Verdadeira Vontade

XII

Kanon repentinamente acordou e não sentiu a presença de Saga. Ficou exasperado.

- Saga!

Olhou para um lado e para o outro. Só via aquela escuridão terrível, e àquele momento estava sozinho.

- Saga! Não é possível! Estou sozinho de novo!

Afinal de contas, o pedido que fizera para Atena durara muito pouco. Queria ter ficado mais tempo com o gêmeo, mas... enfim, não se sentia digno de exigir o que quer que fosse. Já havia tido o perdão de Atena e ficara junto de Saga por um tempo mesmo após ambos terem morrido. Mas, e então?

E então? Saga teria ido embora? Para onde? Será que ele reencarnara... mas tão rápido?

- E sem mim!

Sem ele! De fato, o destino de Saga fora muito mais cruel do que o seu, pois ele fora possuído por um demônio. E Kanon endossara o demônio! Talvez de fato estivesse no destino dele ter um futuro muito melhor do que o seu próprio. Talvez ele próprio, Kanon, tivesse de pagar de forma muito mais abrangente e extensa...

- Bem, é isso. Agora ele foi embora e eu estou aqui, sozinho, sem saber o que esperar ou fazer.

Repentinamente, de maneira quase involuntária, começou a pensar em Atena. Lembrava de quando o cosmo quente e acolhedor dela o salvara e o fizera se sentir seguro na prisão do Cabo Sounion. Após sua libertação, sempre que passava por um momento difícil, ele de forma automática pensava naquele cosmo, embora por anos não soubesse de quem era.

E repentinamente, sem que ele esperasse, sentiu o cosmo de Atena respondendo a si novamente! Fora atendido mais uma vez!

Kanon sorriu, sem entender muito bem o que acontecia... mas se sentindo muito feliz. Logo uma inconsciência reparadora tomou conta de sua alma, e ele dormiu feliz.

Quando acordou, estava na mesma sala na qual Saga estivera antes de ressuscitar. Lá estava ela - a deusa que o salvara de forma tão desinteressada. Que o amara quando ele a odiara. Ele devia tudo a ela - não somente o perdão ou sua vida, mas também a noção do enorme valor que o Amor tinha a si.

Chamou por ela, ainda atônito:

- S-senhora...

- Kanon. Você se sacrificou pela causa, não foi?

- Sim... mas a senhora também está morta?

- Não. Eu sobrevivi à batalha de Hades e a venci, embora tenha parecido que cometi suicidio no Santuário. Para os deuses, os limites do físico e do espiritual são muito mais tênues.

- Entendo.

- Deixe-me fazer a si uma pergunta. Quantas vezes eu tenho que salvar a sua vida para você entender que eu não quero que você morra ou se mate?

- Mas... senhora! Quem fez o que eu fiz merece morrer! Não mereço ficar vivo! Por muito menos era aplicada a pena capital no Santuário! Por eu ter sido salvo mo Cabo Souion foi que fiz tudo o que fiz no Templo do Mar! Eu devia ter sido morto, por isso apliquei a pena integralmente a mim mesmo!

- Eu compreendo e até mesmo admiro a sua vontade de se redimir e de pagar pelos seus erros do passado. Você só está esquecendo de uma coisa.

- O que?

- Você é humano, Kanon. Portanto, não deve escolher sozinho o seu próprio destino. Eu sou contra a violência desnecessária, portanto não aceito sacrifícios humanos - mesmo quando a própria pessoa se oferece para tal. De mais a mais, você está consciente embora esteja morto, não é verdade? Se morresse cheio de ódio na cela do Cabo Sounion, teria acesso a espíritos de pessoas que também teriam morrido cheias de ódio, e sendo inteligente e dominador como era, ia comandar esses espíritos para causar um grande mal. Apesar de você ter dominado o Reino Submarino, os danos foram muito menores do que teriam sido se você houvesse morrido sem ter sido redimido pelo Amor.

- Então... o que eu deveria ter feito?

- O espírito de Saga havia lhe dito. Você devia ter derrotado Radamanthys e depois enviar a armadura de Gêmeos ao Muro das Lamentações.

- Mas... minha senhora, me desculpe, porém eu não sabia o que ia fazer na Terra. Saga havia morrido... e as lembranças me doíam demais. Ainda doem.

- Doem, mas você tem que lidar com elas.

- Confesso que era muito agradável ficar com meu irmão, dormindo, sem precisar pensar em nada, após termos morrido.

- Nem sempre é o confortável que nos dá um bom futuro. De qualquer forma, reparou que está sem Saga outra vez, não?

- Sim. Eu estranhei quando não o vi mais comigo.

- Ele está de volta à Terra.

- E-ele... voltou como um bebê, é isso?

- Não. Ele voltou como um adulto, com todas as lembranças de sua vida anterior. Esse tipo de retorno é extremamente incomum, tanto que na maioria das vezes não é praticado. Mas como as dívidas dele são muitas, ele teve que retornar dessa forma.

Kanon baixou os olhos, consternado.

- Se ele tem muitas dívidas, fico imaginando quantas eu não tenha!

- Sim, tem. E por isso deve voltar da mesma forma, com ele.

- E-eu? Então de certa forma era verdade aquilo que eu pressupunha? Que estávamos a ser preparados para reencarnar como gêmeos?

- Sim, mas não do jeito que esperavam. Voltarão como adultos, com todas as lembranças. Seria muito confortável a vocês ter as lembranças suprimidas. De mais a mais, os problemas presentes da humanidade precisam de vocês já formados. Não podemos esperar mais dezoito ou vinte anos até que estejam prontos.

- Saga... Saga sabe que eu vou retornar com ele?

- Não. Saga já está há alguns dias vivendo no Santuário. Você tem muitas dívidas em relação a seu irmão, Kanon... vocês deverão tentar se perdoar e não ficar trazendo à tona todas as rusgas. Façam bem um ao outro. Desconsiderem as mágoas anteriores, assim como eu também desconsiderei os seus erros anteriores.

- É claro que sim, minha senhora. Ao menos de minha parte... quem sou eu para levar os erros de Saga em consideração, se os meus são tão maiores?

- Apenas se lembre de duas coisas, Kanon: a primeira é que apenas o Amor pode de fato curar as dores e resolver tudo numa esperança maior. A segunda é que eu quero você vivo. Não morra pela causa: viva por ela! Não adianta nada você ter enxergado a Verdade se não utilizar esse aprendizado em prol da causa.

Kanon assentiu. Já estava preparado para voltar, quando a deusa lhe deu uma última informação importante.

- Sabe que dia é hoje?

- Não. Naquele lugar escuro eu não tinha noção alguma nem de tempo, nem de espaço.

- Trinta de maio.

- Meu aniversário! Meu e de Saga!

- Sim. Eu esperei até hoje para fazer você voltar. Tenho certeza de que seu irmão ficará feliz.

- Saga... o mal que lhe causei!

- Não pense nisso. Pense somente no fato de que, de agora em diante, vocês tem que se focar no amor de vocês. Vá!

Logo em seguida, o gêmeo mais novo sentiu uma sonolência estranha, porém muito confortadora. Não resistiu a ela, e simplesmente se deixou entrar na inconsciência.

OoOoOoOoOoOoOoOoO

Quando acordou, estava deitado no sofá da sala da residência da Casa de Gêmeos. Piscou algumas vezes e em seguida tomou a primeira inspiração. Ardeu, e demorou um pouco para ele acostumar novamente com a respiração. Em seguida se colocou de pé. Ao fazê-lo, o peso do corpo o fez quase cair. Mas como suas lembranças não haviam sido apagadas, ele logo encontrou seu centro de equilíbrio e se reabituou a andar.

Percebeu que estava de roupas e que era de dia. Por que havia acordado logo no sofá da sala, e não na cama?

Então sentiu o cosmo dele. Saga! Ele estava na cama, dormindo, apesar de já ser de dia.

Foi andando até o quarto. O mesmo quarto que dividiram quando crianças, adolescentes e jovens adultos, dado que aquela era a moradia que eles possuíam antes... bem, antes de tudo aquilo ter acontecido e separado os dois. A cada passo que dava, era como se Kanon se despisse de todas aquelas lembranças nefastas do que passara no Reino Submarino; como se tudo não houvesse passado de um terrível pesadelo, e ele enfim estivesse acordando daquele sonho ruim no sofá de casa. Sem ambições desmedidas, sem prisão no Cabo Sounion, sem demônio dominando a psiquê de Saga. Sem Shion e Aioros mortos, sem Atena exilada do Santuário, sem brigas. "Todas as coisas anteriores já passaram".

E no entanto, ao chegar ao quarto e ver Saga deitado na cama, a dormir profundamente, percebeu que não eram mais jovens adultos. Já eram passados dos trinta, e as marcas do tempo foram mantidas, apesar de os corpos serem novos.

Ao se aperceber que aquele terrível pesadelo fora real, e que no entanto ele recebia a chance de recomeçar, embora os anos perdidos não pudessem ser recuperados... ao se aperceber de tudo aquilo, via o enorme valor que era ter Saga novamente deitado naquele quarto, e ele mesmo, andando até ele, podendo enfim viver com ele outra vez. Era um milagre. Quantas pessoas não tinham aquelas coisas todos os dias, e não davam valor? Muitas vezes somente dando valor após perder, e mesmo assim o orgulho não as deixava admitir que haviam errado em suas vidas?

Ele tinha de deixar o orgulho de lado. E era o que faria. Era seu aniversário afinal de contas! Devia comemorar, mas alguma coisa lhe dizia, no fundo do peito, que não devia acordar Saga. Devia, isso sim, deitar ao lado dele e aproveitar aquele momento junto dele.

Foi o que o mais jovem fez. Deitou ao lado de seu irmão, acariciou seus cabelos... se sentiu muito feliz de poder sentir seu calor, e seu cheiro, e o abraçou. Sorrindo, sentindo uma felicidade que em treze anos não sentia, dormiu novamente um sono reparador, do qual somente acordaria quando Saga percebesse que ele estava ali consigo - para que ambos comemorassem o melhor aniversário de suas vidas enfim juntos, enfim em paz e enfim vivendo a vida que sempre deveriam ter vivido desde o começo.

FIM

OoOoOoOoOoOoOoOoO

Ai geeeeeeeeeeente, cabou! Sei que pareceu um final abrupto, mas o verdadeiro final dessa fic (e o começo de muitas outras) já está escrito desde 2007, e é a fic "Puro Sorriso". Quem ainda não leu, leia e verá que encaixa direitinho. Rs!

Na verdade a presente fic é uma história de ligação, para narrar os fatos acontecidos no clássico, os quais nas minhas fics ainda estavam "sem narrar" por assim dizer. É que no meu período mais "prolífico" de fics, ou seja, entre 2010 e 2011, eu gostava mais de escrever sobre o que eles já haviam passado após Hades. Ou seja, cronologicamente falando, após o final dessa fic. Mas resolvi fazer a redenção do Kanon com detalhes, a qual é simplesmente uma coisa linda!

Pena que foi escrita agora, quando o site já não é mais tão frequentado. Considero-a uma das mais relevantes do ponto de vista da cronologia de "Triângulo Dourado". Se fosse antigamente um monte de gente ia ler, rsssss! Mas paciência.

Penso em fazer uma "side story" com a ressurreição do Shion "véio". Afinal de contas, como eu já disse anteriormente, gosto de colocar um motivo para as mesmas acontecerem, e portanto a ressurreição do "véio" tem de ter uma justificativa.

Aliás, ressuscitar o "véio", os gêmeos e até mesmo o Aioros (quem sabe rola? Rssssss) seria tudo como uma forma de reparar o que Ker e Lemur fizeram. Se formos levar Lemur em consideração, nem mesmo o Kanon teve culpa genuína de alguma coisa.

Ah, e sobre o que a Atena falou, caso o Kanon morresse em ódio: lembram de um episódio no qual as almas que morreram em sofrimento destruíram a Ilha da Rainha da Morte? Foi inclusive o Lemur que agitou todas elas. Isso inclusive acontece de fato, já conheci algumas entidades que vinham aqui pra Terra só pra causar. Estavam entregues ao ódio e comandavam verdadeiras falanges de almas perturbadas do outro lado. Já sofri ataques de algumas delas inclusive. Infelizmente eu conheci de perto o lado "hard" da espiritualdade.

É gente, a Atena sabia de fato o que fez ao deixar o Kanon vivo. Não foi só para ser "boazinha", foi por bom senso mesmo.

Beijos a todos e todas! Espero logo fazer outras fics, mais curtas e que me demandem menos energia emocional que essa, rssssss!