Manhã de sábado no Ningenkai.
YUSUKE POV
A adrenalina fluindo em minhas veias me fez saltar da cama num pulo só, me vestir apressado e correr em direção ao templo da Mestra Genkai, com uma disposição que há muito tempo eu não sentia. Eu estava pilhado e gostava disso. Sentia muita falta de quando enfrentava uma série de desafios e lutas em sequência. Tomado pela rotina, acabei inserido numa vida monótona e exaustiva que não me satisfazia por completo...era como se sempre estivesse faltando alguma coisa: essa sensação de bem estar me queimando por dentro e a excitação de ter um objetivo a cumprir que fazia meu corpo inteiro vibrar.
Na hora combinada, todos nos encontramos prontos para partir ao Clã Komorebi, na tentativa de procurar pistas sobre a garota desaparecida. Hiei, Kurama, Kuwabara, Yukina e eu nos juntamos a Botan e Koenma assim que eles chegaram do Reikai. Keiko não ficou de fora, pois decidiu vir junto comigo, embora eu tivesse tentado convencê-la a ficar em casa. Infelizmente, nada do que eu disse adiantou.
Desde a visita de Koenma há cinco meses atrás, Keiko meteu na cabeça essa ideia absurda de que não vai mais me deixar sozinho durante as missões. No fundo, sei que suas atitudes apenas transpareciam sua insegurança e temor sobre a possibilidade de ficar sem mim, caso me acontecesse alguma coisa. Assim, acabei me dando por vencido e deixei que ela me acompanhasse, já que não estava com paciência para criar uma discussão.
— Todos prontos? – O líder espiritual, sustentando sua forma adulta, perguntou a nós.
— Sim Koenma, mas esse lugar que vamos é muito longe, não é? – perguntou Kazuma em resposta.
— Qual é Kuwabara, mal começamos e você já tá desistindo? Eu hein...que preguiçoso.
— Não é nada disso, Urameshi! Mas se é tão longe imagino que não vamos a pé, né?!
— Nós pegaremos uma carona. – Koenma interrompeu a discussão, dando fim a minha tentativa de continuar irritando Kuwabara. Antes que eu tivesse a chance de perguntar ao líder espiritual sobre que tipo de carona ele estava se referindo, na mesma hora uma enorme penumbra nos encobriu, indicando a presença de um obstáculo bloqueando os raios solares. O formato da sombra no chão me fez sorrir de imediato.
— PIU! Quanto tempo que não o vejo! – O enorme pássaro espiritual descia até nós, com as penas azuis cintilando em reflexo ao brilho do sol. Em extase de felicidade, saí correndo para acariciá-lo assim que aterrizou no solo e ele, por sua vez, respondeu esfregando o bico em minhas mãos e fechando os olhos ao receber carinho. Piu tinha nascido graças a mim e estávamos conectados de alguma forma. Era como se fosse um animal de estimação, mas que não podia viver junto comigo, até porque os vizinhos achariam no mínimo suspeito eu ter um ave gigante em casa.
— Piu estava sentindo sua falta, Yusuke. Achei que seria uma boa ideia que, ao mesmo tempo em que vocês matavam a saudade um do outro, arranjássemos uma carona. Voando chegaremos bem rápido. – Disse Koenma com simplicidade.
Olhei para a Keiko e pude ver o medo estampado em seu rosto pela ideia de ter que voar em uma ave gigante, sem a menor segurança. Torci mentalmente para que ela desistisse e acabasse dando meia-volta para casa, mas me decepcionei ao notar que isso não aconteceria. Percebendo sua insistência em me acompanhar, decidi que o mínimo que eu poderia fazer era tentar tranquilizá-la durante o vôo.
— Relaxa Keiko, eu vou te segurar. – Ofereci ajuda para que ela conseguisse se colocar em cima de Piu e a segurei pela cintura, na tentativa de proporcionar maior segurança a ela. Kuwabara se aproveitou da oportunidade para fazer o mesmo com Yukina, com a clara diferença de eles não eram um casal de verdade. Segundos depois, todos nós já haviamos nos ajeitado em Piu, que parecia nem se importar com o acúmulo de peso em seu dorso. Pensando bem, eu poderia jurar que ele estava até maior e mais forte do que da última vez que nos vimos. Não acredito que há um ano atrás ele seria capaz de transportar tantas pessoas ao mesmo tempo.
Em um reflexo de medo, Keiko apertou com força minha mãos assim que alçamos vôo, deixando clara sua aversão pela situação. Já eu, pelo contrário, me sentia maravilhosamente bem enquanto subíamos em direção às nuvens. A sensação era libertadora e fazia meu sangue fervilhar em ansiedade.
— Ô Koenma, você disse que pegou a descrição dos assassinos dos komorebis que estavam na aldeia. Como eles eram?! – Perguntei aos berros, semicerrando os olhos, devido ao forte vento gélido que batia em meu rosto e não me permitia ouvir ou enxergar com clareza.
— Eles mencionaram um demônio parecido com um urso e um outro com aparência humana, cabelos grisalhos e olhos vermelhos, com uma energia malígna bem poderosa e diferente de qualquer outro youkai que já haviam visto.
— Ah fala sério...como é que esse tipo de descrição pode nos ajudar em alguma coisa?! – Perguntou Kuwabara.
— Caso você não tenha se dado conta, estamos procurando uma garota cujos olhos mudam de cor! É ridículo, mas é o que tem pra hoje! – Respondi conformado, já imaginando que as descrições dadas não nos seriam de grande utilidade – Hiei o cara que você disse ter visto na na mente do demônio que enfrentou não bate com a descrição que o Koenma deu?!
Ele apenas balançou negativamente a cabeça em resposta e assim permanecemos em silêncio pelo resto da viagem.
Koenma estava certo sobre o quão rápido chegaríamos voando. Em pouco tempo, já sobrevoávamos o território do Clã Komorebi, cuja localização geográfica denunciava ser um local aparentemente isolado de qualquer outro tipo de civilização. Só por segurança, aterrizamos um pouco distante do nosso destino, deixando Piu estrategicamente escondido caso algum humano aparecesse repentinamente. Pude sentir as pernas trêmulas de Keiko antes de sair de cima da ave espiritual, então decidi segurá-la por um tempo ao meu lado até que se acostumasse com a sensação de estar em terra firme novamente e pudesse caminhar por conta própria.
— A entrada é por ali – De longe, Koenma apontou para os resquícios do que um dia havia sido um enorme portão. Estava destruído em boa parte de sua extensão, deixando a passagem livre para qualquer um que quisesse atravessá-lo.
Por alguns instantes me peguei admirando com surpresa os muros gigantes de concreto que aparentemente cercavam todo o clã e que, apesar de estarem rachados e danificados, incrivelmente ainda se suspentavam em pé, de tal forma que impossibilitavam ter uma visão do interior do local. A segurança dessas pessoas parecia reforçada, mas mesmo assim foram reduzidos a pó, detalhe esse que não fui o único a reparar.
— Ainda não entendo como invadiram esse lugar. Parecia tão bem protegido. – Botan refletiu em voz alta.
— O inimigo tinha um ótimo plano, Botan. Não foi coincidência que no dia em que eles foram atacados alguns dos seus melhores lutadores estivessem em uma aldeia muito longe daqui. Os que ficaram no clã, além de terem sido pegos de surpresa, provavelmente estavam em desvantagem em termos de força e número de lutadores.
— Quer dizer que as pessoas que ficaram no clã não eram suficientemente fortes para derrotar o inimigo, Koenma? – Questionou Kazuma.
— Acredito que não, apesar de serem fortes eles não eram invencíveis. Lembrem-se que eram apenas humanos no final das contas, dependendo dos demônios que vieram para atacá-los eles não tiveram a mínima chance.
— Mas você tinha dito que eles não eram só humanos... – retruquei incomodado.
— Sim, Yusuke. Não eram humanos comuns, mas eu não diria que eram fortes como você foi na sua forma humana ou como o Kuwabara é, entende?
Sem perder mais tempo, adentramos ao local, ultrapassando o limite do portão destruído.
Na mesma hora, senti como se tivesse recebido um forte soco no estômago, pois por mais que eu já tivesse me preparado mentalmente para encontrar o pior, fui invadido por uma inexplicável e terrível sensação que logo tratou de tomar conta de todo o meu espírito. O clima ficou extremamente pesado diante do cenário devastador que observávamos.
O cheiro nauseante de corpos em decomposição estava impregnado no ar e as casas ruíam em destroços. Respingos e rastros de sangue seco e velho estavam espalhados por toda a parte e não demorou muito para que nos deparássemos com alguns corpos, ou pelo menos com parte deles, carbonizados, desfigurados ou incompletos. Cada vez que meus olhos se encontravam acidentalmente com os rostos pútridos caídos no chão, era como se eu conseguisse ouvir com clareza os gritos de angústia e pavor que a pessoa emitiu antes de morrer.
— Koenma, se os youkais estão procurando essa garota chamada Kiara e a atacaram na tal aldeia, então por que eles atacaram também esse lugar? Significa que o único alvo não era ela? – Kurama questionou depois de alguns minutos que andamos em silêncio, mas sem encarar qualquer um de nós, pois seu olhar estava preso fixamente em um corpo caído em meio às ruínas de um estabelecimento. Não pude evitar me sentir burro diante da pergunta. Por algum motivo eu havia ficado tão animado com a missão que não me atentei a esse detalhe. Se estão caçando a garota, porque mataram todos os outros membros do clã? Vingança, talvez? Será que essas pessoas possuíam um inimigo com um bom motivo para odiá-los a ponto de querer matar todos de uma só vez? Não...isso seria muito óbvio, além disso, os moradores daqui não omitiriam essa informação de Koenma quando se encontraram no Reikai.
— Tudo indica que você está certo, Kurama. Eles tinham mais de um alvo, mas não sei qual.
— Nesse caso, porque não a atacaram aqui mesmo? Não seria mais fácil atacar os dois alvos no mesmo lugar? Não faz sentido separá-los.
— Hum não sei, como eu disse, acho que se tivessem atacado todo o clã junto seria mais difícil de vencê-los...é a minha hipótese. Está pensando em quê, Kurama?
— É muito cedo pra dizer, Koenma. Só estou tentando entender a situação, talvez você esteja certo e esse seja o único motivo para terem separado eles...ou...talvez tenha algo além disso.
Tentei por um segundo acompanhar o raciocínio de Kurama, mas falhei miseravelmente e desisti em seguida, até porque nenhum de nós tinha certeza de nada.
Hiei vasculhava a área com o Jagan, a procura de alguma coisa que pudesse nos ajudar a compreender o mistério por trás do massacre, mas assim como o restante de nós, ele não obteve resultados satisfatórios.
— Isso é estranho... – ele disse pensativo enquanto fazia uso do olho diabólico –...pra um lugar que foi devastado até que não está tão ruim.
— Como não, Hiei? – Perguntei incrédulo por ele não julgar a carnificina à nossa frente ruim o suficiente.
— Se entendi bem, a população daqui era bem maior do que a quantidade de pessoas mortas caídas no chão. Se o clã inteiro foi destruído, deveria ter muito mais gente espalhada por aí.
Quase pude ouvir um estalo na cabeça de cada um dos meus colegas após o questionamento de Hiei. Aquilo fazia muito sentido. Não havíamos percebido, mas apesar de termos visto vários corpos, teoricamente deveriam ter muito mais. Onde estariam as outras vítimas?
— Tá querendo dizer que nem todo mundo morreu?! – Kuwabara perguntou com perplexidade ao olhar de forma acusatória para Koenma, por ter supostamente nos dado uma informação errada.
— Espera Kuwabara, não me olha assim! Tenho certeza que a quantidade de almas que recebi no Reikai era muito maior que a quantidade de corpos que estamos vendo aqui. E agora que o Hiei comentou... – ele pausou dramaticamente, suando frio antes de continuar –...eu acho que esse lugar está um pouco diferente do que da pimeira vez que eu o visitei. Eu me lembro de ter visto muito mais gente morta.
— Então, isso quer dizer que alguém sobreviveu e está enterrando as pessoas? – Botan perguntou assustada com a possibilidade.
— Não sei, precisamos ficar atentos a qualquer coisa suspeita. Podemos não estar sozinhos aqui – concluiu Koenma.
Andando perto o suficiente para caso precisássemos de ajuda, nos separamos para vasculhar melhor o local. Botan foi caminhando na frente de Keiko e eu, até chegarmos no que parecia ser a maior casa do Clã, localizada a alguns metros de distância uma extensa floresta. Era bem provável que fosse o lar da família real e se eu estivesse certo, seria o lugar mais indicado para procurar alguma pista sobre a garota desaparecida.
Tomando cuidado com o restantes da construção que ainda se mantinha em pé e que estava prestes a ceder, entramos na casa. Alguns móveis estavam parcialmente intactos, assim como parte do piso, no entanto, não havia nada realmente útil que nos ajudasse na missão, inclusive, os poucos porta-retratos que ali estavam tinham sido destruídos e as fotos estavam tão queimadas que impossibilitavam reconhecer seus conteúdos. Era como se todos os vestígios sobre os moradores desse lugar tivessem sido eliminados.
— Parece que não tem nada aqui também. – Disse Keiko desanimada.
— Vou avisar aos outros que não tivemos sorte. – Botan respondeu frustrada, nos deixando a sós por alguns minutos.
— Você está bem? – Perguntei à Keiko assim que a guia espiritual sumiu de vista. Conhecia minha esposa o suficiente para saber que ela já teria se arrependido pela insistência em me acompanhar.
— É que tudo isso é horrível...vi até crianças mortas. Quem faria algo tão absurdo assim? – Seus olhos lacrimejavam em um sinal de profunda tristeza e ela envolvia a si mesma num abraço, tentando se reconfortar.
Acariciei seu rosto num gesto que dizia que tudo ficaria bem e limpei sutilmente suas lágrimas. Mas antes que eu pudesse abraçá-la, fomos surpreendidos por um grito agudo e estridente vindo do lado de fora da casa que nos fez saltar de susto, não pela quebra repentina do silêncio, mas sim por reconhecermos de imediato quem era a dona da voz: Botan.
Merda. Será que ela havia sido atacada? Eu não devia ter deixado Botan sozinha...jamais me perdoaria se tivesse acontecido alguma coisa! Contornei a casa o mais rápido que pude, tentando não deixar Keiko para trás e quando enfim encontramos a guia espiritual, tive uma surpresa ao me deparar com uma cena bem diferente da que havia imaginado. A garota não havia sofrido um ataque e nem mesmo havia ameaça alguma por perto, muito pelo contrário, as criaturas que ela encontrou pareciam ser mais inofensivas que os bichinhos de pelúcia que Keiko tinha na infância.
Botan encarava assustada o idoso parado à sua frente, que por sua vez, segurava uma pá, completamente suja de terra, tão amedrontado quanto ela. Mais atrás do homem estava uma idosa, segurando as próprias mãos contra seu peito, como se estivesse prestes a ter um infarto. Logo pude perceber que eram humanos comuns e não havia motivos para lutar com eles.
Aos poucos, Koenma e os outros também se aproximaram da cena, tentando entender o que estava acontecendo.
— Botan, por que gritou?
— Como asssim "por que"? Você tá cego, Yusuke?! Eu tava andando normalmente quando encontrei duas pessoas estranhas, eu levei um susto e dei um grito!
— Sua exagerada, são só dois idosos! Você me assustou, pensei que tivesse acontecido alguma coisa! A propósito...quem são vocês, hein? – Encerrei a discussão com Botan, terminando por me direcionar aos velhos. Em um reflexo, o senhor segurou a pá com mais firmeza, pronto para me atacar, enquanto a senhora se encolheu ainda mais atrás dele.
— Não precisam ter medo de nós, não vamos machucá-los – Disse Koenma se aproximando lentamente.
— O-o que querem aqui?! – Perguntou o velho alternando os olhares entre mim e Koenma.
— Estamos apenas olhando o lugar...vocês são sobreviventes do ataque a esse clã? – Dessa vez Kurama tentou conversar gentilmente.
— Não...não somos. – O velho ainda se colocava na defensiva, preparado para nos golpear e correr no momento que julgasse necessário.
— Ô velhote, já dissemos que não vamos machucá-los, então poderia, por favor, abaixar essa pá?
— Yusuke, deixa de ser sem educação! – O tapa de Keiko em meu braço veio em tom de reprovação, fazendo com que a região atingida ficasse vermelha e ardida no mesmo instante. Ao observar a cena, relutante, o senhor olhou para a idosa que se escondia atrás dele e gesticulou positivamente com a cabeça. Por fim, atendendo ao meu pedido, ele colocou sua pseudo-arma ao lado do corpo.
— Como se chamam? – Koenma perguntou.
— Sou Tatsuo Fujita e essa é minha esposa, Sora Fujita.
— Disse que não são sobreviventes do massacre. Então, por que estão aqui?
— Só estamos ajeitando essa bagunça. Enterrando os corpos na floresta... – Ele apontou para a enorme vegetação a metros de distância da grande casa em que eu me encontrava há um minuto atrás. Estavam lá até agora, por isso não havíamos nos esbarrado ainda.
— Quer dizer que vocês tem enterrado os corpos dessas pessoas há 5 meses? – Kuwabara perguntou surpreso.
— Sim. – O velho respondeu em voz baixa.
— Mas de graça e sem ninguém ter pedido a vocês? – Kuwabara continuou interrogando deixando transparecer sua estranheza pela ação caridosa dos idosos..
Eles assentiram com a cabeça, timidamente.
— Mas por quê? Com qual propósito vocês tem feito isso? Se nem são daqui... – Perguntou Botan pensativa.
Os idosos se entreolharam por um momento de forma suspeita, deixando claro que essa pergunta eles não responderiam.
— Eu acho que isso é um gesto muito bonito, independente do motivo. Gostaria de poder ajudá-los. – Disse Yukina esboçando um sorriso amigável.
— Também acho uma ótima ideia...quer dizer... se vocês concordarem, é claro. – Kurama sugeriu a eles.
Apesar da mente inocente de Yukina ter oferecido ajuda com sinceridade, eu tinha certeza que Kurama via a situação como uma boa oportunidade para ganharmos tempo até que o casal pudesse ter confiança em nós e revelasse as informações que pareciam estar escondendo.
— Bom...acho que não terá problema. – A senhora respondeu, ainda nos olhando desconfiada. Em seguida, sem revelar nossas reais intenções, nos apresentamos rapidamente aos velhos e durante um tempo, ficamos apenas os ajudando a transportar alguns corpos para a floresta e enterrá-los de forma simplória. Com excessão de Hiei, que se recusou a participar do teatro amigável e aproveitou para sondar todo o local mais algumas vezes.
Durante o trabalho, Yukina, Keiko e Botan pareciam ter conquistado a afeição da idosa e conversavam alegremente com a mesma, assim como Kurama e Koenma que batiam um bom papo com o velho, como se fossem conhecidos de longa data. No fundo, os idosos eram típicos indivíduos da terceira idade, desesperados para encontrar companhia nova que aceitasse ouvir e compartilhar suas histórias de vida.
— Hiei, você encontrou alguma coisa importante por aí com o Jagan? – Sussurrei pra ele num momento em que o senhor Fujita não prestava atenção.
— Se eu tivesse encontrado, obviamente já teria dito e não estaria mais aqui perdendo meu tempo.
— Você não tem direito de reclamar, Hiei! Pelo menos não tá fazendo o serviço pesado! – Kuwabara sussurrou de volta, irritado, enquanto tentava inutilmente limpar as mãos enlameadas com a terra úmida da floresta.
Um bom tempo depois, saímos da mata e voltamos ao clã arruinado na companhia dos velhos. O sol estava quase se pondo, carregando pra longe a luz do dia junto com a minha paciência, depois de ficar tanto tempo parado sem sair da estaca zero em relação ao que tentávamos descobrir. Por um instante, cogitei a possibilidade de obrigar o idoso a nos contar o que sabia, no entanto minhas intenções foram barradas por Kurama, que ao prever minhas atitudes, lançou um olhar furtivo ordenando que eu ficasse calmo.
— Por hoje está ótimo. – O senhor Fujita se dirigiu repentinamente a nós, fazendo com que eu voltasse minha atenção à ele – Iremos embora agora e outro dia voltaremos para continuar. Obrigado pela ajuda de vocês, conseguimos avançar muito hoje.
— Esperem. Antes de partirem, posso pedir uma coisa em troca do favor que fizemos a vocês? – Kurama lançou a proposta ao se aproximar de Tatsuo Fujita. O semblante cansado e cheio de rugas do velho já denunciava a sua resposta negativa, mas Kurama foi mais rápido e se apressou ao esclarecer em pedido. – Não se preocupem. Não precisam nos dizer nada que não queiram, eu só queria que nos dessem uma chance de explicar a vocês o porquê nós viemos até aqui.
— Acho que não custa nada ouvir... – A idosa respondeu se dirigindo ao seu marido.
— Estamos procurando uma mulher chamada Kiara. Ela morava aqui antes desse lugar ser destruído. Não fomos as pessoas que fizeram isso e na verdade queremos evitar que mais atrocidades como essa sejam cometidas, por isso precisamos encontrá-la, já que agora ela está sendo caçada e corre grande perigo.
— Ela está sendo caçada?! – O discurso lançado direto ao ponto por Kurama, na tentativa de arrancar alguma reação suspeita dos idosos, obteve o efeito desejado. A mulher arregalou os olhos assustada com o que ouviu e em seguida levou as mãos à boca, perplexa pelas suas próprias palavras. O marido a encarou indignado pela sua falta de descrição.
— Então quer dizer que a conhecem? – Kuwabara questionou.
— Nós já falamos demais, não devíamos estar tendo essa conversa. – Disse o senhor Fujita desesperado, tentando evitar qualquer diálogo adicional conosco.
— Pelo visto essa mulher está ameaçando esses dois de morte caso falem alguma coisa. – Concluiu Hiei com simplicidade.
— O quê? Não...nada disso. – A idosa retrucou negando com a cabeça e então se voltou ao marido, que a segurava pelo braço na tentativa de afastá-la de nós. – Talvez eles possam ajudá-la, Tatsuo. Eles não são más pessoas e...ela precisa da ajuda de alguém. – O homem ficou encarando a esposa até o momento que se deu por vencido e, após suspirar profundamente, deixou a senhora Fujita no comando da situação, ainda que contra sua vontade.
— É, nós a conhecemos. Há uns cinco meses atrás...foi quando nós encontramos essa garota no pior momento de sua vida. – Resumidamente, a senhora contou a história de quando encontraram Kiara ferida e a ajudaram a enterrar seus companheiros que morreram na aldeia Kimura, trazendo-a por fim de volta para cá. – Esse lugar está horrível e exala morte pra onde quer que você olhe. Imaginem o que foi para aquela garota ver todos que ela conhecia, incluindo sua família, mortos.
— Mas ela não pediu que vocês ficassem vindo pra cá e arrumassem tudo? – Perguntou Botan à velha.
— Não, fazemos isso porque queremos ajudá-la. Ficamos com muita pena, sabe? – A senhora nos olhava inocentemente por cima dos óculos de grau, levemente sujos de terra.
— E vocês ainda mantém contato com ela? – Koenma questionou.
— Não...mas durante nossas vindas pra cá, acabamos a encontrando ao acaso umas duas vezes. Ela parecia querer nos agradecer e recompensar de alguma forma pelo que estávamos fazendo, só que nós recusamos. Dissemos a ela que não precisava se incomodar. Pobre garota...não sei exatamente pra que ela volta pra cá...
— Esse lugar era a casa dela, né? Ela deve sentir muita falta – Keiko falou – É natural que fique voltando pra cá.
— E ela não disse o porquê fizeram isso com esse lugar? Porque mataram todo mundo? – Perguntei com esperança de que conseguíssemos alguma informação útil.
— Não. No entanto, quando nos vimos pela última vez, ela nos fez um pedido estranho. Disse que se encontrássemos alguma coisa de valor aqui era para devolvermos a ela. Não sei do que ela estava falando, já que até agora não encontramos nada. Mas acreditamos que deva ter muito dinheiro envolvido na história da família dela. Esse é o único motivo plausível para explicar porque todos foram assassinados, não é? Afinal...que outra coisa é capaz de gerar ódio e destruição, se não o dinheiro? – Concordei com a cabeça tentando disfarçar. Esses dois idosos não faziam nem ideia da história real por trás desse genocídio. Nem desconfiavam de que provavelmente se tratava de um assunto com uma dimensão muito maior do que um motivo financeiro, mas era melhor que continuassem com essa linha de pensamento. Humanos comuns não conhecem verdadeiramente o planeta que habitam e as vezes permanecer na ignorância podia ser considerado uma benção. – Talvez exista algo de muito valioso escondido nesse lugar, ou então o povo daqui trabalhava com algo ilegal e alguém tentou destruir as provas do crime matando todos...não sei...
— Se ela pediu que vocês entregassem algo de valor a ela, significa que também revelou aonde está vivendo, certo? Poderiam nos dizer?
Os idosos se entreolharam após a pergunta de Koenma, deixando óbvio que estavam tentando decidir se nos revelariam ou não a informação.
— Por favor, nos contem o que sabe, somos os únicos capazes de ajudar essa garota. – Ele insistiu em tom de súplica.
— Bem...ela pediu para não compartilharmos essa informação com ninguém, mas eu vejo sinceridade em suas palavras. De alguma forma sei que está falando a verdade. Além disso, eu mesma gostaria de fazer algo a mais por aquela menina, mas não tenho condições. Quem sabe vocês tenham, não é? A última vez que nos vimos ela nos disse que estava morando em Kurushimi [1]. Mas não sabemos aonde especificamente.
— Kurushimi? É uma cidade grande e com alto índice de criminalidade. Quando foi que ela disse isso a vocês?
— Quase dois meses atrás. É uma cidade dominada pela máfia japonesa, abandonada e renegada pelo próprio país. Isso só confirma nossas suspeitas sobre o tipo de confusão em que ela se meteu. É lá que vocês devem procurá-la. Se a encontrarem, peçam que ela nos perdoe por contar seu segredo...não fizemos por mal, pelo contrário, só queremos que ela largue esse tipo de vida.
— Tenho certeza que ela perdoará vocês. – Respondeu Yukina – Não deve ser uma má pessoa.
— Não, claro que não...mas as últimas vezes que a vimos os seus olhos esbanjavam tristeza, raiva e rancor. É provável que, no momento, perdoar não seja um hábito presente na sua vida.
— Podem nos dar uma descrição de como ela é? Talvez tenham informações diferentes das que conhecemos, qualquer coisa que ajude a identificá-la. – Pediu Botan.
— Ah ela não é um rostinho comum no meio de uma multidão, ela é uma garota muito linda, de cabelos castanhos e olhos verde claro, será fácil identificá-la. Além disso, sempre anda com uma espada, como essa aí – o velho apontou para a katana de Hiei – Agora realmente temos que ir, moramos muito longe daqui e nesse ritmo só chegaremos em casa no dia seguinte. Se vocês tiverem mais alguma dúvida, é melhor que perguntarem para a própria Kiara.
— Agradecemos muito por colaborarem conosco. – Koenma apertou a mão do velho, como se tivessem acabado de fechar um grande negócio lucrativo.
— Prometem que vão ajudá-la? – Perguntou o senhor Fujita uma última vez, com o olhar cheio de preocupação e esperança.
— Prometemos. – Koenma finalizou a conversa, deixando que os idosos fossem embora.
Assim como os Fujita, nos dirigimos para fora do Clã, convencidos de que não havia mais nada de importante para fazer ali e esperamos até que a caminhonete dos velhos sumisse no horizonte, antes de irmos ao encontro de Piu. Depois de ficarmos horas nesse lugar, estava claro que ninguém mais aguentava pensar ou falar sobre o assunto que nos trouxe até aqui. Assim, cada um de nós procurou seu próprio refúgio.
Botan conversava freneticamente com Keiko e Yukina sobre alguma coisa de mulher que eu não estava conseguindo compreender e talvez estivesse desanimado demais para tentar. Kuwabara contava à Kurama sobre dramas da faculdade e somente Hiei, Koenma e eu permanecemos quietos em nossos cantos. No meu caso, por mais que eu odiasse admitir, passar o dia inteiro encarando a morte havia me afetado mais do que eu gostaria, o que era irônico, considerando que eu já havia morrido duas vezes ao longo da minha vida.
Em pensamento, eu já estava bem longe, vagando no meu próprio mundo interior e deixando meu corpo físico ligado no modo automático, de maneira que somente a voz estridente e alarmante de Botan, com um grito agudo, foi capaz de me trazer de volta à realidade.
— Ai gente! – A garota cessou os passos e olhou estática para nós, arqueando as sobrancelhas espantada. Todos nós a encaramos apreensivos, preocupados com o que ela diria a seguir – Eu esqueci de contar pra vocês...a fofoca!
— Fofoca? Do que tá falando, Botan? – Perguntou Kuwabara.
— Fala sério Botan, é a segunda vez no dia que você me assusta a toa! Pensei que fosse alguma coisa importante. – Reclamei indignado.
— Mas é importante, Yusuke! Kurama tá namorando uma garota chamada Maya.
— O quê?! – Dissemos eu e Kuwabara ao mesmo tempo.
— Botan... – Kurama iniciou um protesto, mas acabou sendo cortado na mesma hora pela guia espiritual.
— Ah nem vem com essa de reclamar, você disse que não se importaria se eu contasse. – Ela riu, mostrando a língua infantilmente.
— Você nunca falou de nenhuma Maya antes, como se conheceram? – Kazuma perguntou sem conseguir disfarçar sua curiosidade, enquanto retomávamos nosso caminho em direção a Piu.
— Ah eu a conheci faz tempo, estudamos juntos. Hiei também a conheceu, se lembra? – Kurama perguntou a Hiei, que parecia não dar a mínima pro assunto e, assim como eu, viajava em seu próprio mundo bem longe de onde estávamos.
— Essa não é aquela mulher que você apagou a memória pra que não lembrasse de você?
— É sim, Hiei.
— Como assim, apagou a memória dela? – Keiko questionou confusa.
— Maya e eu nos conhecemos faz tempo. Ela gostava muito de mim, mas quando um demônio que me conhecia a capturou, percebi que eu seria um problema na vida dela. Isso aconteceu na época em que conheci Hiei, juntos vencemos esse youkai. No fim, apaguei as memórias de Maya para que ela não se lembrasse de mim e para que então eu não a colocasse em perigo de novo. Mas no ano passado nossos destinos se cruzaram novamente e voltamos a nos encontrar. Acho que tem certas coisas que não se pode tentar alterar.
Não pude evitar sorrir ao ouvir o suspiro emocionado das garotas no final da história melosa.
— Qualquer dia temos que conhecê-la. – Disse Keiko à Kurama.
— Olha só...te dou todo apoio Kurama, que você seja muito feliz com ela, mas vê se não vai se casar muito cedo, essa é a maior furada que você pode se meter – Aconselhei com o intuito de provocar Keiko e descontrair um pouco.
— Como é que é, Yusuke? – Ela se voltou para mim, furiosa, sem encarar a provocação como brincadeira.
— Calma, tô só brincando, mas que dá trabalho viver com você, isso dá. Ô menina brava.
— Trabalho dá pra mim ficar cuidando das bagunças que você faz, seu idiota. – Os outros deram risada da minha tentativa de conseguir um beijo roubado de Keiko, que fingindo estar irritada, se debatia entre meus braços.
Assim, com um novo direcionamento a seguir, voltamos ao templo da Mestra Genkai com o intuito de descansar para então continuarmos a perseguir nosso objetivo no dia seguinte, com destino a Kurushimi.
Fechando os olhos, pude reaver na minha mente cada detalhe do dia de hoje e me flagrei preso à memória do olhar esperançoso do senhor Fujita pela promessa de que ajudaríamos a garota desaparecida. A confiança depositada sobre nossos ombros fez com que a sensação de tristeza e desânimo que se apossava de mim desaparecesse, dando lugar a dois novos sentimentos: otimismo e obstinação.
[1] Eu preferi inventar localidades fictícias para a história, na tentativa de não cometer nenhuma injustiça ao falar de um local que realmente exista. Já pensou difamar uma cidade real? Não seria correto.
Ou seja, não existe uma cidade chamada Kurushimi, é só invenção da minha parte e qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência. :P
Curiosidade: Kurushimi em japonês significa "sofrimento"
