YUSUKE POV
Keiko e eu acordamos cedo, ansiosos para irmos direto ao templo da falecida Genkai [1]. Eu estava completamente envolvido pela nostalgia, enquanto subia lentamente as escadas em direção à entrada do local. A velha deixou suas terras para todos nós de herança e agora seus herdeiros se reuniriam justamente aqui. Um misto de emoções se apossava de mim.
Ficava triste por lembrar que Genkai já não estava mais presente em nossas reuniões, afinal seus treinos e conselhos me faziam muita falta. Mas também ficava feliz por ter tido a chance de conhecê-la e de me tornar seu discípulo. Não tenho palavras para agradecer por tudo que me fez.
Entramos no templo, nos deparando apenas com a figura carrancuda de Hiei. Estava sentado no sofá de braços cruzados e olhos fechados numa expressão severa. Parecia impaciente, o quê, vindo dele, não era uma novidade.
— Olha só...quem é vivo sempre aparece! – Gritei em euforia, recebendo uma expressão de reprovação em resposta – Achei que nunca mais ia te ver, Hiei. Como é que vão as coisas?
— Não precisa ser escandaloso, Yusuke. Estou bem.
— Pelo visto você não mudou nada, continua o mesmo mal educado de sempre. Deveria perguntar como estou de volta, sabia?
— Eu não faço perguntas cuja resposta não me interessa.
— Vixe...que mau humor, hein? Acho que o serviço de patrulheiro não tem te feito nada bem. – Provoquei ao sentar do seu lado. Sabia que ele odiava o trabalho a que foi imposto.
Keiko o cumprimentou com um simples aceno da cabeça, até porque ela ainda tinha receio dele desde o dia em que ele a sequestrou, embora eu já o tivesse perdoado por isso. Ele desviou o olhar em menosprezo. De qualquer forma, eu sabia que no fundo Hiei gostava de nós, por mais que tentasse demonstrar o contrário por meio de comportamentos pateticamente frígidos.
Keiko decidiu ir ajudar Yukina, enquanto eu fiquei à espera dos outros, apenas arrancando algumas palavras monossilábicas de Hiei ao perguntar sobre o governo de Enki no Makai. Não demorou muito até que todos chegassem, um por um em sequência. Kuwabara surgiu ofegante na porta do templo, cansado pela enorme escadaria que havia acabado de enfrentar. Kurama veio em seguida e por fim, Koenma e Botan chegaram juntos completando o time. Logo a sala acabou imersa num zumbido frenético causado pela mistura de vozes se cumprimentando.
Kazuma estava com uma cara de bobo apaixonado enquanto conversava com Yukina na tentativa de ser prestativo em alguma tarefa no templo. Ela recusava seus serviços sem graça, dizendo que já não havia mais nada pra fazer e mesmo assim o cara continuava tentando mostrar sua utilidade. Como ele conseguia ser tão lerdo? Se dependesse de uma declaração de amor pra viver, ele já teria sido cremado há anos.
— Nossa, fazia tempo que não nos encontrávamos aqui, não é? – Kuwabara exclamou sentando ao meu lado, percorrendo cada centímetro da sala com o olhar sentimental. – Uma pena a Genkai não estar mais com a gente.
A lembrança fez com que a agitação de todos fosse diminuindo até cessar por completo, de forma que ficamos em silêncio por um momento. Esse era um assunto que vivíamos evitando proferir em voz alta, mas aqui nesse lugar era impossível. De relance, achei ter visto Botan tentando esconder o rosto ao lagrimar.
— Genkai aceitou muito bem sua morte, pessoal. Não precisam ficar assim toda vez que vierem pra cá. Todos os seres vivos morrem, alguns mais rápido que outros. A hora dela havia chegado, ela entendeu e aceitou de bom grado. Sua alma foi recompensada e descansa em paz.
As palavras reconfortantes de Koenma fizeram com que erguessemos a cabeça, sabendo que ele estava certo. Genkai não iria querer nos ver desse jeito, aliás, aquela velha louca ficaria irritadíssima se entrasse pela porta e nos encontrasse nesse estado. Tive que reprimi um sorriso ao imaginar a cena.
— Bom, então vamos discutir o intuito real dessa reunião. – Continuou Koenma, com mais seriedade na voz. Ele respirou fundo em tensão e de repente todos o escutavam atentamente – Chamei vocês aqui porque algo muito sério está pra acontecer. Já devem ter notado a estranha atmosfera que existe no Mundo dos Homens.
— Sim, tem piorado de uns meses pra cá. – Kurama respondeu.
— Com Yusuke e Kuwabara eu já havia comentado, mas vou explicar desde o início para todos. – Pacientemente, Koenma contou a eles o mesmo que já havia nos dito, de forma que a reação deles não fosse muito diferente da nossa: olhares perplexos cercavam o líder do Reikai como se ele estivesse enlouquecido. Provavelmente esperavam ouvir qualquer coisa, menos sobre um tal "Mundo dos Deuses".
— Mundo dos Deuses, Koenma? – Perguntou Kurama hesitante.
— Exato. O Mundo dos Deuses é habitado pelas criaturas celestiais e imortais, está acima do Mundo Espiritual. É a morada dos Deuses que criaram todo o planeta e atualmente está em conflito.
— O que quer dizer com isso? – Hiei questionou, estreitando os olhos pensativo.
— Não posso afirmar ao certo. Eu não tenho contato com o Mundo dos Deuses e parece que as divindades estão sendo bem reservadas. – Podia jurar ter sentido uma pontada de rancor e ressentimento na voz de Koenma, mas achei melhor não comentar – O que descobri até agora é que algo está errado no Mundo dos Deuses, eles estão em conflito entre si. Eu sei disso, porque é possível sentir a falta de harmonia entre eles lá do Reikai. Além disso, como vocês já puderam notar, existe uma energia malígna surgindo no Makai, e é tão forte que conseguimos sentí-la aqui no Ningenkai, e até no Mundo Espiritual. Acredito que o atrito no Mundo dos Deuses tenha relação com o surgimento dessa energia malígna. Esses eventos tem criado essa estranha atmosfera que vocês estão sentindo.
— Mas você realmente acha que tudo isso vai resultar numa guerra? – Kurama perguntou cautelosamente.
— Bom...todas as vezes que os Deuses brigaram entre eles, o resultado foi uma guerra. Acredito que dessa vez não será diferente.
— Espera aí Koenma...tá querendo dizer que você ainda não sabe de nada? Fala sério, nos falamos há cinco meses atrás e você não tem nenhuma novidade?!
— Calma Yusuke. Deixa eu continuar! Justamente há cinco meses atrás, poucos dias depois de conversar com você, algo muito estranho aconteceu no Mundo Espiritual. Recebemos vítimas de um massacre que não tínhamos previsto. Todas as pessoas mortas eram parte de um clã chamado Komorebi, constituído por lutadores que ganhavam a vida resolvendo problemas sobrenaturais no Mundo dos Homens. Digamos que eram, assim como você, detetives sobrenaturais. Só que ao receber suas almas no Mundo Espiritual, não conseguimos tirar deles informações úteis, porque eles não sabiam o que tinha acontecido. Foram atacados de surpresa e estavam extremamente confusos. Só conseguiram dizer que o inimigo estava em grande número.
— O quê?! Pera aí...quer dizer que eram humanos que enfrentavam demônios? Não sabia que existia gente que trabalhava com isso além do Yusuke. Como humanos comuns podem lutar com youkais? – Kuwabara exclamou em voz alta, me dando um cutucão ao gesticular em protesto.
— Não eram comuns, Kuwabara. Eles são o clã mais famoso de detetives sobrenaturais e eram muito habilidosos, conhecidos por terem energia espiritual e demoníaca ao mesmo tempo.
— Como é que é?! – Kazuma apoiou os cotovelos nos joelhos para que suas mãos pudessem sustentar o peso de sua cabeça, que parecia prestes a explodir.
— Eles acreditavam que a Deusa da Luz e das Trevas ofereceu a eles seus poderes para que usassem com boas intenções. – Ele explicou, nos deixando ainda mais confusos.
— Você disse Komorebi? Eu já ouvi falar deles...possuíam um trabalho bem antigo e se tornaram mal falados no Makai. Mas essa crença deles é verdade, Koenma? – Kurama perguntou.
— Na verdade é sim. A Deusa da Luz e das Trevas, também chamada de Deusa da Justiça faz parte do grupo dos Deuses principais. Ela forneceu energia pra todos os seres vivos: energia espiritual para os seres humanos e energia demoníaca para os youkais. Ela teve influência sobre cada um de vocês que está aqui. Mas para os humanos nascidos nesse clã ela ofereceu os dois tipos de energia. Sei que parece loucura, mas é sério.
Parecia loucura mesmo, mas ninguém se atreveu a concordar em voz alta.
— A questão é que, antes de dar a sentença pra alma dessas pessoas eu pude descobrir conversando com eles que nem todos os habitantes estavam presentes quando o clã foi atacado. Dez pessoas haviam ido realizar um trabalho em uma aldeia bem longe e adivinhem? – Todos nós olhamos pra ele, curiosos e sem paciência pra um jogo de adivinhação. – Esses que estavam longe também morreram! Assim como os outros, recebemos a alma deles e perguntamos o que aconteceu. Eles comentaram que foram pegos numa emboscada surpresa. Mas o estranho é que recebemos oito almas, sendo que eram dez pessoas. Portanto, dois sobreviveram.
— Meu Deus...que tensão! Termina logo essa história Koenma! Quem tá vivo? – Kuwabara gritou.
— Eles me contaram que o príncipe e a princesa do clã não haviam morrido. Mas não pude fazer muitas perguntas a eles, porque fui obrigado a dar a sentença para que buscassem a paz no paraíso. Tinha que liberá-los logo...as coisas estão meio tensas no Reikai. Só peguei os nomes e descrições dos sobreviventes, assim como as características dos assassinos. Olhei no banco de dados do Reikai, mas não encontrei nenhuma ficha que pudesse remeter a esses demônios. Não faço ideia de quem sejam.
Hiei emitiu um riso cínico ao meu lado e eu o olhei curioso.
— Por acaso o nome dessa sobrevivente do Clã é Kiara? – Ele questionou Koenma de forma direta, fazendo com que todos o encarassem desconfiados.
— Sim, Hiei. Kiara Mikami. Parece que você também tem informações para compartilhar, hein? – Como de costume, ele evitou contato visual com qualquer um de nós, que agora mantínhamos a atenção presa em todos os seus movimentos.
— Nem tanto. Mas parece que youkais inferiores tem vindo para o Ningenkai em busca de uma humana chamada Kiara. Um deles me disse que seria recompensado se a encontrasse.
— Recompensado por quem? – Perguntei.
— Não sei dizer. Tudo que consegui obter da mente daquele imprestável foi a imagem de um youkai, o qual ele se referiu como chefe.
— É como eu pensava...– Koenma continuou falando assim que desabou seu peso numa cadeira qualquer, visivelmente abatido –...essa garota pode ser a chave para entender o que está acontecendo.
— E é claro que você pretende encontrá-la. – Kurama concluiu com simplicidade.
— Sim. Mas não é fácil achar alguém que nem conheço e não faço ideia de onde está.
— É aí que nós entramos, né? – Perguntei já me colocando de pé, mostrando disposição no caso.
— Sim, mas é bom deixar claro que não sabemos o que estamos enfrentando dessa vez e eventualmente pode acabar sendo mais arriscado do que...
— Para com isso Koenma. – Interrompi impaciente – Que papo é esse? Você já nos chamou, agora não adianta querer voltar atrás. E vê se me poupa de todo esse sermão sobre riscos, como se das outras vezes também não tivesse sido arriscado. Gostaria de te lembrar que numa das últimas missões eu acabei morrendo. Você sabe muito bem, afinal, tava vendo tudo de camarote quando Sensui me golpeou no coração.
— Tô dentro também! Até porque, o que pode ter de tão perigoso em procurar uma garota? – Perguntou Kuwabara, se colocando de pé da mesma forma que eu e terminando por alternar os olhares entre Kurama e Hiei. – E vocês aí? Vem com a gente?
— Concordo com Yusuke. – Kurama respondeu – Pensar excessivamente nos riscos é o primeiro passo para garantir o seu fracasso. Além disso, se encontrarmos essa garota antes dos demônios que a estão procurando, talvez consigamos evitar essa guerra, não?
— Aprecio seu otimismo Kurama, mas sinceramente não sei se isso será possível – Koenma respondeu em um tímido sorriso amarelo. – E você, Hiei?
— Não sei.
— Como não sabe? Que ridículo, parece até que virou pau mandado no Makai e precisa pedir permissão. – Kuwabara desafiou se projetando na frente de Hiei.
— E parece que quanto mais o tempo passa, mais idiota você fica. É quase como se estivesse implorando para eu te matar. – Hiei se levantou também, e embora a diferença de altura fosse absurdamente desvantajosa pra ele, sua presença era muito maior e mais ameaçadora que a de Kazuma.
— Parem com isso. Não estamos aqui pra discutir entre nós e sim pra ajudar o Koenma. Se não conseguem se comportar e vão ficar com essa infantilidade é melhor irem embora de uma vez. – Kurama disse se colocando entre os dois, tentando apaziguar a situação. Bobagem, na minha opinião. Nenhum deles brigaria de verdade aqui, bom...pelo menos não enquanto estivéssemos presentes.
— Ir embora? Não precisa pedir duas vezes, aliás, nem era pra eu estar aqui. Fui obrigado por meio de chantagens, como você bem sabe, Kurama. – Hiei se virou, caminhando lentamente em direção à porta.
— Hiei espera...te chamei porque você tem habilidades muito úteis nesse caso. Com o Jagan você pode encontrar pistas que passam despercebidas pelos nossos olhos. – Koenma explicou calmamente, fazendo com que ele cessasse os passos antes de sair do templo. – Sei que parece perda de tempo pra você e que você nem deve nada ao Mundo Espiritual, mas e se fizessemos um trato? Como líder do Reikai posso persuadir Enki a te liberar do dever de patrulheiro, sei que você não gosta nenhum pouco. Garanto sua liberdade pra sempre, seja pra esse ou para os próximos governos – Por alguns segundos, Hiei sondou as palavras de Koenma de maneira analítica, ponderando a possibilidade em silêncio. Vendo que ele precisava de um tempo pra pensar, decidi voltar ao assunto principal.
— Koenma, então você realmente não sabe de nada até agora? Não tem nenhuma pista de onde a garota possa estar?
Ele bufou, massageando a cabeça como se estivesse tentando acalmar os nervos.
— Pois é, fui até a aldeia onde a garota viu seus companheiros morrerem e não achei nenhuma pista do seu paradeiro. Tava tudo devastado por lá e o mais estranho é que não encontramos nem os corpos dos amigos dela que faleceram. Também fui no clã e não achei nada de útil. Por isso, pensei que com o Jagan teríamos mais sorte...é bem difícil vasculhar destroços de uma cidade inteira.
— E afinal, como é essa garota que vamos procurar?
— Os companheiros dela disseram que é uma garota linda. – Koenma me respondeu esboçando um leve sorriso malicioso no rosto. – Tem 20 anos, cabelos castanhos avermelhados e olhos verdes.
— Isso é meio vago, não? Quantas no Mundo não devem ser assim? – Kurama contestou.
— Eles mencionaram que os olhos dela mudam de cor dependendo da energia que ela utiliza. Podem ser vermelhos caso use energia demoníaca ou azuis caso use energia espiritual. É assim que vamos ter certeza que é ela.
— Mudam de cor?! Que coisa mais sinistra. – Kuwabara me olhou com pavor.
— E o menino...o príncipe do clã? – Keiko abriu a boca pela primeira vez e todos a olharam, fazendo seu rosto corar fortemente – Você disse que os dois sobreviveram. E o menino, não vão procurá-lo?
— Bom...ele está vivo, talvez esteja com a irmã, não sei dizer Keiko. – Respondeu Koenma.
— Talvez encontrando um, encontraremos o outro. Mas pelo que Hiei disse parece que os demônios estão apenas atrás da garota. Devemos procurá-la primeiro. – Kurama completou o raciocínio.
— Falando nisso...e aí Hiei, já pensou? – Perguntei, já imaginando sua resposta. A oferta de Koenma era tentadora demais pra que ele recusasse – Ainda não respondeu e não temos tempo pra moleza. Como é que vai ser?
— Eu vou com vocês. – Ele se voltou a Koenma, concluíndo a ideia – É bom que não se esqueça do acordo que me propôs.
— Pode deixar Hiei. Assim que tudo acabar, eu falarei com Enki pra liberá-lo do seu trabalho.
— E por onde vamos começar a procurar pistas? – Perguntei.
— Deveriam tentar ir até a aldeia, afinal é lá que... – Botan não precisou concluir o pensamento, pois Kurama já havia se adiantado na resposta.
— É lá que ela foi vista pela última vez. Esse é o raciocínio mais lógico, Botan. No entanto, a garota já deve estar bem longe dali e deve ter sido cautelosa em desfazer qualquer vestígio que estivesse no local, para que nenhum youkai pudesse localizá-la. Acho que deveriamos começar pelo Clã, já ela que morou lá por muito tempo e apagar seus rastros seria mais complicado.
— Combinado. Nos encontraremos no próximo sábado e partiremos ao Clã Komorebi, ok? Vocês tem aí um tempo pra organizarem suas vidas. Eu voltarei pro Mundo Espiritual agora mesmo, tenho muitos deveres para cumprir. – Dito isso, acompanhado por Botan, Koenma partiu em direção ao Reikai, nos deixando em silêncio por alguns minutos até que a voz doce de Yukina voltasse a romper com a quietação do local.
— Gostaria de poder ajudá-los também.
— Não, você só vai atrapalhar. – Hiei respondeu friamente de maneira determinada, fazendo com que a garota ficasse cabisbaixa.
— Mas...
— Isso não está em discussão, Yukina. – Ele a repreendeu com o olhar e ela, por sua vez, surpreendeu a todos ao levantar o rosto para encará-lo.
— Está sim! Eu tenho poder de cura, esqueceu? Posso ser útil caso vocês se machuquem gravemente. Eu vou com vocês e pronto.
Foi a gota d'água. Aguentar a longa reunião no Ningenkai ou as provocações de Kuwabara não era nada pra Hiei comparado à afronta de sua própria irmã. Eu tive certeza, ao observar a sua expressão, que ele estava amargamente arrependido de ter vindo até aqui hoje. Ficamos todos tensos e assustados por alguns instantes com as palavras inesperadas de Yukina. Ela nunca enfrentou ninguém e sempre demonstrou ser uma garota tranquila e amável, mas pensando bem, ela passou por muitas coisas ruins na vida e superou todos os obstáculos, o que por si só já a tornava bem forte.
— Faça como quiser – Ele respondeu com simplicidade ao se dirigir para fora do templo, deixando a irmã paralisada por alguns minutos e prestes a chorar.
— Ah Yukina não fica assim, o Hiei é chato com todo mundo, você fez bem em dar um basta nele. Afinal quem aquele nanico pensa que é pra mandar em você?
— Mas eu não devia ter agido assim, Kazuma...eu preciso falar com ele e me desculpar! – Ela se levantou num pulo e saiu correndo rapidamente pela porta da entrada na tentativa de alcançar Hiei, deixando Kuwabara abobado olhando para o vulto da garota que o deixou falando sozinho.
— Mas que droga...não sei porque ela se importa tanto com ele. Ele vive nos tratando mal. Yukina é muito boazinha! Eu devia ir lá e impedir ela de se humilhar dessa forma, isso sim! Onde já se viu...pedir desculpas? Hiei vai acabar deixando ela pior do que já está.
— Ah abaixa a bola aí, Kuwabara! Como você é ciumento, não deixa ninguém se aproximar da Yukina, mas também não tem coragem de dizer pra ela o que sente.
— Não sou ciumento Yusuke, cala a boca!
— É sim, morre de ciúmes, principalmente do Hiei. Se você soubesse o quanto isso é ridículo...
Kurama riu da piada interna, afinal Kazuma era o único que não sabia sobre o parentesco dos dois.
— Lógico que isso é ridículo, Urameshi! Yukina jamais olharia pra alguém como Hiei! – As veias de seu rosto se dilataram de raiva.
— Tá bom. Se é verdade, então por que você não senta aí e espera ela voltar? – Irritado, ele se aquietou bufando ao meu lado, contendo o impulso de ir atrás de sua amada.
YUSUKE POF
YUKINA POV
Eu não podia deixar ele ir embora dessa maneira. Não dessa vez. Tínhamos um assunto para discutir ainda.
— Hiei, espera! – Corri o mais rápido que pude até alcançá-lo, fazendo com que ele interrompesse seus passos e olhasse para trás ao ouvir meu chamado.
— O que foi? – Ele me sondava com frieza e desgosto, o que me fez sentir trêmula por dentro enquanto recuperava o fôlego da corrida.
— Quero te pedir desculpas.
— Pelo quê?
— Pelo modo como falei com você agora há pouco.
— Não precisa disso.
— Precisa sim. Sei que você apenas estava preocupado com o que poderia me acontecer, então eu te agradeço por se importar comigo. – Ele deu de ombros como se não ligasse – Acho que deve ser assim quando temos um irmão cuidando da gente, não é?
Estático e mudo, ele ficou me encarando. As últimas palavras que lancei propositalmente tentavam arrancar alguma reação suspeita que denunciasse suas mentiras, mas sua habilidade de esquiva já parecia estar muito bem treinada.
— Você tinha dito que queria falar comigo depois da reunião.
— A-Ah...sim...
— Diga.
— Bom... – Comecei a tomar fôlego pra iniciar a conversa que se seguiria. Se a indireta não funcionou, eu precisaria ser direta. Há tempos desconfio que meu irmão é o youkai que agora me encarava frente a frente. Confirmar essas suspeitas se tornou uma necessidade. Mas o que eu deveria dizer? Se eu perguntasse, ele provavelmente negaria...arrancar a verdade seria mais difícil do que eu imaginei. E se por acaso eu estivesse errada? Qual seria sua reação? Acharia que enlouqueci? Não...não...eu não estava errada. De alguma forma, eu sei quem ele realmente é.
— Depressa. Tenho que ir embora. – Não havia me dado conta de quanto tempo fiquei em silêncio o fazendo esperar.
— Desculpa. É que o que tenho pra falar é muito importante.
— Pare de se desculpar, apenas diga.
Tudo bem... – Respirei fundo e encorajei a mim mesma. Eu precisava fazer isso. – Quando você voltou do Makai me disse que meu irmão tinha morrido... [2]. M-Mas...é mentira, não é?
— Porque está perguntando isso? – Ele me olhava com uma expressão que eu poderia jurar ter visto em algum programa cinematográfico de terror do Mundo dos Homens.
— Porque já faz tempo que eu o encontrei.
— Eu já disse. Ele está morto, seria melhor se você aceitasse isso de uma vez e esquecesse esse assunto. – Ele se virou, dando por encerrada a conversa e retomando seu caminho.
— E quanto a sua irmã, está morta também?
Sem pensar direito, foi como se as palavras tivessem escapado da minha boca sem permissão. Quando me dei conta já havia falado, fazendo com que Hiei se voltasse em minha direção, visivelmente furioso.
— O que disse? – Ele me fitava de forma ameaçadora, mas algo dentro de mim me deu coragem para continuar.
— Kazuma me contou que há um tempo atrás soube que você tinha uma irmã. Perguntei a ele quem era, mas ele não sabia responder. Por acaso ela morreu também?
Ele não respondeu e nem pareceu se importar com meu tom irônico. Ficou apenas paralisado, como se não tivesse escutado nenhuma palavra do que eu dizia.
— Porque não me diz a verdade, Hiei?
— O que está insinuando?
— Que meu irmão está vivo.
— Não existe nada mais ridículo do que iludir a si própria, Yukina.
Triste por não conseguir arrancar uma confissão, acabei desmoronando em lágrimas, que escorriam pelo meu rosto e cristalizavam quase que imediatamente em hiruisekis.
— Hiei...por favor, pare de mentir...isso me machuca. – Ele desviou o olhar envergonhado e eu desejei fugir dali o mais depressa possível. Mesmo assim, ignorei as minhas vontades e continuei a discussão, sabendo que se eu não resolvesse essa história o quanto antes, acabaria enlouquecendo com a dúvida – O que custa você admitir que é meu irmão?!
Falei a última frase tão rápido, que por um instante achei que ele não entenderia, mas ao observá-lo pude ver que estava enganada. Hiei permaneceu mudo por um tempo, apenas fitando as hiruisekis caídas no chão com um olhar perdido e, assim, voltamos a ficar em silêncio, envolvidos apenas pelos sons da vegetação à nossa volta, que se movia lentamente pela ação do vento.
— De onde foi que você tirou isso?
— Eu simplesmente descobri juntando as evidências, como o fato de você ter uma irmã e de que no país do gelo me contaram que meu irmão tinha um youki de fogo tão poderoso que tornava impossível tocá-lo, coincidência, não? Além disso, desde o primeiro momento em que te vi, naquele dia em que me salvou do Tarukane, eu senti algo diferente e familiar vindo de você, mas demorei muito tempo pra entender o que era: sua energia demoníaca. Eu já a conhecia porque nascemos juntos...eu já havia sentido ela antes e carreguei a sensação na memória. Levei um tempo para perceber que era exatamente a mesma sensação de quando eu ficava perto de você. Agora tenho certeza sobre nosso parentesco. Por favor, não negue mais...No entanto...
Suspirei profundamente antes de continuar.
— No entanto, não consigo entender...por que você se esconde? Tem ideia de como era importante pra mim te encontrar? Será que quando você me olha acaba se lembrando das mulheres que te abandonaram? Acha que sou igual a elas? – Minha voz falhou ao pensar na possibilidade de estar certa e Hiei me olhava tão tenso, que os músculos do seu rosto nem se moviam. – Se não quiser ter nenhum tipo de vínculo comigo não precisa ter receio em dizer. Não precisa ter pena de mim, é só falar que eu entenderei perfeitamente.
— Acha que não te contei por que não queria me vincular a você? – Ele se aproximou furioso e eu recuei assustada, tropeçando em meus próprios pés e quase caindo no chão – Você não sabe de nada, Yukina.
— Então me explica.
— Eu não contei porque era melhor você pensar que seu irmão estava morto.
— Por quê? Me diz como poderia ser melhor eu pensar que a única pessoa importante que restou na minha vida estava morta?! Como isso poderia me fazer bem?! – No mesmo instante, as lágrimas já escorriam novamente pelo meu rosto e as hiruisekis voltavam a se espalhar pela grama, por mais que eu tentasse impedi-las.
— Pare de chorar Yukina... – Suas palavras não eram uma ordem e sim um pedido sincero, quase em tom de súplica. Ele se aproximou de mim e eu encarei o par de olhos frios que exibiam o mesmo tom de vermelho dos meus.
— Me diz, de que serve pra você ter um irmão como eu? – Fiquei perplexa ao entender o que ele queria dizer. Sua voz e seu rosto deixavam claro o que ele pensava sobre sua existência e seu olhar revelava o repúdio que sentia por si próprio. Ele não me escondeu sua identidade porque não queria estar junto de mim, pelo contrário, escondeu porque achou que não me faria bem tê-lo por perto.
— Que pergunta absurda! Hiei, acho que você se esqueceu que naquele dia em que você foi jogado do país do gelo não foi o único que ficou sozinho no Mundo. Mesmo cercada das outras koorimes, eu também fiquei sem ninguém. Minha vida era vazia e sem rumo, até me dar conta da sua existência. Podemos ter crescido em lugares diferentes, mas somos mais parecidos do que imagina...principalmente em termos de solidão. Agora que te encontrei, sinto como se finalmente tivesse achado o lugar a qual eu pertenço...não tem ideia de como estou feliz de te ter aqui! Então, eu te imploro...por favor...não se afaste mais de mim, eu não quero ficar sem você.
Relaxando sua expressão endurecida, ele respondeu balançando discretamente a cabeça em concordância, fazendo com que meu peito fosse inundado com um sentimento de felicidade que eu nunca havia experimentado antes. Abri um largo sorriso e num impulso inevitável o abracei com força, mesmo sem saber se ele me permitiria. Recuando um pouco pela atitude inesperada, ele retribuiu o gesto em seguida, ainda que timidamente, ao pousar uma das mãos em minhas costas. Perdi a conta de quantas vezes havia imaginado como seria esse momento e agora me sentia flutuando no céu de tão feliz que estava.
Segundos depois, mal havíamos nos separado do abraço e rapidamente o vi amarrar em volta do meu pescoço um cordão, no qual estava pendurada uma lágrima cristalizada, com uma coloração única e bem diferente das lágrimas gélidas comuns. Logo me dei conta do significado.
— Essa é a lágrima de nossa mãe Hina que me foi dada antes de ser expulso do país do gelo. Já que você deixou a sua comigo [3], nada mais justo do que ficar com a minha.
Não sei se foi a emoção do momento, mas tive a impressão de que aquele foi o gesto mais bonito que alguém já havia demonstrado por mim. Então, segurei a hiruiseki com força, como se minha vida dependesse disso. – Muito Obrigada, irmão.
[1] Diferente do Anime, no final do mangá a Mestra Genkai morre. Ela deixou de herança as suas terras para Yusuke e companhia. Eu sei que é triste, mas resolvi seguir essa linha aqui na fanfic.
[2] e [3] Referência ao episódio "Yukina e Hiei" de Yu Yu Hakusho – Eizou Hakusho, no qual Hiei retorna ao Ningenkai e diz à Yukina que seu irmão está morto. Se lembram que ela havia deixado a lágrima gélida de sua mãe com o Hiei antes dele ir ao Makai? Então, ele tenta devolvê-la, mas ela recusa. Link pra assistir: watch?v=gdpN7Akarw4
Eu espero que tenham gostado de ler o final desse capítulo tanto quanto eu gostei de escrever. Acho que no fim da obra original várias questões ficaram abertas, como o fato do Hiei não ter contado a verdade pra Yukina. Eu pretendo "resolver" todas essas pendências. Mas essa, em particular, me incomodava profundamente e na minha opinião, exigia uma resolução imediata.
