Domínio

"O mundo tornou-se perigoso, porque os homens aprenderam a dominar a natureza antes de se dominarem a si mesmos."

– Albert Schweitzer


(Leon)

O corredor em que entraram era cavernoso e úmido, fazendo com que agradecesse pela camisa de manga comprida. Quanto mais as coisas pareciam fora de lugar – quem no mundo tinha uma passagem secreta acionada pelo toque de um piano? – mais se sentia no caminho certo. A Umbrella era a responsável, acreditava nisso, mas do quê? Conforme andavam, Leon percebeu que o caminho era uma leve descida ao passo que avançavam. Estava feliz por ter Claire com ele, tão feliz que se sentia menos culpado pela insensatez de trazê-la junto, no entanto sabia que se não fosse por ela nunca teria encontrado a passagem secreta.

Ninguém falou nada enquanto andaram na quase escuridão absoluta, as perguntas na cabeça de um deles certamente eram as mesmas da do outro. Já tinham andado cerca de 11km quando viram uma luz fraca no final do corredor. Quando estavam próximos o suficiente para distinguirem se tratar de uma porta com uma janela de vidro e pequenas grades, desligaram a lanterna.

Estava preparado para entrar primeiro, sua mão foi até a maçaneta arredondada quando Claire o impediu. Pela fraca luz da pequena janela viu o rosto da mulher se retorcer em um pedido de silêncio. "Ouço passos", ela sussurrou antes de uma figura passar pela porta fazendo com que eles se encolhessem com as armas em punho.

– William! – ouviram o chamado de uma voz feminina acompanhada pelo som de saltos batendo no chão. A primeira figura parou próxima a porta obrigando a mulher a fazer o mesmo.

– Não tenho tempo agora, Annette. As coisas estão um pouco fora de controle.

– Este é o ponto, tudo está fora de controle.

– Já conversamos sobre isso. É o trabalho da minha vida. A minha descoberta.

Houve um silêncio incômodo que não durou muito tempo.

– Fizemos isso pela Sherry e apenas por ela, mas agora… Agora temos homens ricos achando que são nossos donos, assassinos perambulando por aqui e se isso não fosse o suficiente eles nunca estão satisfeitos. Somos médicos, William, salvamos vidas e não o contrário.

Uma batida forte na parede fez Claire saltar no lugar. A porta de metal tremeu com o impacto.

– É a última vez que falaremos sobre isso, Annette. Não importa como começou, o que importa é onde posso chegar e se para isso precisar me vender para a Umbrella então tudo bem. O que eu não aceito é ser questionado. Estamos entendidos?

– Que seja. Espero que esteja mesmo ciente de todos os riscos.

A discussão terminou com a clara insatisfação da mulher. Depois de alguns minutos, assim que não ouviram mais os passos do casal, decidiram que poderiam entrar. A nova sala que encontraram era ampla, em formato retangular, com um retângulo menor de abertura em cima fazendo com que pudessem olhar o segundo andar. Tinha uma escada larga de ferro na esquerda – lugar onde os passos seguiram – e portas no final do corredor à esquerda. Duas das três portas estavam trancadas, a única aberta era repleta de prateleiras com produtos de limpeza; o que respondia o porquê de sentirem o cheiro de alvejante assim que saíram do túnel. Quando voltaram todo o caminho a escada os levou até o segundo andar, este com corredores abertos em ambos os lados que davam em uma grande porta dupla no final do corredor ladeada por uma menor.

Já na parte de cima sentiram ainda mais forte o cheiro de água sanitária encobrindo o cheiro ferroso de sangue.

– O que diabos…? – Claire sussurrou ao seu lado. Leon sentiu o arrepio em sua nuca em um claro alerta de que algo terrível estava por vir.

Com um sinal de mão apontando da esquerda para si e da direita para ela, se separaram quando não notaram sinal das pessoas de antes. Em cada uma das aberturas que encontraram nos corredores haviam barras tão grossas quanto as celas de uma prisão. Dentro parecia uma pequena sala cirúrgica com uma maca suja, amarras e instrumentos afiados. Com um rápido olhar para trás viu que era a mesma coisa no outro corredor onde Claire verificava. Eles continuaram até o cheiro forte aumentar. Foi o som estrangulado da garota que chamou sua atenção.

Encarando a última cela da direita com os olhos arregalados e a arma pendendo ao lado do corpo, Claire parecia horrorizada com o que via. A passos largos foi até ela entendendo no mesmo minuto o motivo de tanto terror. Havia um corpo na maca, amarras nos punhos magros, e sangue gotejando em abundância. Suas pernas funcionaram automaticamente, abriu a cela e entrou. Um homem jovem estava amordaçado, seus olhos arregalados estavam assustados e, em seu peito, pinças mantinham aberto um enorme rasgo. Coração, pulmões, rins, fígado, tudo estava faltando.

– É como Marvin – Claire declarou ao constatar a falta de órgãos.

Que droga estavam fazendo naquele lugar? Em uma mesa ao lado encontrou uma ficha de paciente. Kevin Heaton, 26 anos, sexo masculino. Tinha também o peso e a altura, além de uma lista com os órgãos marcados com um positivo. Apenas o fígado e as córneas continham um x.

– O que você acha que estão fazendo aqui? O que essas pessoas querem?

– Eu não sei, Claire. E também não sei se vou gostar de descobrir.

Tão humana quanto era a garota ao seu lado fechou os olhos do pobre coitado antes de voltar para fora da cela ao seu lado. Restavam apenas duas portas, a dupla e a outra menor, que foi por onde entraram. Diferente das celas, aquela parecia um escritório. Tinha uma escrivaninha, cadeira confortável, dois arquivos, prateleiras com livros de medicina e uma máquina de escrever. Com Claire de guarda na porta foi até os papéis.

Em uma das gavetas encontrou mais fichas de pacientes, só que agora vindas do Hospital de Raccoon City. Em cada folha que passava encontrava os nomes das vítimas de desaparecimento junto com status de saudáveis. Pegou um grande livro de anatomia humana, dentro observações foram feitas a caneta. Algo sobre genomas compatíveis, receptores e doadores, aceitação e rejeição. Em outra gaveta tirou um caderno de couro que logo descobriu se tratar de um diário pertencente a William Birkin. Começou a ler em um tom que desse para Claire ouvir sem que chamassem atenção.

"Agosto de 1953

Minha filha, Sherry, apresentou problemas nos rins. Como um médico isso muito me preocupa. Precisamos tentar rever o quadro."

" Dezembro de 1953

Nunca tivemos um natal tão ruim assim antes, Sherry tem piorado a cada dia que passa. De que adianta ser um médico se não posso salvar a minha própria filha?"

"Fevereiro de 1954

Meus chefes convidaram a mim e a Annette para participar de um novo estudo de transplante de órgãos. Eu já vinha pesquisando sobre o assunto antes, mas me faltava recursos. Não tenho nada a perder."

"Abril de 1954

A Umbrella tem um jeito nada ortodoxo de conseguir material humano para estudo, mas quem sou eu para discutir? Sherry é prioridade para mim e para Annette."

"Setembro de 1954

Acho que compreendi. Para que o corpo do receptor aceite o órgão do doador é necessário compatibilidade genética. Acredito que não seja necessário relatar aqui o que foi feito para essa descoberta, a medicina é tudo sobre sacrifícios em nome de novas descobertas. Para ser sincero não tenho mais tempo, a cada dia que passa Sherry piora. Tenho dois rins, se for necessário um deles não me fará falta."

"Dezembro de 1954

Esperava passar o natal de forma diferente do ano anterior. De certa forma está diferente, porém ainda não estamos seguros. A cirurgia foi um sucesso, Annette doou um de seus rins para Sherry e eu fiz o transplante. Nossa garotinha tem respondido bem no pós-operatório."

"Maio de 1955

É ótimo que a Umbrella confie em meu potencial. Annette tem reclamado, mas não posso parar agora depois do sucesso que foi com Sherry. Se eu realmente descobrir como transplantar um órgão entre pessoas não familiares irei revolucionar a medicina. Quem não sonha alto não chega longe."

Leon pulou as páginas afoito para ler as mais recentes.

"Julho de 1956

Os últimos dias não têm sido dos melhores. Órgãos são sensíveis, precisam de ação rápida para não morrerem e parece que os meus patrocinadores não entendem isso. O que quer que seja "mercado de órgãos" terá que esperar. Não se pode apressar o progresso dessa forma."

"Agosto de 1956

Se eles querem que eu faça o meu trabalho então precisam fazer o deles. Achei que pagassem para a polícia não se intrometer e agora temos as forças especiais no nosso encalço."

"Setembro de 1956

Um policial morto em um motel. O que eles pensam que eu sou? Um açougueiro? Corri o risco indo até lá para no final ser uma perda de tempo, a forma que o mataram estragou os órgãos, não davam para ser reutilizados. Mal consigo imaginar o quanto este caso irá chamar atenção. Idiotas!"

Então era isso o que estavam fazendo? Sequestrando pessoas e usando como ratos de laboratório? Assassinando inocentes para testarem transplantes de órgãos como uma desculpa científica? O que ele viu naquela cela não tinha nada de progresso. Era cruel, frio. O olhar vidrado de Kevin Heaton o assombraria pelo resto de sua vida, era como se tivessem esvaziado não apenas seu corpo, mas toda sua alma.

– Isso é desumano – Claire tirou sua atenção da porta para encará-lo com indignação queimando nos olhos. – Não tem como uma pessoa fazer isso e continuar a ser considerada humana. São todos monstros.

Ele concordava com isso. Agora entendia o porquê de Ben estar na cola da farmacêutica, também entendia o seu assassinato. Se essa história vazasse a empresa seria destruída e a pena para todos os envolvidos seria severa.

– Precisamos continuar – falou se levantando.

Com o corredor ainda livre seguiram para a porta dupla, podiam ouvir o barulho de máquinas funcionando. Desconfiava que se tratava de geradores, fazia sentido já que estavam no subterrâneo e uma instalação daquelas precisava de energia para funcionar. Quando abriu um dos lados da porta com cuidado, deu de cara com duas pilastras arredondadas – grossas da base ao teto alto – e um homem ao longe entre elas. O homem não era outro senão Chris Redfield. Sua atenção estava focada no canto esquerdo, os joelhos no chão, as mãos para cima e uma expressão cheia de raiva. Estava rendido. Leon não teve tempo de montar uma estratégia com Claire, já que de onde estavam não conseguiam ver quem o outro homem encarava, quantos eram e suas desvantagens. Ela apenas correu em um impulso corajoso, mas idiota, em direção ao irmão. Sua arma em punho estava virada na direção certa quando ela parou exatamente na frente de Chris como um escudo humano.

– Claire! – Chris chamou, chocado, pelo nome da irmã assim que a viu.

– Ora, então você veio mesmo – uma voz estranhamente familiar ecoou pelo ambiente. Algo lhe dizia que já a tinha ouvido mais de uma vez, havia familiaridade ali.

Com a situação fora de controle suas opções estavam rapidamente se esgotando. O que deveria fazer? Voltar cuidadosamente um pé para trás e tentar se reorganizar, ou discretamente passar pela porta e se esgueirar por trás da pilastra? Se houvesse só uma pessoa do outro lado poderia dominá-la, colocá-la na sua mira e virar o jogo. No melhor dos cenários seriam eles três contra um, mas antes de qualquer decisão precisava ver o perímetro.

Durante os poucos segundos que o levou a estes pensamentos não percebeu quando alguém se aproximou por trás. Ele só soube o quão ferrados estavam quando sentiu o cano gelado de uma arma pressionar sua nuca.

– É melhor você abaixar essa arma, bonitão.

"Estou tonto", a voz trouxe em sua mente memórias da noite em que Marvin foi assassinado. Tinha acabado de fazer um brinde e trocado mais alguns beijos com a garota asiática quando sua visão começou a distorcer.

"Vai ficar tudo bem. Você só vai dormir um pouquinho, bonitão", foi a resposta que recebeu antes de ser deitado em uma cama e tudo escurecer.

– Ada – respondeu para a pessoa atrás de si. Suas mãos se levantaram lentamente enquanto se decidia em uma virada brusca para desarmá-la.

– É melhor não tentar nada estúpido. Você é um homem esperto o suficiente para saber que está em desvantagem – podia ouvir a zombaria na voz dela enquanto era desarmado.

Agora com a arma em suas costas sentiu o cano pressionar, impelindo-o para frente. Eles tinham conseguido o que queriam quando foram até lá, não? Encontraram Chris, descobriram o que estava acontecendo com as pessoas desaparecidas… Entretanto, de nada adiantava tudo o que conseguiram se terminariam em uma maca imunda, como um animal de testagem, sem os seus órgãos.

Com passos que o levavam para um futuro incerto foi levado em direção aos irmãos Redfield no centro daquela grande sala.

(Claire)

Ela nunca tinha sido conhecida por sua paciência. Muito pelo contrário, ela era, na verdade, conhecida por seus rompantes. Quando viu o irmão de joelhos apenas correu se colocando na sua frente. O alívio em vê-lo vivo foi subjugado pelo terror da inquestionável ameaça que o mantinha refém. Era uma coisa que os Redfield tinham e caso saíssem vivos daquela não aceitaria uma repreensão de Chris pois sabia que ele teria feito o mesmo.

Claire não conhecia o homem que apontava uma arma para o seu irmão; era alto, vestida um casaco negro, os cabelos louros estavam penteados para trás e em seus lábios dançava um sorriso perverso. Mas ele parecia conhecê-la quando a saudou em sua chegada. Atrás dele havia uma pequena escada de ferro que levava a outra porta menor, ao seu lado um homem ainda maior, com um chapéu inclinado escondendo seus olhos em sombras, estava parado como um tipo de guarda-costas muito assustador; rosto cheio de cicatrizes de queimaduras e punhos cerrados manchados de vermelho. Ela viu, no mesmo instante, de quem se tratava o homem maior. De alguma forma o arrepio que sentiu descer como um raio em sua coluna lhe deixou saber que aquele era o dono da silhueta assustadora que viu na janela de Jill algumas madrugadas atrás. Ao lado do tal homem tinha um corpo no chão, havia sangue espalhado em volta de sua cabeça grisalha.

– Droga, Claire! – ouviu Chris resmungar em suas costas.

Era uma droga mesmo. Não muito tempo após se colocar na frente do irmão Leon se juntou a ela. Uma mulher atrás dele apontava uma arma para suas costas, com a outra mão ela segurava a arma dele.

– O último dos intrometidos se junta ao grupo – o homem loiro, provavelmente o chefe ali, ri com escárnio. – Levante-se, Redfield. Não vai ficar aí no chão enquanto sua irmã e o garoto estão em pé.

Com um rosnado, Chris se colocou em pé. Havia raiva em seus olhos, um ódio tão denso que era quase palpável. Ele conhecia o homem.

– Quem é você? – se ouviu perguntando. Se estava prestes a morrer que ao menos soubesse o nome do seu assassino.

A mulher que apontava uma arma para Leon continuava próxima enquanto ele e seu irmão a ladeavam. Podia ver que ambos encaravam o loiro à frente com diferentes expressões de reconhecimento.

– Que cabeça a minha. Sou Albert Wesker, é um prazer finalmente conhecê-la. Estava ansioso por isso – sua testa enrugou quando o nome soou familiar. Não era ele o capitão de Chris? Jill não tinha dito que ele estava morto? Que receberam seus pertences ensanguentados? Notando sua confusão ele continuou. – Isso mesmo. Sou o capitão dos S.T.A.R.S. e amigo de seu irmão.

Ouviu Chris rir em descrença ao seu lado, amizade não eram bem os termos que os dois estavam naquele momento. O clima de tensão era amplificado pelo som dos geradores.

– Por que? – Leon estava tão chocado quanto ela. – Você não estava morto?

– Por que, você me pergunta. Por que o céu é azul? Por que as aves voam e os peixes nadam? – o homem se aproximou, seus trejeitos eram os de alguém que tinha o total domínio da situação. Como se fosse um ser intocável. Que tirava prazer no que estava vendo. Era sádico. – Que bom que chegaram ao mesmo tempo, assim não preciso me repetir. Sou um homem ocupado. Agora, senhorita Redfield, arma no chão ou os miolos do seu irmão vão fazer parte da decoração. Faça a gentileza de passar para mim que já responderei todas as suas dúvidas.

Com cuidado se abaixou soltando a arma e chutando em direção a Wesker que a parou com o próprio pé.

– Uma ótima garota. Mais inteligente que você, Chris.

– Seu desgraçado – o irmão respondeu a provocação com um insulto. Um de seus pés deu um passo à frente e a mulher mudou a mira para Claire.

– Mal educado como sempre. Será que vou ter que te amordaçar? Estou cansado da sua insubordinação.

Claire notou o narcisismo gritando em todas as atitudes do homem, seja no jeito de andar ou falar ele demonstrava uma superioridade digna de alguém que se achava um Deus. Em breve ela descobriria que aquele era, de fato, o caso de Wesker.

– Você já tem o que quer. Estamos desarmados, rendidos por você, nos dê explicações – voltou a conversa para o que estava acontecendo ali. Sua voz saiu trêmula, o aperto em seu peito dificultava sua respiração. Sentiu a mão de Leon encostar na sua própria, então o dedo dele se ligou ao seu discretamente em forma de apoio.

– Justo, vou dar o que me pedem. Agora me digam, vocês sabem quantas oportunidades foram encontradas com o final da guerra? Isso, é claro, se você souber onde escavar. As possibilidades estavam lá e tivemos que cavar mais fundo do que a crença popular achava possível. Órgãos! – com uma introdução digna de um sociopata Wesker voltou para o seu lugar de antes. – E vocês sabem quantas pessoas morrem ao ano porque algum órgão deixou de funcionar? Quantos soldados que voltaram vivos não sobreviveram por muito mais tempo por complicações durante a guerra? Vocês sabem, e essa eu realmente quero saber, quanto essas mesmas pessoas estão dispostas a pagar por mais alguns anos de vida? Não? Mas eu sei, e a quantia não pode ser ignorada.

Aquilo era doentio.

– Dinheiro é o que faz o mundo girar e as pessoas para quem trabalho têm consciência disso. Tínhamos tudo o que precisávamos para começar. Capital inicial, investidores, idealizadores e médicos de caráter compatível com a ideia do projeto. Se fosse mesmo possível passar o órgão de uma pessoa para outra seria revolucionário. Mas nos deparamos com dois problemas, o primeiro era a falta de médicos competentes para descobrirem como realizar o procedimento com sucesso, o segundo era a matéria prima utilizada. Foi mais fácil encontrar médicos capazes do que órgãos disponíveis e foi por este motivo que tivemos que mudar de tática.

– Então você e a Umbrella acharam que sequestrar pessoas e roubar suas vidas era uma boa ideia – Chris traduziu os acontecimentos com sarcasmo. – Afinal quem ligaria para prostitutas, mendigos, vigaristas, imigrantes ilegais e o que quer mais que a sociedade não se importa, não é?

– Um preço pequeno a ser pago em nome da evolução. Ninguém se lembraria do nome dessas pessoas se não tivesse saído no jornal.

– E você foi comprado pela Umbrella como os outros dentro da delegacia? – Leon questionou. A corrupção na delegacia estava muito além da folha de propina que eles tinham, o nome do capitão não estava lá.

– Não me compare a idiotas como Irons – ao mencionar o chefe de polícia Wesker apontou com a cabeça para o corpo no chão perto do homem maior. – Não preciso ser comprado, eu trabalho para os interesses da Umbrella.

– Um espião – Claire pensou em voz alta.

– É uma das definições entre tantas. Também é preciso admitir que uma pequena parte dos policiais naquele departamento são tão competentes quanto incorruptíveis. Foi necessário alguém ficar de olho, bagunçar investigações e eliminar ameaças. Quem melhor do que o capitão do esquadrão especial?

– E a equipe secundária era uma dessas ameaças.

Chris estava alterado, seu corpo tremia com a tentativa de conter a raiva que estava sentindo.

– A equipe secundária, a primária, Marvin… Todos eram empecilhos, curiosos demais para o próprio bem. A equipe de Enrico foi mais fácil de resolver se não contarmos com a garota que sobreviveu. Com isso esperávamos assustá-los o suficiente para pararem de se intrometer e, tirando Brad, o restante de vocês ficou motivado em continuar. Forjar minha morte foi necessário, mas logo em seguida precisei lidar com Marvin e com o garoto aí, além de você, Barry e Jill. Foi neste momento que você entrou no plano, senhorita Redfield. Chris sumiu, eu tinha certeza de que ele seria um problema e precisei agir mais uma vez. Marvin não poderia ser comprado com dinheiro, então qual outro motivo bom o suficiente para um homem trair seus ideais?

– Amor – ela respondeu no mesmo momento. Assim como tinha vindo até Raccoon por amor, o tenente deve ter feito suas escolhas pelo mesmo motivo.

– Exato. Mais do que o medo ou o dinheiro existem homens que só podem ser influenciados por este sentimento. Patético. Algum de vocês sabia que Marvin tinha uma bonita esposa e duas filhas pequenas? Ele aceitou atrair Claire Redfield para Raccoon City em troca da garantia de que sua família ficaria bem. Com Claire aqui seria fácil tirar Chris de seu esconderijo, era a ideia perfeita até que Irons perdesse a cabeça e matasse o Tenente. Um porco incompetente que sempre tenta fazer as coisas a sua própria maneira estúpida.

– E onde ela entra nisso? – Leon aponta para a mulher que o trouxe para dentro da sala dos geradores. Ficou claro que aquele não era o primeiro encontro deles.

– Ada nos ajuda a manter a ordem. Na noite em que Marvin morreu ela deveria roubar as possíveis provas que vocês tinham no Motel Saturn. Era bom que você fosse inocente o suficiente para segui-la até lá como um bom cão adestrado.

– Então ela simplesmente me drogou, pegou minha cópia da chave e roubou nossos papéis? – o dedo do policial se apertou no seu.

– Como ela faz o trabalho dela não me importa, eu só preciso dos resultados. Agora com Marvin morto, os S.T.A.R.S. espalhados e você afastado as coisas voltavam a se normalizar. Eu só precisava que Chris saísse do seu maldito buraco, mas você – aqui ele apontou diretamente para Claire – sumiu até a noite em que Ben fez uma visita ao Bar do Jack e Ada os viu juntos.

Claire se lembrava de Leon ter dito ver alguém familiar naquela noite, que foi por isso que a perdeu de vista enquanto ela e Ben deixavam o bar. No final das contas Ada era mesmo a tal mulher.

– Foram vocês que mataram o Ben? – perguntou apenas para se certificar do que já sabia.

– Obviamente. Ele era um idiota bisbilhoteiro, o Sr. X aqui fez a gentileza de calá-lo de vez – Wesker apontou para o homem maior. – Uma pena que não antes da Bonnie e do Clyde na versão super-heróis chegarem até ele.

Houve alguns minutos de silêncio, os três tentaram absorver as atrocidades que acabaram de ouvir. Aquelas pessoas estavam brincando de Deus, usando cobaias vivas enquanto tentavam iniciar um tipo de tráfico de órgãos.

– Você é doente – Claire determinou, àquela altura seus olhos estavam cheios de lágrimas. – Brincar com a vida de pessoas inocentes, esvaziar seus corpos como se fossem um saco de uma mercadoria qualquer… você consegue deitar sua cabeça e realmente dormir?

– Como um bebê. Agora que já sabem de tudo acho que suas curiosidades já foram saciadas. É uma pena que não possam ficar vivos para verem nosso sucesso, mas temo que saibam que suas presenças não são boas para os negócios.

Com um aceno de cabeça para o homem maior, Sr. X como foi chamado, Wesker deixou que seu capanga lidasse com seus visitantes indesejados.

– O que você veio fazer aqui, Claire? – Chris rosnou ao seu lado bastante irritado. – Se eu colocar as mãos em você te esgano.

– Entra na fila então.

Enquanto trocavam o que ela achava serem suas últimas palavras um estrondo foi ouvido seguido do barulho de tiros. Wesker que estava a meio caminho da escada de ferro parou quando a porta se abriu, por ela passou um homem também loiro vestindo um jaleco branco manchado de vermelho. Havia cerca de três buracos de tiro vazando sangue profusamente.

– O que está acontecendo, Birkin?

– Estamos sendo atacados.

– Terminem rápido com esses três. – Wesker ordenou novamente. Empurrou o homem de jaleco, William Birkin, para o lado que caiu com um gemido de dor. Estava preparado para ir até o som dos estrondos quando um homem vestido de preto dos pés a cabeça também passou pela porta.

– Estamos com problema.

O som de tiros aumentou enquanto o som de passos se aproximavam pelo corredor. Leon aproveitou a confusão para desarmar a mulher de cabelos pretos que os mantinha na mira, com a mão aberta acertou seu nariz e viu ambas as armas, a dele e a dela, rolarem pelo chão para perto da pilastra. Pegando Claire pela mão a arrastou para lá, recuperou seu revólver e passou o outro para ela.

Claire não conseguia ver muita coisa. Quem quer que estivesse atacando tinha se aproximado com velocidade encurralando os capangas de Wesker na sala dos geradores. Pessoas gritavam tentando se fazer ouvir sobre os tiros. Seus olhos correram para Chris do outro lado, ele estava sentado atrás de duas caixas empilhadas com uma das mãos segurando o ombro que sangrava. A porta dupla pela qual ela e o policial passaram se abriu e três homens entraram por ela, a dupla foi tão rápida em abatê-los quanto ela foi ao agarrar uma barra de ferro e travar a entrada. Leon pegou a espingarda de um deles e começou a atirar.

Tudo acontecia ao mesmo tempo. O estourar ininterrupto de tiros encheu o ambiente assim que viu o irmão rolar para trás de um dos geradores, as caixas que usou de esconderijo foram perfuradas como se fossem de papel. Atrás dele o homem gigante dava passos confiantes com uma submetralhadora. Mais uma vez ela não pensou muito, colocou-se de pé e mirou na enorme figura. O primeiro tiro acertou seu chapéu fedora que caiu, o segundo no ombro direito e o terceiro passou longe quando Leon a puxou para baixo e algo estourou exatamente onde sua cabeça estava há poucos segundos. Um homem a tinha na mira do outro lado. Não sendo mais tão seguro atrás das pilastras o policial a puxou para recuar atrás de algumas caixas na parte de trás do salão, com uma visão mais ampla da porta viu outras pessoas começaram a entrar. Foi um alívio quando reconheceu duas delas sendo Jill e Barry.

– Meu irmão precisa de mim – reclamou assim que viu Chris e o Sr. X entrarem em uma briga física perto dos geradores.

– Seu irmão precisa que você fique segura.

– Um pouco difícil dada as circunstâncias – ela se virou e atirou em um dos capangas. Além de Jill e Barry, podia ver apenas mais duas pessoas entrando com eles. Aparentemente os três que já estavam ali não eram os únicos burros o suficiente para invadirem o covil dos bandidos com a cara e a coragem.

O Sr. X agora tinha as mãos no pescoço de Chris, seus grandes dedos apertavam a carne sem piedade enquanto ele se debatia tentando se soltar. Não podia arriscar um tiro, se errasse a mira estava tudo acabado. Porém poderia fazer uma distração. Mirando para o alto acertou uma lâmpada que explodiu sobre eles, com os segundos de desatenção viu quando o irmão o pegou pelo colarinho e com o impulso das pernas fez com que a cabeça do outro homem se chocasse com as enormes rodas do gerador. Aquela era uma imagem que a assombraria para o resto da vida junto com quase tudo o que tinha visto em Raccoon.

Não teve muito tempo para ficar feliz. Vindo sorrateiro pelo lado esquerdo um dos homens com ares de gângster que trabalha para Wesker a colocou na mira. Assassinos não hesitavam assim como os policiais, Leon o viu quando se virou e assim que percebeu o que aconteceria se colocou na frente dela recebendo o tiro. Claire acertou o homem na cabeça em um único tiro, mais raiva do que mira levaram a bala ao alvo. Depois disso seu revólver ficou vazio.

– Droga, Leon – se jogou no chão onde ele escorregou encostado na caixa. Abrindo o casaco com pressa viu a mancha de sangue se espalhar pelo colete cinza. – Precisamos colocar pressão nesse ferimento.

– A arma – ele tentou passar o outro revólver para ela enquanto mantinha a espingarda. – Vai.

– Você primeiro – gritou rasgando uma manga de sua própria camisa pressionando no ferimento, o pano branco se encharcou de vermelho. Sua visão embaçava com as lágrimas que caiam.

– Quem tem mais chance de sobreviver tem prioridade.

– Quem está machucado não tem o direito de decidir quem tem prioridade.

Com um gemido de dor sentiu quando a mão dele, que estava sobre a sua pressionando o ferimento, escorregou ao mesmo tempo que sua cabeça pendeu inconsciente. Claire torceu para que se houvesse um Deus ele pudesse ouvir sua oração. Humildemente se desculpou pela demora em suas preces, envergonhada em pedir algo depois de tantos anos de rebeldia, mas que precisava de um milagre para que todos saíssem dali inteiros. Para que Leon saísse com vida. Se ao menos as pessoas que amava ficassem bem já seria uma vitória.

Com uma das mãos apertou o lugar do tiro e com a outra apontou o revólver que recebeu. Não se deixaria ser uma vítima tão fácil de pegar.

..


Penúltimo capítulo!

É, isso mesmo, penúltimo e depois termina. Agora sabemos o que estava rolando em Raccoon.

Referente essa questão do tráfico de órgãos vale lembrar que a estória se passa na década de 50 e o órgão não era visto como algo "rentável". Os médicos ainda estavam no início da descoberta sobre como realizar um transplante, sendo assim era normal para a Claire e para o Leon não ligarem os pontos como nós que estamos lendo agora.

Espero que tenham curtido.