Era estranho como o grito lancinante ainda ecoava em meus ouvidos.

Mesmo com a brisa congelante penetrando o cobertor que Edward envolvera ao redor de meus ombros e me fazendo estremecer a cada sopro da noite escura, permaneci sentada no balanço de madeira do lado de fora. Toda minha atenção estava sobre o movimento das buscas pela propriedade enquanto meu marido conversava com o xerife da cidade.

Por um instante, aquela cena pareceu tão familiar que meu estômago revirou.

A luz vermelha piscando bem acima da viatura acendeu flashes dolorosos em minha mente repetidas vezes, lembrando-me de que aquilo não era um pesadelo e muito menos uma memória, mas a confirmação de que não importa onde estivesse, o passado ainda me atormentaria enquanto eu fugisse dele.

— Não encontraram nada — avisou Edward ao retornar para o meu lado com o xerife em seu encalço. — Nem mesmo um rastro sequer.

— Como isso é possível? Alice correu na direção do lavandário e depois disso desapareceu — pestanejei ao ficar de pé, me virando para o moreno uniformizado. — Vocês não devem ter procurado direito.

O homem deslizou a mão pelo rosto enrugado com um suspiro, provavelmente elaborando a forma mais educada de fazer pouco caso de minha descrição. Por outro lado, notei quando Edward enrijeceu, a surpresa espiralando naquelas íris verdes — afinal, eu não citara nomes até aquele momento.

— Com todo o respeito, se estiver falando da Sra. Whitlock, saiba que ela está desaparecida há mais de um ano — informou o Xerife Black. — Arrisco até mesmo dizer que ela está morta, afinal tudo indica suicídio.

— Eu sei o que vi — rebati, entredentes. — Também sei que vocês nunca encontraram seu corpo e não podem afirmar com toda a certeza que Alice está morta. Então, acho que tenho motivos o suficiente para desconfiar da eficiência da sua equipe, não é mesmo?

Minha acusação pareceu tirá-lo do sério, mas antes que sua paciência evaporasse, Edward interveio com sua simpatia diplomática ao avançar um passo, posicionando-se na minha frente de um modo protetor.

— Xerife Black, eu peço desculpas. Minha esposa deve ter se enganado, eu lamento muito pelo transtorno que causamos…

— Não me enganei de nada!

— Está tudo bem, é apenas o nosso trabalho — o homem me ignorou, respondendo a Edward. — Escute, eu sei que são recém-chegados em Blanco, mas sugiro que não se deixem levar pelos comentários dos moradores, a cidade é pequena e as pessoas falam demais. Alguém pode acabar precisando de nossos serviços enquanto estamos aqui e falo de precisar de verdade, sabe.

Edward passou o braço por meus ombros e assentiu, acanhado.

— Claro, isso não irá se repetir — garantiu ao estender a mão. — Peço desculpas novamente e agradeço por virem até aqui.

Bufei, desvencilhando-me de seu abraço ao caminhar de volta para dentro. Pude sentir o olhar repreensivo queimando em minhas costas, mas fingi não notar ao desaparecer pela porta.

Estava na sala, agachada recolhendo os cacos maiores do copo de vidro que deixei cair mais cedo quando Edward retornou, após a polícia ir embora. O observei fechar a porta atrás de si com um suspiro pesado, mas aquilo foi tudo o que fui capaz de ler em sua expressão quando os olhos verdes recaíram sobre mim, quase vítreos.

Não tive coragem de sustentar aquele olhar por muito tempo, rapidamente virei o rosto para o outro lado ao varrer os estilhaços, culpa e vergonha zumbiam em meus ouvidos feito uma concussão, embora certamente não tomasse tais sentimentos para mim. Sabia exatamente o que tinha visto cerca de uma hora antes, mas não confiava em mim mesma para atribuir verdade àquilo.

— Você está bem? — Ele perguntou suavemente.

— Eu não sei. Acabei de ver alguém que deveria estar morta cruzando a nossa propriedade e depois fui desmentida pelo meu próprio marido na frente da polícia — sorri ao deslizar a língua pelos lábios, sem humor. — Quer saber, eu nunca me senti tão bem, Edward. Mas, obrigada por perguntar… Ai!

Ouvi seus passos se aproximando rapidamente quando o estilhaço provocou um pequeno corte em meu dedo. Edward se abaixou até ficar na minha altura, virando suavemente minha mão para avaliar o sangue carmim se espalhando em contraste com a pele clara.

— Não foi nada — garanti, puxando minha mão da sua ao ficar de pé com a pá de lixo. Então segui para a lixeira da cozinha — Está tudo bem.

Mas não estava.

— O quanto você sabe sobre Alice?

Pisquei, atônita.

— De repente, você se importa — virei no meio do caminho para encará-lo, deixando a indignação nublar meus olhos. — Eu disse que alguém estava na nossa casa e você não me ouviu, mas bastou falar o nome dela que passou a ficar muito interessado no assunto. Que merda está acontecendo, Edward?

— Responda — a autoridade cintilou em seu tom de voz.

E, talvez porque parte de mim era covarde demais para seguir com aquele impasse, cedi.

— Só o que Rose me contou — respondi somente, mas seu silêncio prolongado me impulsionou a continuar. — Alice era sua cunhada, perdeu o filho pequeno e depois se matou. É tudo o que sei.

— Acho que ela quis ser cuidadosa com você, Rosalie não lhe disse a história toda — informou, enfiando as mãos nos bolsos, embora estivesse tenso demais para expressar qualquer casualidade.

Franzi o cenho, confusa.

— Como assim não me disse tudo?

— Entenda, eu quero ser totalmente sincero. Esconder qualquer coisa de você me faz sentir tão mal, eu não consigo mais…

— Fale de uma vez — disse em um tom severo. — Está me deixando nervosa.

Edward engoliu com dificuldade, varrendo os cabelos para trás com os dedos trêmulos.

— Precisa saber que Alice e sua família viviam nesta casa antes de… Bem, antes de toda aquela tragédia acontecer — explicou ao examinar o meu rosto, mas duvidava que ele arrancasse qualquer informação dali quando o choque tomou minhas veias feito morfina. — Descobri no jornal enquanto olhava alguns arquivos de matérias antigas e havia muitas sobre o caso, afinal recebeu uma grande repercussão na época. Foi assim que tive a ideia para o meu novo livro.

— Você o que? — Perguntei, incapaz de processar a informação sem considerar estar louca. — Você… você tem escrito sobre ela? Transformou a dor dela em uma história de entretenimento, é isso que está me dizendo?

Ele avançou um passo na minha direção, mas parou quando eu recuei para longe do seu toque, como se estivesse prestes a me ferir.

Mais do que eu já estava.

— Bella, eu não queria escrever sobre Alice, pensei muitas vezes em não fazer isso, mas a inspiração simplesmente veio e…

— Há quanto tempo você sabe?

— Desde que comecei a escrever — admitiu, envergonhado. — Eu sinto muito.

Me escondeu isso por todo esse tempo! — Engoli o nó doloroso que se formava em minha garganta. — Como pôde fazer isso!? Nem mesmo passou pela sua cabeça me contar o que aconteceu?

— Bella, eu nunca teria comprado essa casa se soubesse o que houve aqui! — Ele tentou se explicar, mas dei de ombros ao largar o lixo e comecei a me mover de um lado para o outro, inquieta. — Escute, por favor, querida. Eu pensei em lhe contar milhares de vezes, mas eu tive medo de que você se sentisse muito pior, como eu poderia lhe dar mais motivos para se sentir insegura nesse lugar? Justo quando mudamos para cá em busca de paz.

— Acha mesmo que eu tive algum momento de paz aqui? — Cuspi, ríspida. — Você se fechou tanto nesse seu mundinho de fantasia e vida perfeita que sequer se deu o trabalho de me ver agonizando todo esse tempo bem do seu lado!

A verdade o golpeou feito um soco no estômago e o observei se desarmar bem na minha frente enquanto meu veneno pinicava profundamente no seu ego. Em outras circunstâncias, me sentiria culpada por machucá-lo, mas eu já não conseguia encontrar a parte que se importava.

Aquele que deveria ser nosso lar de esperança, o qual nos agarramos com tanta voracidade para fugir dos dias sombrios e recomeçar do zero, fora palco de uma grande fatalidade, muito pior do que aquela que nos marcou. De repente, me senti não só perseguida pela escuridão de um passado conturbado, mas arrastada diretamente para sua lama pútrida.

— Não, não pode ser — sussurrei, abaixando a cabeça entre as mãos. — De novo, não…

Condenada. Talvez aquele futuro de dor e sofrimento fosse o único possível para mim, estava em um labirinto sem saída.

— Escute, não se preocupe — Edward se aproximou com cautela, entrelaçando nossas mãos suavemente. — Nada vai acontecer conosco, Bella. Eu não vou deixar. O que aconteceu com Alice e a criança foi um capítulo triste desse lugar, mas esta casa é nossa agora e o passado não importa.

— Está errado — funguei quando as lágrimas ameaçaram transbordar em meus olhos. — Todas essas coisas que vem acontecendo… Você pode não me ouvir, pode não acreditar em mim, mas eu sei que tudo isso é um presságio do que virá. Edward, por favor, precisamos ir embora desse lugar, vamos acabar destruídos como eles.

— Nós não podemos simplesmente largar tudo e ir embora. Tenho meu trabalho e todas as nossas economias estão nesta casa, você sabe que voltar para Austin não é uma opção.

— Podemos vendê-la — sugeri, beirando o desespero ao segurar em sua camisa. — Faça qualquer coisa que for possível, mas não podemos continuar aqui! Eu tenho tanto medo, Edward...

— Ei, me diga — ele segurou meu rosto para olhá-lo nos olhos, os polegares enxugando delicadamente as lágrimas em minhas bochechas. — Do que você tem medo?

Um soluço irrompeu de meu peito quando a imagem de Alice retornou a minha mente. Aquela doce e jovem mulher da fotografia de família na casa de Rosalie havia se convertido na figura pálida e esguia atravessando o lavandário, seu rosto atormentado era quase um reflexo do que eu estava me tornando a cada dia.

— De que a história se repita — confessei, dando voz àquela agonia que me torturava dia e noite. — Não faz ideia do inferno que tem sido desde que nos mudamos. Vivo atormentada nesse lugar, como se algo estivesse me observando e esperando para atacar no momento certo, eu… Eu tenho tanto medo de não ser capaz de proteger a nossa menina. De não ser capaz de proteger você outra vez…

E vê-lo sangrar novamente, vê-lo me olhar com pura determinação de guardar aquela imagem enquanto a ideia de que talvez fosse a última nublava sua mente. Poderia suportar muitas coisas — embora recebesse pouco crédito por isso —, mas não poderia suportar perder minha família.

Senti a mesma energia emanando de volta quando Edward me aninhou em seu abraço reconfortante, quase de necessidade. Naquele ponto, senti-me segura o suficiente para deixar desabar da forma como não fazia em meses — e toda a dor e os motivos vieram à tona feito uma avalanche de culpa e ressentimento.

— Eu entendo você — sua voz me acariciou ao pé do ouvido enquanto sentia os dedos manhosos afagando minhas costas e meu cabelo. — Mas nunca vai precisar me proteger. Estou aqui para cuidar de você e da nossa filha. Eu sempre vou estar aqui, não importa o que aconteça.

— Mas e se acontecer de novo? — Questionei, erguendo o rosto para olhá-lo. — E se, dessa vez, isso me consumir e eu perder de vez o controle de tudo? Você ainda vai estar aqui quando eu não puder lembrar de como eu era? Vai proteger a proteger a Marie?

O medo genuíno retesou sua pele creme sob os ossos, mas Edward era forte como eu jamais seria. Empurrou bem fundo minhas palavras sem sentido e assentiu com toda a confiança quebrada que poderia me oferecer.

— Sempre vou estar aqui, não importa o que aconteça — prometeu, beijando delicadamente a lágrima solitária que deslizava por minha bochecha. — Sempre.


A casa estava vazia na manhã seguinte.

O choro alto me acordou de um sono pesado quando o céu ainda assumia um tom gradiente entre o azul e o alaranjado. Ignorei completamente a ausência de Edward ao meu lado na cama e segui rapidamente para o quarto de Marie, tropeçando pelo carpete enquanto mal conseguir abrir os olhos para encontrar a maçaneta depois de apenas uma ou duas horas de sono.

A brisa gelada pinicou em minha pele morna no momento em que entrei no quarto de minha filha e me deparei com as janelas abertas bem em cima do berço onde a criança esbravejava, as cortinas se movimentando feito um fantasma solitário pelo cômodo. Arregalei os olhos e em uma fração de segundo me atirei até Marie, envolvendo-a em meus braços como em um casulo fechado e quente.

— Ah, filha! — Acalentei, meus dedos trêmulos deslizando para sentir a pele fria do bebê entre seus gritos. — Meu amor, mamãe está aqui. Vai ficar tudo bem.

Afastei o medo enquanto repetia as palavras para mim mesma e disparei para a cômoda, retirando uma das mantas grossas de inverno para envolvê-la em uma tentativa de lhe aquecer. Seu choro não cessou, mesmo quando fechei a janela sem entender a razão de estar aberta — não quando tomara tanto cuidado ao trancá-la mais cedo ao sair do quarto.

E aquela melodia de angústia e sofrimento inocente me partiu lentamente, corroendo meu peito feito ácido.

Marie não podia compreender o peso que senti ao vê-la exposta e desprotegida, agradeci aos céus por isso ao encarar a nova tranca da janela instalada há pouco tempo. Não havia como aquele pequeno objeto falhar em sua utilidade, não quando garanti pessoalmente que minha filha estivesse totalmente protegida de um acidente.

Fechei os olhos, afastando o pensamento pesaroso do lindo rosto do bebê de Alice — e das circunstâncias que o fizeram perecer.

— Está tudo bem — repeti, meus lábios tremendo ao acariciar os cabelos cor de bronze de minha filha antes de beijar o alto de sua testa. — Não foi nada...

Só desci quando Marie se acalmou — e quando parei de tremer como ela. Busquei por seu pai em cada cômodo da enorme residência, mas não havia sinal de Edward em qualquer lugar além da cozinha, onde ele deixara um rastro de bagunça após preparar o café-da-manhã.

Meu estômago roncou ruidosamente com o aroma de ovos e bacon exalando direto pelo corredor, mas não consegui encontrar qualquer motivação para comer.

Em vez disso, segui para a entrada da casa, mas acabei parada em frente a ela.

Naquele silêncio preguiçoso da manhã, encarei as portas altas no fim do corredor à direita, para o território proibido a mim. Embora Edward jamais tivesse me restringido de frequentar seu espaço seguro de criação, tinha a leve impressão de que a mínima ideia de colocar seu trabalho em meu caminho o apavorava por dois motivos.

O primeiro era que meu marido era um fodido perfeccionista e isso cresceu com os anos, ele jamais me mostraria algo do qual não se orgulhasse. O segundo era que, talvez, Edward tivesse medo de que acidentes pudessem acontecer e de que eu acabasse arruinando seu manuscrito após noites de dedicação, afinal minha estabilidade era pouco confiável.

E não lhe tirava a razão, compreendia até. Mas isso não me impediu de desviar o caminho e seguir pelo corredor até empurrar a porta e entrar na biblioteca, curiosa demais até para saber o que procurava.

Era estranho estar sozinha naquele lugar, raramente o fazia além dos momentos de faxina, onde eu tinha pouco tempo para realmente reparar em alguma coisa além da poeira acumulada nos cantos inconvenientes. O espaço parecia maior sem Edward ali, sem seu estranho foco naquele silêncio e sem o crepitar da lareira de fundo onde agora só se acumulavam brasas.

— Onde ele guarda? — Sussurrei para mim mesma ao me aproximar da escrivaninha cuidadosamente organizada. Edward podia produzir em meio a bagunça, mas ela nunca se estendia fora de seus turnos de escrita.

Marie grunhiu para mim ao levar os dedos até a boca, pressionando-os entre os dois dentinhos inferiores ainda nascendo e a gengiva nua. Por um segundo, me senti culpada por estar bisbilhotando enquanto aqueles enormes olhos castanhos me observavam.

Que tipo de exemplo eu estava lhe oferecendo?

— Foi seu pai quem me escondeu as coisas primeiro — argumentei com minha consciência pesada e dei a volta no móvel, agarrando o puxador da gaveta antes de abri-la.

O manuscrito estava ali guardado, sem qualquer esforço.

Talvez Edward realmente tivesse a intenção de me contar sobre o passado sombrio de nossa casa em algum momento, afinal ele não parecia determinado em esconder as informações que reuniu sobre o assunto. Ou talvez, somente esperava que eu encontrasse e o punisse por mentir para mim — e eu não descartava esta hipótese.

Não havia título, mas a pesada pilha de papel tinha seu nome assinado embaixo e isto foi a primeira coisa que reparei ao colocá-la sobre o gabinete. A segunda foi o envelope de papel amarelo embaixo, seguida por fotos recortadas em um pequeno monte no canto mais escondido da gaveta.

— Mas que porra… — segurei as imagens em preto e branco, os rostos conhecidos a mim.

Fotos e mais fotos recortadas de jornais.

Algumas de família, outras de um menino de cabelos negros e covinhas, algumas apenas com a mulher solitária de sorriso angelical e simpatia elegante. Em todas, Alice Whitlock aparecia com qualquer coisa, menos a figura aterrorizante de cabelos negros e compridos que testemunhei na noite anterior.

Deixei as imagens de lado — ainda processando o que aquilo significava — e segui para o envelope meio volumoso. Me desdobrei com um bebê nos braços até retirar seu conteúdo: uma série de páginas dobradas do jornal, matérias noticiando o desaparecimento da irmã mais nova de Emmett. Algumas eram muito tendenciosas e até sugestivas, mas todas relatavam o triste fim da queridinha de Blanco.

E naquele momento, me senti tão próxima e solidária a Alice que meu peito latejou com a sua dor — e com a minha própria. Era como me olhar no espelho, a garota espirituosa se tornara um mero borrão após o decreto de seu destino, arrastada para o poço enquanto ela apenas tentava se segurar na borda, longe daquele vazio escuro e solitário.

Mas eu estava distante de sua total cegueira.

Me recusei a ceder àquele lugar de insanidade e de desespero, eu tinha minha família e não permiria que a escuridão daquela vida me arrancasse isso como fizeram com a pobre Alice.

Do meio dos papéis, uma pequena folha do bloco de notas caiu no chão de madeira. Recolhi entre os dedos e encarei as duas linhas marcando o papel cor de manteiga com um endereço e um nome.

Jasper Whitlock.

De repente, o assobio de Edward me alcançou antes do som abrupto da porta da frente batendo.

Fora minha deixa para devolver tudo ao seu lugar o mais rápido que consegui com apenas uma das mãos livre, tomando uma cautela excessiva em colocá-los da mesma maneira, com excessão do papel com o endereço. Este eu enfiara entre as dobras da manta que envolvia Marie antes de disparar para fora da biblioteca.

Meu marido estava na cozinha quando o encontrei, lavando suas mãos na pia enquanto eu tentava assumir a expressão mais serena possível ao observá-lo.

— Hey, você acordou — disse com um sorriso ao se virar e enxugar as mãos em um pano de prato, então se aproximou para selar nossos lábios. — Bom dia, amor.

— B-bom dia — merda.

Em um instante, ele franziu o cenho ao me examinar.

— Bella, aconteceu alguma coisa? Você parece pálida…

— Não. Quer dizer, você pode me dizer se foi ao quarto da Marie mais cedo?

— Fui apenas dar uma olhada antes de sair, mas ela estava dormindo.

— Isso foi há quanto tempo?

— Não sei, talvez uma hora. Por que a pergunta?

— A janela estava aberta — mordi o lábio inferior, ansiosa demais para me conter. — Acordei com seus gritos e a nossa filha estava tão gelada…

— Ah, minha nossa — ele exalou, tomando a bebê de meus braços antes que eu pudesse evitar. Encarei a manta encolhida com os olhos arregalados. — Que bom que nada demais aconteceu. Talvez devêssemos chamar um médico para examiná-la e ter certeza…

— Acho que não precisa, eu posso ficar com ela.

Estendi os braços para pegá-la de volta, mas Edward se recusou ao fazer carinho na bebê que tinha toda sua atenção sobre ele.

— Onde você estava? Eu fiquei preocupada quando acordei e não o encontrei em lugar algum.

Ele deslizou a língua pelos lábios e varreu os cabelos cor de bronze caídos sobre a testa úmida de suor. Só então notei suas bochechas coradas e roupas esportivas.

— Eu sei, me desculpe. Devia ter avisado ou deixado um bilhete, mas estava dormindo tão pesado que achei que voltaria antes de você acordar — explicou, brincando com a filha no colo. — Como você está depois de ontem?

— Bem — menti, envolvendo meu hobby de seda mais apertado. — Você não corre há muito tempo.

— Pois é, eu já estava ficando enferrujado. De qualquer maneira, resolvi voltar aos velhos hábitos para desestressar um pouco.

— Eu o deixo estressado, não é?

Seus olhos rolaram e ele afagou meu ombro.

— Isso não tem nada a ver com você.

— É claro que tem, não seja condescendente comigo, Edward. Você deveria estar no trabalho, mas está aqui garantindo que não irei ver mais assombrações por aí.

— Pedi um dia de folga porque quero ficar com você — disse ele ao prender uma mecha de meu cabelo solto para trás da orelha. — E conversar.

Arqueei a sobrancelha, intrigada.

— Sobre?

— Fiz café-da-manhã, porque não aproveita e come? Costumo ser modesto, mas está tudo uma delícia — ele piscou, sorrindo de lado e me devolvendo Marie. — E não esqueça de tomar sua vitamina antes.

— Ei, não pode me deixar curiosa e ir embora depois — disse ao agarrar em sua camisa úmida de suor quando ele fez menção de sair. — Me diga.

— Amor, acho que preciso de um banho agora.

— Tudo bem, eu gosto.

Arranquei-lhe uma risada com minha curiosidade aguçada.

— Depois, querida — então selou nossos lábios uma última vez antes de se afastar.

A ansiedade não ofuscou a fome animalesca que despertou em mim.

Devorei cada uma das três omeletes com bacon e suco de laranja em pouco tempo, Edward me acompanhou em silêncio — embora tenha passado a maior parte do tempo apenas me observando com Marie nos braços depois de terminar sua refeição, incentivando-a a balbuciar qualquer baboseira sobre chamá-lo de papai.

— Desista, ela vai dizer "mamãe" primeiro — comentei ao deixar os talheres caírem no prato, satisfeita. — E isso não está aberto a discussão.

— Não se eu não deixar — rebateu com um sorrisinho cínico ao retornar a atenção para a filha.

A bebê continuou suas tentativas de diálogo com muita baba e grunhidos sem sentido, por um tempo eu me perdi naquela cena. Afinal, aqueles momentos simples eram o que ainda me mantinha de pé todos os dias e por eles eu permaneceria lutando para não ceder ao completo desespero.

— Então, sobre o que queria falar comigo?

— Bem — ele ajeitou a criança no colo e se recostou na cadeira para me olhar. — Já disse isso inúmeras vezes, mas volto a repetir que estou preocupado com você.

— Se for começar com aquele assunto de novo...

— Apenas escute-me, amor. Eu não quero brigar — ele implorou, gesticulando. — Depois da noite passada, acho que não devemos ignorar o que está acontecendo aqui. Você me disse coisas ontem, Bella. Você, obviamente, se sente mal por tudo o que aconteceu em Austin e não importa o quanto me diga que está tentando seguir em frente, sei que está, mas não consegue.

— Edward, é apenas uma questão de tempo.

— Não é. Você, mais do que qualquer um, sabe que não é verdade. Bella, você não consegue viver em paz desde o que aconteceu, precisa procurar a ajuda de um médico antes que algo pior aconteça.

Engoli com dificuldade ao olhar para a criança de cabelos cor de bronze.

— Pior?

— Não me faça dizer as palavras — ele balançou a cabeça, angustiado. — Eu te amo, Bella. Mais do que você compreende. Mas eu também tenho medo, tanto quanto você.

— Eu não estou louca, Edward.

— Sei que não, só está confusa. Eu entendo que você rejeite a ideia de procurar ajuda profissional, mas se não quiser fazer por mim, então faça pela Marie. Faça pela nossa filha, ela precisa da mãe.

Uma louca diagnosticada.

Mesmo a ideia fez a bile subir pela minha garganta. Eu estava caminhando diretamente para a luz no túnel, apavorada com a verdade feito os homens no Mito da Caverna. Não queria conhecer aquela verdade, enquanto me mantivesse no escuro, tudo estava de pé, instável, mas de pé. Se eu fizesse o que Edward pedia, talvez todos os pilares simplesmente desabassem sobre minha cabeça e eu me perderia de vez.

Mas não fazer…

Não fazer significava que Marie nunca teria a chance de conhecer quem eu fora um dia, que tipo de ser humano alegre e amável fora sua mãe antes que um evento terrível a transformasse em meros galhos espinhentos. Eu estaria a condenando a uma infância incompleta, ela não merecia.

Minha filha merecia o melhor de mim.

— Eu irei — murmurei com os olhos baixos, como se alguém mais pudesse nos ouvir.

E ouvi o ranger da cadeira quando Edward se inclinou para afagar minha mão.

— Obrigado.


— Isso é uma péssima ideia — comentei pela quinta vez naquela manhã, ansiosa. — Ela não parece nada bem, eu deveria remarcar para outro dia, quando ela estiver melhor.

— Oh, não se preocupe. Posso nunca ter tido um bebê, mas sei cuidar perfeitamente de um — insistiu Rosalie ao seguir para a cozinha com minha filha em seus braços. — Já estou preparando um chá e compressas para a febre, isso deve ser apenas uma virose. Marie vai estar ótima quando você voltar.

— Eu lhe contei que ela pegou aquela brisa fria… deve ter sido isso. Pobrezinha, acordou resfriada esta manhã.

— Blanco é tão polarizada que me irrita, dias quentes e noites frias… isso acaba com meu humor — ela suspirou se movendo com Marie em uma familiaridade admirável. — Achei que tivesse cuidado das trancas enferrujadas.

— Troquei todas elas, mas continuam abrindo.

Rosalie entreabriu os lábios, pronta para dizer algo. Mas, por algum motivo, deu as costas novamente para seguir com seus afazeres em silêncio.

Na tarde anterior, após a conversa com Edward, resolvi ligar para Rosalie para pedir o contato de seu terapeuta. Engolir o orgulho foi um processo difícil e acabei desligando o telefone duas vezes antes de tomar coragem para tocar no assunto, felizmente minha amiga não fizera perguntas e fiquei contente por manter as respostas para mim. Em troca do seu apoio, aceitei de pronto quando a loira se ofereceu para cuidar de minha filha enquanto eu estivesse ocupada na cidade.

Embora tivesse ficado chateada com Rose em um primeiro momento por me esconder a verdade completa sobre nossa casa, descobri que não conseguia ficar irritada com ela por muito tempo. Rosalie era uma boa amiga e, de fato, estava longe de qualquer intenção ruim. Passar uma borracha naquele evento me pareceu justo.

A chaleira soou no fogão e Rose rapidamente desligou, separando a pequena mamadeira sobre a bancada enquanto preparava os utensílio para resfriar o chá mais rápido. Minha filha resmungou com os olhinhos marejados e o nariz vermelho na minha direção, um biquinho se formando nos lábios carnudos, antecedendo a mais nova rodada de choro.

— Own, me dê ela aqui — pedi ao me aproximar com os braços estendidos, meu coração se partindo junto. Mas a loira se manteve firme. — Vamos, Rose. Essa consulta nem é tão importante, ela precisa de mim…

— Ela precisa de você se sentindo bem! — Retrucou. — E não diga que não é importante, eu ouvi sobre o que aconteceu na sua casa.

Mordi o lábio interior, cedendo ao silêncio tenso que se formou.

— Me desculpe, Bella. Eu não deveria me intrometer.

— Como ficou sabendo? — Indaguei, fazendo Rose recuar.

— Ah, a esposa do xerife é membro da nossa igreja — ela respondeu, desajustada. — Você sabe, não existem segredos em uma cidade pequena.

— Não sei se posso concordar com isso — resmunguei, cruzando os braços.

Rose revirou os olhos castanhos.

— Achei que tinha me desculpado por não lhe contar sobre a casa, por quanto tempo mais vai me odiar?

— Eu desculpei, está tudo bem e eu não a odeio — garanti ao me aproximar e plantar um beijo em sua bochecha antes de me apoiar em seu ombro para sorrir para o meu bebê. — Só estou sendo uma chata por causa de Marie, não ligue para mim.

— Acho melhor você ir, Bella.

Arqueei a sombrancelha ao olhá-la.

— Está me expulsando?

— Estou garantindo que você não entre em pânico e se arrependa da ideia — ela sorriu de lado ao me entregar as chaves de seu carro. — Além disso, precisa se mover ou vai acabar se atrasando.

Olhei para Marie novamente, hesitante.

— Ora, confie em mim! — Ela repetiu, empurrando-me em direção a porta. — Você trouxe tudo o que preciso para cuidar dela e, se a febre aumentar, chamarei um médico imediatamente e em seguida ligarei para você ou para Edward. Já decorei todas as suas instruções. Não se preocupe com isso, sua filha não poderia estar em mãos melhores.

— Obrigada, Rose — disse ao parar na soleira. — Você fez tanto por mim desde que nos conhecemos… não sei se algum dia vou encontrar alguma forma de retribuir.

A loira sorriu carinhosamente.

— Bella, querida, não precisa retribuir nada. Faço porque adoro você e sua família, e sei que fariam exatamente o mesmo por nós.

E ela tinha razão.

Mesmo em Austin, antes de todas as sombras envolverem nossa vida, jamais me sentira tão próxima de qualquer um de nossos antigos amigos. Rosalie e Emmett me faziam sentir em casa, aceita, quase normal. E junto deles, eu costumava sentir um pouco da antiga Bella emergindo na superfície. Aquela pequena parte viva era o real motivo — além de minha filha — para que eu tomasse a decisão de ceder e procurar ajuda.

Sorri, agradecida, antes de me aproximar para plantar um beijo na bochecha de Marie.

— Cuide da minha filha.

— Como se fosse minha — ela assegurou, abraçando a bebê em seus braços. — Boa sorte, Bella.


O caminho até a cidade me deu muito tempo para pensar.

Longe de um marido superprotetor e uma filha dependente, fora quase assustador estar sozinha cruzando a estrada pela primeira vez. O papel com o endereço de Jasper Whitlock não pesava em minha bolsa, mas em minha consciência. As perguntas que Edward inconscientemente plantara em minha cabeça eram uma verdadeira incógnita me engolindo e não havia criatividade o bastante para que eu formulasse teorias sólidas, ou talvez eu só estivesse cansada demais para isso.

Edward estava agindo feito um bichinho doméstico desde nossa última discussão, mas isso não amenizou minha raiva. Embora não tivéssemos entrado em conflito outra vez, me mantive o mais introvertida que pude e não somente por birra, mas para preservar o meu casamento. Sabia que nossos pilares já estavam rachados há meses e um golpe forte demais poderia trazer tudo abaixo.

Com segredos ou não, eu o amava demais para colocar tudo a perder.

O consultório ficava na praça central de Blanco. Um espaço pequeno de fachada comum que passava despercebido aos olhares de qualquer um, o que não me impediu de descer do carro sentindo-me uma espiã ao entrar sorrateiramente no local. Uma mulher loira e gentil me cumprimentou na recepção, a secretária do Dr. Hunter atendia pelo nome de Lauren Mallory e se colocou a disposição antes de me dizer para aguardar na sala de espera.

Havia poucas outras pessoas na saleta de paredes verde-claro — felizmente, nenhuma familiar. Algumas mantinham sua atenção folheando revistas, outras olhavam para qualquer lugar que não fosse uma as outras e no canto do sofá, encolhida com as mãos trêmulas agarrando a bolsa, estava eu. Não sabia explicar porquê me sentia tão nervosa, como se estivesse esperando para ser interrogada pela polícia, afinal todos ali estavam procurando pelo mesmo que eu.

Embora não tivesse total certeza do que procurava.

Uma eternidade pareceu se passar até que meu nome fosse chamado e eu entrei no consultório. Não era grande, mas era iluminado pelo sol atravessando as cortinas e as plantas decorando alguns pontos do lugar criavam um ambiente confortável, diferente da palidez mórbida que eu esperava de qualquer local que remetia um hospital. Um homem louro ergueu o rosto de suas anotações para me olhar sob os óculos, então assumiu um leve sorriso simpático.

— Isabella… Cullen? — Ele checou seus papéis e se voltou para mim novamente.

— Bella — corrigi ao me sentar, tensa. — Pode me chamar de Bella. Só meu marido costuma me chamar de Isabella quando está bravo ou brincando.

Ele pareceu notar minha risada nervosa e murchei rapidamente.

— Ah, me desculpe. É que é a primeira vez que faço isso e estou um pouco desconfortável.

— E porque se sente desconfortável, Bella? — Perguntou, gesticulando casualmente.

Então, era assim que começava?

— Eu não sei, vir até um estranho e dizer coisas pessoais parece assustador para mim.

— Acho que se abrir para qualquer um, até mesmo conhecidos, é assustador para todos — ele sorriu gentilmente ao entrelaçar as mãos sobre a mesa. — Mas, gostaria que soubesse que meu lugar aqui não é de julgamento. Todos os dias, pessoas vem aqui com problemas, meu trabalho é apenas ouvi-las e apresentar soluções respeitando cada um, suas personalidades e opiniões.

— Isso não se torna… mecânico? — Questionei, curiosa.

— Oh, não. Existe uma linha tênue entre tratar meu trabalho de modo mecânico e enxegá-lo com impessoalidade, o primeiro é de extremo desrespeito e falta de profissionalismo. Isso não significa que não me importo com cada um, pelo contrário.

Assenti, absorvendo as suas palavras em silêncio.

— Então, por que não me diz o motivo para ter vindo até mim?

Articulei palavras que não encontraram a voz para sair e por meio minuto fui apenas uma criança lembrando de como se falava. Mil coisas martelavam em minha mente e a habilidade de montar uma grade sequencial de fatos pareceu meu primeiro desafio naquela sessão.

— Minhas portas e janelas… — murmurei depois de um tempo. — Minhas portas e janelas não param de abrir.

Ele franziu o cenho, intrigado de uma forma que a abertura para seguir me alcançou rapidamente.

— Elas abrem sozinhas depois de eu trancá-las. Abrem no meio da noite e durante a manhã, por causa delas minha filha está doente e por causa delas eu não consigo dormir — continuei, submersa em pensamentos. — Por causa delas, eu assusto meu marido e o deixo preocupado. Por causa delas, quase perdi tudo.

Virei-me para o terapeuta, finalmente enxergando-o de verdade em minha frente.

— Eu vim porque não consigo lembrar de uma vida antes das portas e janelas se abrirem. Há pelo menos sete meses, fico as encarando no escuro, acordando durante a noite para ter certeza de que não estão abertas e de que nada vai entrar. E minha vida tem sido um verdadeiro looping do ranger delas.

— Pode me dizer o que aconteceu há sete meses? — Perguntou, ajustando os óculos. — Se estiver confortável, é claro.

James Hunter me esperou pacientemente com o rosto sereno, livre de julgamentos ou suposições, nada obscuro cintilava nas belas íris azuis enquanto me fitava. E aquela me plenitude me fez tomar fôlego, decidida.

Finalmente, estava pronta para falar.