Talvez eu é quem deva cumprimentar o senhor - replicou Usagi, não se esquecendo de que ele pensava ter pagado pelo vestido.

- Porém, acho que está faltando um ornamento - continuou Mamoru - Não recebeu minhas orquídeas ?

- Recebi.

- Há algum motivo para não usá-las ?

- Há… dois.

- Quais são eles ? Posso saber ?

- Estou disposta, senhor, a acompanhar um Romeu frustrado, mas não pretendo fazer o papel de Julieta.

O sr. Chiba lançou-lhe um olhar furioso.

- Está muito perto, Usagi, de receber as palmadas que achei que merecia.

- A força bruta está longe de ser um método civilizado de argumentação, senhor.

Ele comprimiu os lábios e respondeu:

- No que se refere a mulheres e cavalos, torna-se necessária freqüentemente.

- Sua estrebaria, senhor, é digna de minha compaixão.

Mamoru fez um imenso esforço para se controlar e disse:

- Você mencionou dois motivos para não usar as orquídeas. Qual é o segundo ?

- Não gosto de orquídeas.

- Ouvi dizer que as mulheres assemelham-se a flores. Concordo que a orquídea não é flor para você. Tem uma idéia de qual seria a mais apropriada, no seu caso ?

- Que tal a boca-de-leão ? - replicou Usagi. Mamoru, dessa vez, riu de puro prazer.

- Você é imprevisível, Usagi. Não posso imaginar outra mulher no mundo dizendo a mesma coisa !

O garçom trouxe o segundo prato e, assim que ele se retirou, Mamoru disse:

- Eu nunca havia prestado atenção em como os lábios de uma mulher podem ser expressivos ! Antes, observava a emoção estampada nos olhos, mas, como não posso ver os seus, limito-me a ler seus sentimentos pelos lábios.

Instintivamente, Usagi apertou-os.

- Agora você está preocupada - ele acrescentou - Tem medo de que eu venha a descobrir seu segredo ?

- O que o senhor quer é me deixar sem jeito.

- Por que sem jeito ? A menos que tenha vergonha do que esconde.

- Não desejo falar sobre mim, senhor.

- Mas eu quero falar sobre você. Agiu como meu anjo da guarda. Agora, agüente as conseqüências.

- Vejo que errei.

- Imagine só como vai ficar orgulhosa quando eu for eleito presidente. "Consegui", você dirá.

- O senhor está confiante demais. Não se esqueça de que o orgulho sempre precede a queda !

- Teve a chance, Usagi, de contribuir para a minha queda, e não a usou !

- Lamento não tê-la aproveitado.

O garçom obrigou-os novamente a interromper a conversa. Após uma longa pausa, Mamoru indagou:

- O espião encontra-se nesta sala ?

- Sim. Está sentado perto da porta.

Usagi contou-lhe então o que soubera sobre a mudança dele para a primeira classe.

- Como posso prevenir a sra. Hernández acerca de tudo, sem ficar a sós com ela ? - Mamoru preocupava-se.

- Se quiser, pedirei à comissária de bordo que informe a empregada da sra. Hernández de que esse homem faz perguntas sobre ela.

Ele deu um suspiro de alívio.

- Se fizer isso, Usagi, lhe ficarei muito grato.

- Mas tenho outra sugestão sobre outro assunto, senhor !

- Qual é ?

- Pode parecer atrevimento… de minha parte.

- Não verei segundas intenções no que me disser, prometo.

- Então por que, nos dias que restam da viagem, não põe no papel os seus planos sobre o futuro da Argentina ? Sempre achei que os diversos departamentos do governo trabalham individualmente, sem ter uma política nacional consolidada.

- É verdade.

- Se houver um planejamento - prosseguiu ela - , o que não se deu nos últimos anos, e com os enormes recursos naturais, a Argentina poderá expandir-se de maneira incrível.

- Como sabe você disso, Usagi ?

- Eu… eu… li muitos livros e revistas, no seu escritório, em Londres - Usagi, imersa em suas idéias, não reparou que falava demais.

Mamoru desconfiou de que ela mentia sobre as leituras mas, interessado pela sugestão, falou:

- O que podemos fazer é redigir panfletos, com fatos e dados, para serem distribuídos entre os membros do governo.

- Ótima idéia ! - ela exclamou. Mamoru ergueu as sobrancelhas, dizendo:

- Não é essa a reação que eu esperava de uma inimiga, Usagi.

- Na emergência, o melhor é darmos as mãos, amigos e inimigos - replicou ela, prontamente.

Mamoru inclinou a cabeça para trás, e gargalhou, sem constrangimento.


Nos dias que se seguiram, Usagi trabalhou como nunca trabalhara na vida.

Percebeu que Mamoru, uma vez entusiasmado por algum empreendimento, só pensava naquilo.

Ela procurava convencê-lo de que necessitava de tempo para sentar-se à máquina de escrever e datilografar tudo.

Havia também cabogramas em código a serem enviados à Argentina e à Inglaterra.

Cada vez mais ela se convencia de que seu salário era bem merecido. Ao mesmo tempo, encantava-se com o trabalho que executava.

Descobriu que Mamoru não apenas conhecia a fundo a posição financeira da Argentina, como também possuía idéias revolucionárias de como conduzir o país no futuro.

- Creio - disse a Usagi - que nossa prosperidade está intimamente ligada à Inglaterra.

O governo britânico, de fato, já investira enormes somas na Argentina, mas os investidores particulares mostravam-se temerosos devido às crises financeiras que se sucediam no país. Havia uma inflação galopante, e várias companhias de estrada de ferro foram à falência.

- O que nos anima - prosseguia ele - é que a comunidade britânica absorve todos os nossos produtos.

- E isso não é suficiente ?

- Não, não é, pois os preços estão caindo, e os contratos não são favoráveis à Argentina.

- Contudo, a mão-de-obra lá é barata, e há abundância de terras virgens - observou Usagi.

Mais uma vez ele encarou-a intrigado. Porém resolveu continuar com o assunto que o absorvia.

- Precisamos realmente é de uma guerra !

- Na Argentina ? - Usagi ficou horrorizada.

- Não, claro que não ! Em qualquer lugar do mundo. Poderemos assim suprir as demandas de cavalos, couro, carne, trigo e lã.

- Suponho que o senhor também consiga vender isso em tempo de paz.

- Naturalmente, mas a guerra acelera a vinda dos anos dourados que, estou convencido, nos aguardam.

Mamoru preocupava-se com Usagi, pois concluiu que a fazia trabalhar demais.

- Estou exigindo muito de você, Usagi ? - ele perguntava de vez em quando - Perdoe-me, mas a culpa foi sua de me sugerir tudo isso.

- A culpa é minha ?

- E de quem mais ? Eu não havia pensado no caso antes de você o trazer à baila. Se não fosse por você, esse relatório nunca seria escrito.

- E o acha de fato muito importante ?

- Acho. Farei os membros do governo acreditarem nele - declarou ele com convicção - Um dia você terá orgulho de mim, Usagi !

Depois da excursão pela ilha da Madeira, Mamoru nunca mais jantou com o comandante. A sra. Hernández quase não tirava os olhos da mesa que ele e Usagi ocupavam.

Todas as noites, Mamoru levava livros e papéis à sala de refeições. Os dois fingiam consultar os livros e escreviam algumas notas num pedaço de papel.

A sra. Hernández mostrava-se ressentida, como uma criança privada de seu brinquedo.

Após o jantar, Mamoru ia geralmente à sala de jogos. Sua boa sorte era comentada em todo o navio.

- O sr. Chiba ganhou uma enorme quantidade de ouro ontem à noite - a comissária de bordo dizia a Usagi - Se continuar assim, metade dos passageiros chegará a Buenos Aires de bolsos vazios, e com dívidas a pagar. Mas ouvi dizer que há uma dúzia de milionários a bordo.

Usagi trabalhava quase o tempo todo, não se misturando com ninguém. De vez em quando passeava pelo convés. Debruçava-se no gradil para apreciar os golfinhos brincando no mar azul, ou sentava-se para tomar banho de Sol.

Estavam chegando ao fim da viagem. Ela receava o futuro. Sentira-se, até aquele momento, como se estivesse vivendo numa pequena ilha deserta, sozinha com Mamoru.

Já achava impossível manter sua reserva gelada com ele e responder em monossílabos. Mamoru parava às vezes de ditar e pedia-lhe a opinião; em várias ocasiões Usagi discordava. Então os dois discutiam calorosamente, e ela se perguntava por que fazer tanta oposição. Afinal, o sucesso ou insucesso seria de Mamoru e não dela.

Justificava-se pensando que lutava pelo país que sempre amara e ao qual o pai dedicara anos de sua vida.

Toda vez que se lembrava do pai, ela dizia:

- Eu odeio o sr. Chiba !

Porém, essas palavras já não tinham a mesma ênfase de quando as pronunciava em Londres !

Todas as noites, Usagi escrevia algumas linhas para a mãe, mantendo um diário. Assim, a sra. Tsukino saberia exatamente o que estava acontecendo. E ela encontrava cada vez mais dificuldade em descrever seu tipo de relacionamento com o chefe. Não conseguia mais ser tão fria nem sentia mais tanto ódio.

Nunca supusera que pudesse ser tão fascinante conversar com um homem por horas a fio. Nunca na vida almoçara ou jantara sozinha com um homem, excetuando-se o pai.

Notou que sua mente se expandia, que tinha novas idéias. Seu conhecimento de História era notável, pareceu-lhe.

Ela e Mamoru discutiam constantemente; lutavam numa batalha da qual nenhum dos dois saía vencedor. E, quando depunham as armas, sabiam que as tomariam de volta no próximo dia.

Quando o relatório estava quase terminado, Mamoru pediu champanhe à mesa para comemorar.

- Ambos merecemos ! - declarou ele - Você é um capataz de escravos, Usagi. Nunca passei tantas horas envolvido numa atividade puramente intelectual como nesta viagem.

- Mas surtiu efeito - ela comentou.

- Graças a você - e, levantando a taça, ele acrescentou: - Para a mais eficiente secretária do mundo ! Para a mulher de lábios misteriosos e fascinantes !

Usagi surpreendeu-se com a alusão a sua boca e corou !

- Não estrague tudo, senhor - suplicou ela.

- O que estou estragando ? Por acaso acha que nosso relacionamento é só trabalho ? É isso ? Pode, em sã consciência, considerar-se uma simples secretária, uma datilografa que contratei em alguma agência ? Nosso relacionamento evoluiu, Usagi ! Não negue, você ainda me esconde alguma coisa, é ainda uma mulher com um segredo !

Ela tentou desviar o assunto, dizendo:

- Acho, senhor, que se quisermos terminar nosso trabalho antes do fim da viagem, eu preciso me retirar. Tenho, no mínimo, duas horas de atividade antes de ir para a cama.

- Fugindo de novo, Usagi ? De que e para quem ?

- Não há resposta a essa pergunta, senhor !

- Apenas porque você não quer dar essa resposta.

- Existem coisas que nunca farei.

Assim falando, ela ergueu-se, obrigando-o a fazer o mesmo. Pegou a pilha de papéis e saiu do salão.

Chegando à cabine, despiu-se, pôs uma camisola e um penhoar muito leve, enfeitado de rendas. Escovou os cabelos e lembrou-se da mãe.

- Seus cabelos são tão lindos, querida ! - a sra. Tsukino costumava lhe dizer - Não têm a mesma cor dos meus, nem dos de seu pai, mas são iguais aos de sua avó. Ela foi uma das grandes beldades na época em que a rainha Victoria subiu ao trono.

- Não acredito que vovó tenha sido mais linda que você, mamãe.

- Foi. Muito, muito mais. Todos os grandes artistas insistiam em pintá-la. O retrato dela era exibido todos os anos na Academia Real de Arte, e comentava-se que a jovem rainha tinha inveja dela, o que não surpreenderia ninguém.

- E meu avô era bonito ?

- Eu o achava o homem mais lindo do mundo até conhecer seu pai… abandonei minha casa para me casar, contra a vontade da família. Ninguém pode resistir ao amor, minha filha !

- Quando se apaixonou, mamãe, nada mais importava a você além de papai ?

- Nada - confirmou a sra. Tsukino - É o que acontece quando se ama. O amor é irresistível, poderoso. Fiquei enfeitiçada, e sabia…

- O que você sabia, mamãe ?

- Que, sem seu pai, eu preferiria não continuar vivendo. O mundo inteiro desaparece, restando apenas o homem que se ama. É um pedaço de você, e você, um pedaço dele. E, quando qualquer sacrifício seu passa a valer a pena para viver junto desse homem, sabe-se que está amando.

"Espero sentir-me assim algum dia", pensou Usagi.

Naquela hora, enquanto escovava os cabelos, concluiu que sua vida se limitaria a trabalhar… e só…

Mas, embora aceitasse essa perspectiva sombria, não podia deixar de se satisfazer com o brilho de seus cabelos que caíam sobre os ombros como uma cascata dourada.

Era um alívio para Usagi tirar os pesados óculos. Ao menos poderia bater à máquina com mais prazer. Ela forçava demais a vista enquanto taquigrafava com os óculos.

Alguém bateu à porta.

- Entre ! - disse ela.

- Quer ser um anjo, ajudando-me, miss Hasegawa ? - perguntou a comissária de bordo.

- Naturalmente. O que quer que eu faça ?

- Pode dar a mamadeira ao bebê da sra. Salas ? Lembra-se dela, não ? É a passageira que ganhou as orquídeas.

- Sim, sim, lembro-me - respondeu Usagi - Traga-me a criança.

- A empregada dela não está passando bem. Não tem forças nem para cuidar da criança.

- Eu posso fazer isso !

- Eu não lhe pediria esse favor, miss Hasegawa, se não houvesse meia dúzia de sinetas tocando para me chamar.

- Não se preocupe ! Tomarei conta do bebê.

Usagi pegou-o no colo, a empregada entregou-lhe a mamadeira e sumiu.

Uma vez ou outra na vida, Usagi cuidara de crianças. Durante uma epidemia de sarampo em Lisboa, três crianças pequenas ficaram na casa dos Tsukino para não serem contaminadas, e Usagi cuidou delas. Em outra oportunidade, tomou conta de filhos de diplomatas quando os pais tinham alguma recepção à comparecer.

O bebê da sra. Salas, depois de alimentado, dormiu. Era uma criança bonita, com a pele cor de magnólia, típica das pessoas da origem espanhola. Alguns fiapos de cabelo escuro começavam a crescer em sua cabeça bem formada.

Usagi acariciava-o, imaginando se algum dia iria ter a felicidade de afagar seu próprio filho. Queria muitos. Queria amá-los e ser amada. Depois, lembrou-se de que isso também implicava ter o amor de um homem. E se perguntava se esse amor seria mesmo como a mãe o descrevera. Não obstante, que chance teria ela ? A filha de um indivíduo acusado de traição à pátria ?

"Não é justo !", pensou ela, tendo vontade de chorar.

Ouviu uma pancada na porta e, supondo tratar-se da comissária, disse:

- Entre !

Sem olhar para a pessoa recém-chegada, falou:

- O bebê foi muito bonzinho. Assim que acabou de mamar, dormiu.

Como não houvesse resposta, ergueu a cabeça. Na soleira da porta estava Mamoru, enorme, alto, fitando-a surpreso.

Usagi logo lembrou-se de que usava um penhoar muito fino sobre a camisola, que seus cabelos estavam soltos, e que não tinha os olhos cobertos pelos horrendos óculos.

Vendo-se apanhada de surpresa, entreabriu os lábios, assustada e com o peito arfante.

Houve um longo, longo silêncio.

- Então por isso esconde os olhos ! - exclamou Mamoru.

- O que… o senhor… deseja ? - gaguejou Usagi.

- Vim lhe pedir o livro de códigos que você deve ter trazido para cá no meio dos papéis.

Como Usagi continuava em silêncio, ele procurou se desculpar:

- Você disse que ainda iria trabalhar por duas horas.

- Sim… eu disse. Pretendia começar… agora.

- Por que se disfarça tanto ? - acrescentou ele - Talvez minha pergunta seja tola !

- É o único meio que encontrei… para viver com segurança.

- Entendo !

Com esforço, ela declarou:

- O livro… de códigos… está em cima da escrivaninha.

Enquanto falava, tinha a cabeça inclinada, pois olhava para o bebê, e seus cabelos cobriam-lhe o rosto como uma cortina. Ela percebeu que Mamoru aproximava-se da escrivaninha. Remexeu os papéis e depois sussurrou, com uma voz que se esforçava por controlar:

- Boa noite, Usagi. Lamento tê-la incomodado !

Ela não respondeu, mas sentiu uma coisa esquisita, uma sensação diferente, estranha, como se a cortina de um palco se levantasse para o segundo ato começar. Mas ela não tinha idéia do enredo…


Na manhã seguinte, foi à cabine de Mamoru antes que ele voltasse de seus exercícios matinais.

Achava impossível entrar lá com Mamoru fitando-a. Faria perguntas, na certa, e ela não queria respondê-las.

Por isso acomodou-se no lugar de costume, com as folhas datilografadas ao lado. Pegou também os livros de consulta e abriu-os nas páginas que sabia serem importantes.

Alguns minutos mais tarde ele entrou. O coração de Usagi parecia querer saltar do peito.

"Estou sendo idiota", ela repreendeu-se. "Ele é que não tinha o direito de entrar em minha cabine e, se for um cavalheiro, nem irá mencionar o episódio".

Mamoru sentou-se. Encarou-a por alguns segundos e em seguida disse com bastante calma:

- Você sabe muito bem, Usagi, que esses óculos prejudicam-lhe a visão. Quando estivermos a sós, não precisa mais usá-los. Concorda ?

- Prefiro usá-los - insistiu Usagi.

- Isso é ridículo! A razão que a obrigava a mantê-los diante dos olhos não existe mais, penso eu. Admito que uma mulher, com sua beleza, não poderia trabalhar num escritório cheio de homens. Eles não a deixariam em paz. No entanto, você já tornou bem claro que me odeia, e eu lhe garanto que tomarei cuidado para me manter à distância. Sugiro, portanto, que ponha de lado o que passou a ser agora um disfarce sem efeito.

Ela hesitava. Acostumara-se aos óculos, que eram como uma armadura protetora, e sentia-se vulnerável sem eles. Depois, considerou os argumentos de Mamoru irrefutáveis. E, mais ainda, recusar ouvi-lo faria com que ele pensasse que tinha medo de seus avanços. E desejaria ele, de fato, aproximar-se dela ?

Usagi achava-se diante de um dilema. Optou por seguir o conselho de Mamoru. Com um gesto um tanto quanto teatral, tirou os óculos.

- Muito bem, senhor - disse ela - Faço sua vontade, mas continuarei usando o que chama de "meu disfarce" fora desta cabine. Minha mãe não teria permitido que eu fizesse essa viagem sem eles.

Achando-se convencida, corou, e prosseguiu com voz muito baixa:

- Não é bem… verdade. Não tive outra alternativa.

- Pelo que estou imensamente grato - replicou Mamoru de maneira pomposa - Vamos trabalhar ?

O relatório ficou pronto naquele dia.

Usagi continuou usando os óculos na sala de refeições, mas desconfiava que Mamoru conseguia agora ver seus olhos através deles ! Com o seu instinto de mulher, percebeu que ele a admirava.

Não conseguia se esquecer da expressão de seu chefe quando a vira sem óculos, com a criança no colo. Parecia extasiado !

"Contudo, não há termos de comparação entre mim e a sra. Hernández", refletia Usagi.

Sabia, porém, devido ao trabalho que realizavam juntos, que houvera uma aproximação entre ela e Mamoru como ele jamais havia tido com mulher alguma. Podia ter feito amor com elas, podia tê-las desejado fisicamente, mas Usagi sentia que estimulara o cérebro dele e lhe fora útil.

Restava saber o quanto duraria essa utilidade !

Estranhamente, pensava ela, Mamoru não a provocava mais como no início da viagem. Ele lhe pedia conselhos, impessoais e sobre política, era verdade, e seguia suas sugestões. Ela envaidecia-se por isso.

No entretanto, Mamoru não deixava de ser um homem que a vira desprotegida, de camisola e de cabelos soltos !

Sim, ele era, antes de tudo, um homem !

Ao divisar o contorno do litoral da América do Sul, bem distante, ela teve um sentimento de apreensão com o qual não contava.

"O que me aguarda no futuro ?", questionava-se. "Achará Mamoru que não tenho mais serventia para ele ?"

Deveria haver, em Buenos Aires, dúzias de pessoas já empregadas para o trabalho que ela vinha fazendo.

Mamoru a mandaria de volta à Inglaterra imediatamente. Eles nunca haviam discutido sobre o término do contrato, e Usagi estava muito consciente do fato de que tinha em sua bolsa a passagem de volta.

O que poderia ela fazer em Londres ? Como poderia continuar vivendo no mesmo apartamento de sua mãe ?

Para todos os passageiros do navio, o fim da viagem significava a volta ao lar. Os oficiais de bordo vestiam-se em grande gala, e os marinheiros ocupavam-se polindo, pintando e esfregando o barco todo.

O azul-vivo do Oceano Atlântico cedia lugar ao colorido marrom do rio da Prata.

Os espanhóis descobridores batizaram-no de rio da Prata, mas o rio estava longe de ser de prata. Suas águas eram lodosas em conseqüência da decomposição dos vegetais das enormes florestas cincunvizinhas. E o rio não corria através de regiões ricas em minas de prata, como eles tinham acreditado.

Usagi permanecia no convés, olhando para as cúpulas e torres de Buenos Aires. Sem virar a cabeça, percebeu que Mamoru estava ao seu lado.

- É este o fim ou o começo de uma aventura ? - indagou ele.

- Suponho que seja o fim - replicou Usagi. Ela falava com desânimo.

- Cabe a você decidir, Usagi. Cada um faz o seu próprio destino.

- Não é verdade - ela pensava no pai.

- Tenho certeza de que você vai traçar o seu - insistiu ele. Usagi não entendeu bem o sentido do que ele lhe dizia. E, para seu desapontamento, de olhos perdidos no horizonte, Mamoru simplesmente declarou: - Vim aqui para lhe perguntar o que fazer com as caixas de orquídeas ainda armazenadas na geladeira.

- Dê-as às comissárias de bordo. Vão ficar encantadas.

- Boa idéia - respondeu Mamoru - E, por falar nisso, descobri qual a flor com que você se parece.

- Qual é ?

- Acho que você nunca ouviu falar dela. É conhecida na Argentina como Lágrimas de la Virgen.

Antes que Usagi pudesse fazer quaisquer perguntas, Mamoru afastou-se. Ela ficou sozinha no convés, lembrando-se muito bem da flor chamada Lágrimas de la Virgen.

Era uma pequena flor perfumada que crescia em moitas. Uma única planta tinha vinte ou trinta hastes de mais ou menos um metro de altura. Na primavera, cada haste produzia uma dúzia de flores semelhantes a minúsculos lírios.

Mas a principal característica das Lágrimas de la Virgen era que, quando apanhadas, as lindas e delicadas pétalas murchavam. A extrema fragilidade dessas flores fazia com que as pessoas acreditassem que tinham uma espiritualidade toda especial. Um ser humano jamais as possuiria.

Então, lembrou-se de mais uma coisa. Os gaúchos davam um nome diferente ao lírio. Chamavam-no de "Lágrimas do Amor".


P.S.: Nos vemos no Capítulo 5.