KIARA POV
— Essa humana desgraçada quase me matou. Eu ia pegá-la...mas ela era mais forte do que eu imaginei! A culpa não foi minha!
Eu estava apagada e simplesmente não tinha força para me mover ou abrir os olhos, mas de alguma forma conseguia ouvir tudo à minha volta. Essa voz...era do youkai urso que eu quase matei há pouco tempo atrás. Será que eu estava sonhando? Se ele está aqui, porque ainda não me matou? Parecia estar conversando com alguém. A nova voz desconhecida surgiu confirmando a ideia.
— É claro que é sua culpa, você a acertou mais de uma vez e mesmo assim não conseguiu desmaiá-la?! Você é um imprestável, estava brincando ou o quê? Eu deveria ter vindo em seu lugar. Por não conseguir detê-la agora o mestre está gravemente ferido e furioso e nos punirá!
— Mas ela está ali caída, vamos pegá-la e levá-la até o chefe, seremos recompensados.
Eu senti o medo percorrer todo o meu corpo. É o meu fim.
— IDIOTA! – gritou o outro – Não vê que ela está morta?! Não nos servirá mais. Ele deixou bem claro que ela tinha que estar VIVA.
Eu morta? Como assim? Como estava conseguindo ouví-los então? Não pode ser.
— Tem certeza? Ela me pareceu bem resistente.
— Lógico que tenho. Está duvidando da minha palavra? Já conferi, ela não tem batimentos cardíacos.
— E como foi a caçada no clã Komorebi? Conseguiram achar o objeto?
Como assim? Eles haviam invadido o meu clã? Entrei em desespero, mas continuava sem me mexer. Queria gritar, me levantar e lutar, mas nada acontecia.
— Não. Procuraram em todo lugar, mas não achamos nada. Sem contar que aqueles humanos imbecis não colaboravam com nenhuma informação. Mereceram morrer. Bom vamos logo, temos que enfrentar as consequências do que aconteceu aqui.
— Ah...e o menino? Porque não o levamos no lugar dela? Pode ser útil, talvez ele saiba onde está. – A voz do demônio urso soou esperançosa.
Será que estavam falando de Kazuki? Me dei conta que eu ainda estava caída sobre ele.
— Está vivo, mas não por muito tempo. Duvido muito que ele sirva, mas acho que não temos outra opção. Pegue-o.
Alguém estava me movendo, mas eu não conseguia me mexer por conta própria. Fui jogada de lado e senti o contato com o chão áspero. Estavam levando Kazuki e eu não podia fazer nada!
ACORDE IDIOTA, ACORDE! – Ordenei mentalmente para mim mesma.
Ouvi os passos deles se afastando e novamente perdi a consciência.
Comecei a abrir os olhos lentamente lembrando do sonho louco que tive...espera...tinha sido um sonho mesmo? Olhei para o teto percebendo que não era o teto do meu quarto e me assustei sem ter ideia de onde estava. Tentei levantar para buscar uma resposta, mas senti meu corpo doer muito e gemi involuntariamente.
— Minha nossa...você acordou! Tatsuo, a menina acordou, corre aqui!
Olhei em direção à voz e observei uma idosa me encarando com preocupação por cima dos óculos de grau que utilizava. Demorei um pouco para assimilar que ela estava falando em japonês e não no dialeto do meu povo.
— Como você está se sentindo minha querida? Não se mova, você está muito ferida ainda.
Ferida? Olhei para meu corpo e percebi que por de baixo da roupa que eu estava usando (que por sinal nem era a minha roupa), estava coberta de ataduras. Só então me caiu a ficha: a batalha. As imagens daquele terror que vivi voltaram com tudo a minha mente. Entrei em desespero. Onde estavam meus companheiros e Kazuki? E o corpo do meu pai e do tio Yuki? Comecei a raciocinar sobre tudo que tinha acontecido. Estávamos vencendo o demônio urso e então tudo virou de cabeça pra baixo, como se tivessemos caído numa emboscada. Foi tudo planejado...?
Contrariando a idosa comecei a me levantar rapidamente, ignorando as dores.
— Não, não, não. Aonde pensa que vai?! Não pode sair assim. Você me entende? Sabe falar japonês? – Ela foi se aproximando de mim, gesticulando como se eu não entendesse nada que ela dizia, tentando me impedir de me movimentar. Enquanto protestava, um idoso apareceu na porta do quarto.
— Minha nossa! – Ele me observou incrédulo.
Sentada na cama, eu encarei os dois. Me concentrei em minhas aulas de japonês e cautelosamente comecei a falar.
— Onde...– Tentei dizer, mas minha voz falhou e saiu parecendo mais um sussurro. Os idosos chegaram mais perto tentando entender o que eu estava resmungando. Limpando a garganta, tentei novamente até conseguir formular a frase com mais força. – Onde é que estou? Quem são vocês?
Somos o senhor e a senhora Fujita. – O velho começou a falar devagar e pausadamente – Sou Tatsuo Fujita e essa é minha esposa, Sora Fujita. Vivemos perto da aldeia Kimura. Parece que ela foi atacada por alguém. Vimos muitas explosões daqui e ao amanhecer fomos ver se tinha algum sobrevivente, demoramos muito, mas te achamos. Te trouxemos para nossa casa e cuidamos de você. Qual seu nome?
— Kiara.
— E de onde você é Kiara?
Não respondi e ficamos os três em silêncio por um momento. Eu não sabia se podia confiar neles, estava confusa e as imagens da luta continuavam me atormentando.
— Eu era a única sobrevivente?
— Sim. – Respondeu o idoso, após uma longa pausa.
Não chorei, berrei e nem me desesperei. Apenas fiquei parada olhando pro nada. No fundo eu já sabia a resposta...só precisava de uma confirmação.
— Tinha um garoto caído embaixo de mim. Ele estava morto?
Dessa vez foi a idosa que respondeu, olhando confusa para o velho.
— Um garoto? Não querida, não tinha nenhum garoto. Você estava deitada no chão. Não havia ninguém embaixo de você.
O sonho...agora que percebi! Foi real! Aquelas vozes dizendo que levariam Kazuki com eles foi tudo verdade. Um ódio profundo começou a tomar conta de mim e me levantei correndo, arrancando mais um protesto da senhora.
— Não! Já disse para ficar aqui.
— Você não entende! Preciso ir até a aldeia! – quando me dei conta já tinha gritado com ela – Preciso ver com meus próprios olhos!
De fato eu precisava confirmar que o corpo de Kazuki não estava lá, não podia ficar perdendo tempo nesse lugar. A senhora me olhava assustada sem saber o que dizer.
— Olha...– continuei falando na tentativa de amenizar a tensão criada no ar –...agradeço a preocupação, mas já consigo me mover. Estou bem, sério. Agradeço por cuidarem de mim.
Eles pareceram mais aliviados e foi a vez do senhor abrir a boca.
— Bom pra ser bem sincero eu acredito, nunca vi alguém tão resistente. Te encontramos com muitos ferimentos e lanças enfiadas nas suas costas, sem contar as balas alojadas no seu corpo. Pensamos que estava morta, mas você sobreviveu. Enquanto esteve dormindo várias vezes nós ficamos na dúvida se seu coração ainda estava batendo e se você estava respirando, e quando tínhamos quase certeza que não, você nos surpreendia mostrando o contrário. Agora, apenas dois dias depois de termos te encontrado, você já está de pé. É um milagre!
— DOIS DIAS? Se passaram dois dias inteiros? – Voltei a questionar, assustada. Como fiquei tanto tempo inconsciente? – Não me encontraram na noite passada?
— Não, você já está dormindo há dois dias e meio, pra ser mais exato.
Mais uma vez o silêncio tomou conta do quarto.
— Bom, você quer ir até lá? Te levamos em nossa caminhonete. Vamos. – Disse o velho me incentivando. Antes de sair, a senhora me entregou minhas roupas levadas para me vestir e tentou me oferecer comida, mas eu recusei e apenas tomei um pouco de água para me hidratar. Me sentia péssima, cheia de dores e acabada.
Saindo da casa simples e humilde, pude notar que eles moravam completamente isolados em cima de uma montanha. Um lugar muito estranho pra viver, mas eles deviam ter seus próprios motivos. Por entre os declives da cordilheira era possível ter uma visão ampla da aldeia, ainda que distante. Rapidamente, entramos na caminhonete e nos dirigimos à Kimura.
O cenário era ainda mais devastador à luz do dia. As casas estavam destruídas e haviam corpos mutilados por todo o chão, inclusive de muitas crianças. Isso me fez estremecer. Cheguei ao local da batalha dando de cara com o corpo de um dos meus companheiros de luta e não pude deixar de desviar o olhar ao ver a imagem desfigurada na minha frente, era o pai de Daisuke. Fechei os olhos, respirei fundo e me preparei mentalmente para continuar. Me lembrei então de como tudo começou. Estava disfarçada como aldeã e o demônio urso surgiu do nada, nenhum de nós percebeu. Mas como? Cada criatura viva tem uma energia, ou a espiritual ou a demoníaca. Nós komorebis conseguimos enxergar essa energia em cada um, então se tivéssemos visto qualquer criatura suspeita com a aura de youkai nós saberíamos. A não ser que...
O pensamento me deixou assombrada por alguns minutos: o demônio conseguia mudar de forma. Ele também estava disfarçado em meio aos aldeões?! E além de mudar de forma ele mascara sua energia. Provavelmente ele estava com a aparência de humano e tinha energia espiritual, por isso não o notamos. Maldito.
Fiquei procurando o corpo de Kazuki em meio aos destroços dos meu outros colegas. Me deparei com o corpo do meu tio Yuki, ele morreu de olhos abertos e seus traços joviais fizeram com que parecesse que eu estava vendo a cena da morte de minha mãe novamente. Tentei me conter, mas lágrimas começaram a escorrer pelo meu rosto. Os velhos que me acompanhavam aonde eu ia e olharam a cena com cara de pena.
Esses eram seus amigos? – Me perguntou a senhora Fujita colocando a mão em meu ombro.
Eram minha família. – Respondi com dificuldade, tentando limpar as lágrimas do meu rosto.
Andei por mais alguns corpos, entre eles me deparei com os de alguns militares que nos atacaram e não pude deixar de refletir sobre o porquê eles continuaram nos golpeando até o fim. Como estavam sendo controlados? Procurei mais a fundo por alguma pista e só depois de passar e repassar por eles que notei o fato estranho: a maioria deles tinham um ofuda [1] preso em alguma parte do corpo. Com a confusão de ontem eu não tinha me atentado a isso e não saberia dizer se todos que tinham o selo estavam contra nós ou não, então isso podia não ser nada além de um pedaço de papel com uma escrita, ou então podia significar alguma coisa. Arranquei o papel de um dos militares caídos no chão e o guardei. Mais tarde o analisaria com calma.
Fui até o corpo do meu pai. Me sentei ao lado dele enquanto as horas passavam, derramando várias lágrimas e só me levantei depois de um bom tempo, convencida de que Kazuki realmente não estava mais na aldeia. Me lembrei das últimas palavras que meu pai dirigiu a mim: "não deixe o Kazuki sozinho, fique sempre com ele". Eu tinha que achar meu irmão. Tinha que salvá-lo, não importando o que tivesse que fazer para conseguir isso. A katana do meu pai ainda estava caída ao seu lado, decidi pegá-la pra mim, porque perdi a minha quando a lancei contra aquele homem estranho de pele acizentada.
— Que tal darmos um enterro para eles? – Disse o senhor Fujita ao chegar sorrateiramente perto de mim. – Vamos reunir os corpos e vamos enterrá-los perto de casa, pode ser?
Aquilo me emocionou e meus olhos lacrimejaram mais.
— Sim, obrigada.
Os idosos me ajudaram a cobrir os corpos e transportá-los até um local da montanha em que moravam para enterrá-los. Fizemos algo simples, mas ao final coloquei flores no túmulo de cada um de modo que terminamos quando o sol já estava se pondo. Eu havia parado de chorar, mas sentia meu coração quebrado como se nunca mais fosse ter força novamente.
De repente me veio na mente a lembrança do meu sonho, a voz do youkai urso dizendo: "como foi a caçada no clã Komorebi?" e o outro desconhecido respondendo "mereceram morrer". Se Kazuki havia desaparecido como no meu sonho, então era provável que meu clã tivesse realmente sido atacado. Eu precisava voltar urgentemente pra lá.
— Preciso ir embora pra casa. – Eu disse me dirigindo aos Fujita, que responderam com um olhar preocupado.
— Nós te levamos. – O senhor Tatsuo sugeriu inocentemente.
— É muito longe, não precisam me acompanhar, já fizeram o bastante por mim.
— Escute. Nós queremos ir, queremos te acompanhar. Deixe-nos te fazer esse último favor, a caminhonete não é muito rápida, mas é melhor que ir a pé.
— Porque estão me ajudando tanto? Nem me conhecem. – A desconfiança era inevitável, já que da última vez que baixei a guarda aconteceu o massacre de dois dias atrás. Não sei se voltaria a confiar em alguém tão facilmente.
— Não sei responder sua pergunta, mas eu não acredito em coincidências. Acho que você apareceu em nosso caminho por algum motivo, então não faz sentido te largar assim.
Eu desviei o olhar deles. Me senti envergonhada por um segundo: vergonha de mim mesma por não tratá-los bem. – Está bem então. Agradeço a gentileza.
Durante a longa viagem não troquei palavras com os idosos em nenhum momento e felizmente eles não ficavam me fazendo nenhuma pergunta desnecessária sobre minha origem. Tentei ficar acordada todo o tempo, em alerta, mas sentia-me muito cansada e acabei pegando no sono uma vez. Tive um pesadelo que envolvia meus companheiros morrendo, e Kazuki me acusando de abandoná-lo. Ele dizia que tudo aquilo era minha culpa. Acordei dando um pequeno pulo de susto ao ver a imagem do corpo de Kazuki ser cortado ao meio por aquele demônio urso. Espero que os idosos não tenham notado, embora duvide muito disso.
Enfim, chegamos já no dia seguinte, no início da madrugada. Os velhos que acompanhavam deviam estar exaustos, mas não me deixaram ficar só. Eu andei até a entrada do nosso clã e ao atravessar o portão a visão que tive não foi muito diferente do que vi na aldeia: estava tudo completamente destruído e não parecia ter uma alma viva. Muitos corpos estavam lançados ao chão, desfigurados, encobertos de sangue e com uma expressão de terror nos olhos. Eu desabei. Não consegui aguentar aquilo e fiquei chorando um bom tempo antes de continuar. Infelizmente, muitos corpos estavam carbonizados e irreconhecíveis, então eu não saberia nem dizer a quem pertencia. Fui em direção à minha casa em busca de meu avô, mas a construção estava em pedaços e não encontrei e ninguém.
Maldição. Eu dormi dois dias inteiros, não estava aqui pra ajudá-los. Fui uma inútil, se eu não tivesse desmaiado talvez pudesse ter chegado a tempo. Quem sabe o Kazuki do meu sonho tenha razão de me acusar. Fui atrás de minha última esperança: nosso clã havia construído esconderijos subterrâneos para algum caso de ataque de demônios. Isso só foi elaborado depois da invasão que houve há 11 anos e resultou na morte da minha mãe. Enfim, me direcionei à entrada secreta com esperança de encontrar alguém salvo ali, mas assim que entrei tive a minha resposta. O rastro de sangue seguia do teto, descendo pelas paredes, até os corpos caídos ao chão. Eles foram pegos aqui também, não tiveram para onde escapar.
Ninguém estava vivo. Meu clã inteiro não existia mais! Em três dias eu havia perdido todos meus companheiros, todo o meu povo, toda a minha família. Meu pai, meu avô, meu tio...além de Daisuke e das outras famílias que eu não tinha muito contato. Todos estavam mortos! Me sentia completamente sozinha. O único que havia restado era Kazuki e eu nem sabia onde ele estava e se estava vivo. Chorei até não aguentar mais, até não ter mais nenhuma lágrima para sair de mim. O ódio e a raiva cresciam cada vez mais, junto ao desejo de vingança, um sentimento inevitável e incontrolável. Não havia tempo para fraquezas ou choro, eu precisava ser forte.
Saí do esconderijo e fui de encontro aos Fujita.
— Você vai querer enterrá-los?
— Não. São muitos corpos e infelizmente não tenho tempo. Preciso procurar meu irmão.
— Sabe...nós estávamos pensando, vai ser um trabalho longo, mas podemos vir aqui de vez em quando e ajeitar tudo aos poucos. Se você aceitar, é claro.
— Vocês que sabem, mas não tenho como pagá-los. – Fui grosseira, no entanto não sabia o que dizer e não estava em condição de ser agradável naquele momento. Esperava que eles pudessem me compreender.
— Não queremos nenhum pagamento.
Me concentrei e tentei acalmar minha mente, organizando meus pensamentos ao listar os fatos que eu sabia até o momento:
1- Aparentemente havíamos caído numa armadilha.
2- Aquele demônio urso na verdade consegue mudar de forma e de energia, então tenho que tomar cuidado porque posso me encontrar com ele sem nem saber.
3- Esse demônio e o outro cara sequestraram Kazuki e fazem parte de um grupo que atacou o meu clã.
4- Mas todo o grupo está obedecendo um outro chefe, provavelmente aquele homem que eu atirei minha espada para salvar Kazuki.
5- Todos eles estavam atrás de mim e de algum objeto que não sei qual, mas que eles não encontraram.
6- Por fim, mas não menos importante: eu preciso vingar o meu povo e salvar Kazuki, mesmo que eu morra pra isso!
Notas finais:
[1] Ofuda é um talismã japonês feito em tiras de papel, pano ou madeira, cuja finalidade varia conforme o encantamento escrito nele.
