Anoitecer de sábado no Ningenkai.
KIARA POV
Pobreza, violência, tráfico de drogas, miséria e prostituição. É difícil encontrar um lugar no Mundo que esteja completamente isento de cair dentro das estatísticas de pelo menos um desses fatores. Direta ou indiretamente, eles afetam a vida da maioria das pessoas, seja em maior ou menor intensidade. No entanto, em alguns lugares específicos do planeta eles se misturam causando estragos inimagináveis. Pode-se dizer que esse é o caso de Kurushimi, uma cidade cheia de contrastes, onde bandidos e bons cidadãos se misturam entre as ruas, até que chega o momento em que você já não consegue mais distinguí-los.
Em Kurushimi é difícil encontrar empatia, compaixão ou gentileza. O seu melhor amigo é você mesmo, a não ser que sua própria mente resolva te trair em um momento de insanidade, causada pela rotina caótica da cidade. O governo do país e a mídia ignoram a gravidade da situação estampada bem diante de seus olhos e a população de Kurushimi, por sua vez, finge levar uma vida normal e feliz.
— Tia Lucy! Eu quero brincar no parque das flores bonitas, por favor! – A voz feminina, meiga e infantil me despertou do estupor de meus pensamentos, me levando de volta até aonde meu corpo físico estava.
— Sinto muito, Sayu...agora não podemos, já está tarde e seu pai não quer que você saia de casa à noite.
A garotinha de quatro anos amarrou a cara para mim, chateada por ter seu pedido negado.
— Não fica assim. Podemos ir amanhã de manhã lá.
— É sério?
— Sim, eu mesma posso te levar.
— Jura? – Os olhos da menina brilharam de felicidade enquanto ela comemorava com pulos de alegria. Sayu abriu os braços para que eu a pegasse no colo e de prontidão eu a recebi em um abraço apertado – Eu adoro você tia Lucy, você é a melhor!
— Também adoro você, Sayu.
— Com licença, estou interrompendo? – A voz masculina repentinamente nos surpreendeu, fazendo com que a garotinha rapidamente se livrasse do meu colo e saísse correndo em direção ao pai, que havia acabado de chegar do trabalho.
— Papai!
— Oi meu amor, como você está? – Ele a recebeu com um sorriso largo e um sincero abraço paterno.
— Muito bem! Tia Lucy disse que vai me levar no parque das flores amanhã!
O homem olhou para mim confuso.
— Olá senhor, tudo bem? – Tentei ser simpática.
— Olá Lucy...que negócio é esse de "parque das flores"?
— É o parque que fica no limite da cidade, senhor. Sayu quer muito ir lá...espero que não tenha problema em levá-la.
— Bom Lucy, esses lugares são perigosos, você sabe. Ainda mais para minha filha que é um alvo fácil.
— Eu sei, senhor. Mas estarei com ela e a protegerei de tudo. Foi pra isso que me contratou, não é? Acredite em mim, não vou falhar. – Ele nos encarou por um tempo considerando o nosso pedido, terminando por ceder ao olhar bem nos olhos inocentes da filha.
— Claro...claro, está permitido. Mas agora vá tomar banho, Sayu. – Ele ordenou, colocando a filha de volta no chão.
— Eba, obrigada papai! Até amanhã tia Lucy! – Com a alegria elevada até o limite, a garotinha saiu do cômodo acompanhada por uma empregada, me deixando a sós com o homem que me fitava em um semblante amigável e malicioso ao mesmo tempo.
Ainda me causava estranheza pensar no rumo que minha vida havia tomado desde que decidi trabalhar para o traficante parado à minha frente. Mikio Yamazaki era só mais um dos inúmeros mafiosos dessa cidade, na realidade, o que o diferenciava dos outros era o tipo de mercadoria com que ele lidava: youkais. O grande objetivo de sua vida é capturar demônios que possam gerar muita grana dentro de seus bolsos. Pra isso, ele realiza negócios com seres poderosos do Makai. Muitas vezes ele troca até mesmo a vida de humanos inocentes por demônios que sejam do seu agrado.
Após o massacre que aconteceu há 5 meses atrás no meu Clã, comecei a investigar mais sobre os responsáveis. Mas não foi fácil, afinal, eu estava sendo caçada por inúmeros youkais e tive que me esconder aonde quer que eu fosse. Inevitavelmente lutei e venci alguns inimigos, tentando obter informações que pudessem me revelar aonde poderia encontrar os assassinos de meus companheiros...ou melhor, aonde eu poderia encontrar meu irmão! Infelizmente, os demônios que enfrentei eram apenas peões seguindo ordens e pouco sabiam na realidade.
Ainda assim, com sorte, pude coletar algumas pistas que acabaram me trazendo até essa cidade. Minhas investigações revelaram que o grupo de demônios que acabou com o meu clã se vinculou ao senhor Yamazaki e solicitaram que ele mandasse todos os seus homens caçar a komorebi sobrevivente, Kiara Mikami. Resumindo, o senhor Yamazaki aqui presente mandou toda sua equipe atrás de mim. É realmente o todo poderoso entre os mafiosos e em troca da minha cabeça ele vai conseguir lucrar mais do que nunca.
Para vingar o meu clã eu não podia me precipitar, tinha que alcançar meus inimigos, mas sem deixar que eles me alcançassem primeiro. Em outras palavras, eu precisava me esconder ao mesmo tempo em que conseguia descobrir mais sobre eles. Foi então que tive a ideia de trabalhar para Mikio Yamazaki.
O bem mais precioso que ele tem na vida é sua filha de quatro anos, Sayu. Soube que o senhor Yamazaki é bem famoso no Makai e entre os demônios de um modo geral, ele é odiado. Não é de hoje que vários youkais vem pra cá tentando matá-lo. Assim, desde que Sayu nasceu ela instantaneamente entrou nessa vida e passou a correr perigo também. Dessa forma, ele se habituou a contratar os melhores guarda-costas para a garotinha, impedindo que ela saísse desacompanhada.
Há quase três meses eu consegui esse emprego de segurança, provando ser habilidosa o suficiente para cuidar da garota. Obviamente isso era um pretexto para me aproximar de Yamazaki e conseguir obter informações sobre os assassinos do meu clã, já que eles mantém contato direto.
Concluindo o plano, me disfarcei um pouco, considerando que minha aparência já era conhecida pelo grupo de youkais que estava atrás de mim, e que obviamente eles devem ter repassado as informações detalhadas para o senhor Yamazaki e sua equipe. Coloquei lentes de contato, camuflando a cor verde dos meus olhos e falsifiquei vários documentos que me garantiam uma identidade falsa. Meu nome agora era Lucy, o mesmo de minha mãe, e meu passado era completamente diferente da vida de Kiara.
Aprendi a esconder minha energia e me parecer o mais normal possível. No teste do emprego não revelei ter nenhuma habilidade sobre-humana e não precisei usar energia espiritual ou energia demoníaca, apenas habilidades de combate que qualquer pessoa poderia desenvolver, então foi fácil enganar a todos. Pra eles eu era apenas uma mulher comum, praticante de artes marciais.
O mais adequado para meu atingir objetivo seria ter feito um teste para trabalhar diretamente no serviço de captura e tráfico de youkais, mas com certeza o exame seria mais pesado e eu não sei se conseguiria esconder meus poderes. Então, a única opção que restou para me aproximar de Yamazaki, foi a sua filha.
— Lucy, tenha muito cuidado. Muitos youkais ficam rondando por aqui. Quero que alguns dos meus homens a acompanhem amanhã até esse parque.
— Como quiser, senhor.
— Se tiver algum sinal de perigo quero que voltem imediatamente, entendeu?
— Sim, senhor.
— Sabe...Sayu parece gostar muito de você. Nunca vi ela ficar tão feliz com alguém.
— Eu tenho jeito com crianças, gosto muito delas. Mas a Sayu é especial.
— Pude ver o carinho com que você a trata e fico muito feliz com isso. Cada dia estou mais convencido de que contratei a pessoa certa! – Sorri falsamente em resposta – Mas, você não tem filhos, não é?
— Não...não, senhor. Sou muito nova pra isso.
— Ah me desculpe. É que ver você se dando tão bem com ela me fez pensar que já tivesse alguma experiência.
— É que cresci rodeada de crianças e eu cuidava delas. – Menti com simplicidade.
— De qualquer forma, não te acho muito nova pra isso, aliás, você será uma ótima mãe. Seu namorado é muito sortudo.
Que clichê ridículo. Mencionar um suposto namorado só pra que eu o corrija e ele saiba se sou solteira. Os interesses desse homem por mim eram claros. Ele queria me ter como muito mais do que uma funcionária e eu acabava aceitando gentilmente suas investidas, na tentativa de fazê-lo se abrir comigo sobre tudo, incluindo seu trabalho.
— Eu não namoro senhor.
— Ah, é mesmo? Que estranho. Mas certamente deve ter vários pretendentes.
— Na verdade não. Nunca me relacionei com ninguém antes. – Pela primeira vez em muito tempo eu não precisei mentir – Não achei o homem certo. Todos que conheci eram muito...imaturos. – Pude ver o homem sorrir com os olhos, ainda que suas feições não demonstrasse seu contentamento pelas minhas palavras.
— Tenho certeza que quando menos esperar vai achar a pessoa certa. – Ele bocejou sonolento, ao despencar na poltrona de couro da sala e decidi aproveitar a oportunidade.
— Você parece muito cansado hoje, senhor. Algum problema?
— Ah os negócios...difíceis...você sabe...
— Ainda não encontraram a garota que estão procurando, não é mesmo?
— Não...ainda não, vai saber onde essa mulher se meteu. Eu tenho conhecidos por toda a parte do mundo, mas não há nenhum sinal dela. Parece ter sumido do mapa.
Eu gargalhava por dentro. O que esse imbecil faria se soubesse que a garota que ele procura está bem aqui na sua frente, seguindo seus passos como sua própria sombra? Eu tinha vontade de revelar só pra ver sua reação.
— Gostaria de ajudá-lo. Sou muito boa em encontrar pessoas escondidas. Se precisar pode me chamar a qualquer hora.
— Você já provou ser de minha confiança e não duvido das suas habilidades, mas sua prioridade é a Sayu.
— Ainda assim, saiba que estou disponível pra qualquer coisa.
— Lucy você é demais! A melhor contratação que eu fiz nos últimos tempos. Nunca tive alguém tão disciplinado e disposto a trabalhar.
— Estou aqui pra isso, senhor.
— Não quer ficar para o jantar?
— Não, não quero incomodar.
— Não vai ser um incômodo. A presença de uma mulher tão bonita não pode incomodar ninguém. Além disso, Sayu vai amar.
— Eu agradeço, senhor. Mas é melhor eu ir pra casa, já está ficando tarde e eu nem estou arrumada de forma adequada para um jantar. – Ele jamais poderia saber que, minha "casa", na verdade era um quarto barato de hotel.
— Sendo assim, Lucy, você fica me devendo um jantar. Acho que poderíamos reservar uma noite para conversarmos melhor, não? Não vou aceitar uma resposta negativa e te darei tempo que quiser pra se arrumar antes! – Ele me analisou da cabeça aos pés, fazendo com que me sentisse nua sob seu olhar, no entanto, apesar da repulsa que senti, não podia recusar o convite. Seria o momento ideal pra conseguir com que ele revelasse muitas informações úteis.
— Sendo dessa maneira, acho que não terá problema. Agradeço o convite, senhor.
— Combinado. Vou agendar um dia e te aviso. Quer uma carona pra casa?
— Não precisa, eu vou sozinha, é bem perto daqui. Mas muito obrigada.
— Certo Lucy, até amanhã então. – Ele se levantou da poltrona e caminhou lentamente até mim, terminando por me cumprimentar com um beijo repulsivo no rosto, na minha opinião perto demais da minha boca.
— Até amanhã, senhor.
Saí apressada da mansão Yamazaki e segui em direção ao hotel, parando em um restaurante barato no caminho para tomar apenas um misoshiru. Sabia que ultimamente não estava cuidando bem da minha saúde, já que comia mal e praticamente não dormia, mas na realidade eu nem me importava. As únicas coisas que ocupavam espaço em minha mente eram as necessidades de encontrar Kazuki e de vingar meu clã, e embora eu estivesse demorando mais tempo do que eu gostaria para conseguir atingir meus objetivos, desistir não era uma possibilidade.
KIARA POF
YUSUKE POV
Domingo, Ningenkai.
— Pessoal, me escutem. – Sonolento por acordar mais cedo que de costume, olhei relutante para Koenma, tentando prestar atenção no que ele diria a seguir – Ontem à noite enquanto vocês dormiam eu andei investigando sobre Kurushimi para confirmar algumas suspeitas. Essa é uma das cidades que o Reikai mais teve problemas nos últimos anos, porque é carregada de ataques de youkais. Acontece que muitos traficantes moram lá, inclusive um conhecido de longa data no Mundo Espiritual, Mikio Yamazaki. O cara é poderosíssimo e há muito tempo vem traficando demônios.
— Como é que é?! Demônios?! – Kuwabara arregalou os olhos instantaneamente e interrompeu o líder espiritual.
— Pois é. O homem tem negócios por toda a parte do Mundo, inclusive vocês conheceram um antigo companheiro dele, Gonzo Tarukane. – Ao meu lado, pude sentir Yukina estremecer assustada ao ouvir o nome familiar do homem que por tanto tempo a manteve como prisioneira. – Se eu fosse contar a vocês tudo que Yamazaki já fez, ficaríamos aqui pra sempre. A questão é que muitos youkais não gostam dele e o procuram em busca de vingança, atacando tudo que aparece no meio do caminho. Então precisarão tomar cuidado em Kurushimi.
— Como assim "precisarão"? Koenma, seu covarde...tá amarelando só por causa de uns míseros ataques de youkais? Você não presta. – Retruquei com desgosto.
— Você tá ficando abusado, hein, Yusuke? Se eu não vou, é porque preciso resolver muitos assuntos no Mundo Espiritual. Fui convocado pra uma reunião e não posso faltar de jeito nenhum, por isso continuem a missão sem mim e voltaremos a nos encontrar assim que possível.
— Mas Koenma, eu não entendo. Sabendo de tudo isso, porque o Reikai nunca barrou um homem desses?
— É muito fácil falar, Kuwabara. Não ouviu eu dizendo que ele tem negócios por todas as partes do Mundo? O Reikai não é uma excessão. O cara é protegido por gente ainda mais poderosa que ele...inclusive... – ele olhou pro chão, aflito... – era protegido até pelo meu pai.
— Então quer dizer que a garota foi pra uma cidade cheia de youkais? Por que ela faria isso se sendo que está sendo caçada? – Talvez fosse cedo demais para que meus neurônios decidissem colaborar com a confusão de ideias que tomava conta de mim.
— Pode ser que ela esteja indo justamente por estar sendo caçada. – Me respondeu Kurama.
— Como assim? Ela quer ser pega? – Botan olhou incrédula.
— Não. Mas talvez ela nunca tenha tido a intenção de se esconder. Isso é só uma hipótese, eu não sei o que se passa na mente dela. – Ele respondeu, fazendo com que Botan arqueasse as sobrancelhas tão confusa quanto eu.
Da mesma forma que ontem, decidimos pegar uma carona com Piu até o nosso novo destino, mas diferente do dia anterior, hoje ele nos deixaria em algum lugar perto da cidade e voltaria para o Reikai, por questões óbvias de segurança. O movimento de gente perto de Kurushimi pode ser grande, então não poderíamos arriscar que ele fosse descoberto.
— Você não deveria ir. – Hiei congelou em frente de Yukina e disse com simplicidade tentando convencê-la. Ele não precisava dar mais explicações, sua irmã já havia sido capturada uma vez e se algo desse errado isso poderia acontecer novamente. Para homens como Tarukane, Yukina era só uma mercadoria, a vida dela não tinha a mínima importância.
— Dessa vez eu concordo com Hiei, pode ser perigoso Yukina, especialmente pra você. – Disse Kurama em seguida tentando dar apoio.
— Eu sei. Sei que estão certos, mas quero ajudar vocês, por favor. – Ela falou num tom de súplica.
— Não se preocupe, Yukina! Eu vou te proteger de tudo que aparecer no nosso caminho. –Kuwabara segurou aos mãos da youkai do gelo de forma galanteadora e ela sorriu tímida e sem graça ao ficar sem reação.
— Idiota, você não consegue proteger nem a si mesmo. – Hiei provocou rispidamente.
— Repete isso, seu... – Kuwabara já se preparava para uma briga, enquanto Hiei o olhava com desprezo, sem nenhum sinal de ter sido intimidado. Nos últimos dias a relação dos dois parecia ter piorado consideravelmente.
— Por favor Kazuma, pare. – Yukina pediu fazendo com que ele recuasse envergonhado, como um cachorro obedecendo sua dona – Prometo que vou tomar cuidado e fazer de tudo para não atrapalhar vocês.
Hiei revirou os olhos e deu de ombros como se não se importasse. Eu entendia perfeitamente como ele se sentia, tentando inutilmente proteger alguém que gosta. Ontem à noite, antes de dormirmos, Keiko e eu tivemos uma discussão feia, porque pedi a ela que não fosse conosco hoje, dizendo que seria perigoso. Ela ficou possessa, como se eu tivesse despertado o capeta que estava adormecido dentro do seu corpo. No fim acabei cedendo de novo e não nos falamos mais desde então. Qualquer idiota podia ver o quanto ela está ressentida comigo e a forma como está evitando me olhar, mas mesmo assim não mudou de ideia.
Ultimamente tenho tido a sensação que seria mais fácil vencer uma maratona de lutas contra os reis do Makai do que vencer uma discussão com Keiko.
Alçamos vôo e poucas horas depois já sobrevoávamos Kurushimi. Aterrizamos com Piu em uma região isolada e então ele retornou ao Reikai. Botan o buscaria quando tivessemos que voltar para casa.
Assim, terminaríamos o trajeto até a cidade a pé, por meio de uma trilha sutilmente escondida. Normalmente o caminho seria um tanto quanto longo, já que a cidade estava localizada na base de enorme montanha e para chegar até ela era preciso primeiro atravessar a cordilheira, subindo suas sinuosas curvas para depois descer pelo outro lado. Felizmente, com a ajuda de Piu, havíamos cortado metade do trajeto e só precisaríamos descer a montanha.
Por um tempo caminhamos com tranquilidade e a aproximação com a metrópole ficava evidente conforme a altura do desfiladeiro ao lado direito da trilha diminuía, deixando claro que logo chegaríamos ao sopé do monte. No entanto, repentinamente e ao mesmo tempo, Kurama, Hiei, Kuwabara e eu paramos de andar. As garotas nos imitaram em seguida sem entender. Eu já estava estranhando tanta paz, afinal, pelo que Koenma nos disse esse lugar estava cheio de youkais. Eles estavam demorando demais para dar as caras...até agora.
Escondidos e nos vigiando pela mata, eu podia sentí-los. Não sabia ao certo quantos...talvez dez, treze ou mais. Mas a julgar pela energia demoníaca deles, podia apostar que não eram grande coisa. Olhei para Keiko atrás de mim e soube que enfim compreendeu a situação, e mesmo estando brava comigo, me lançou um meio sorriso encorajador.
— Apareçam! Já sabemos que estão aí! – Ordenei em um grito, fazendo com que no mesmo instante os youkais saltassem em nossa direção. Eles se enfileiraram na nossa frente na tentativa de nos encurralar no enorme despenhadeiro atrás de nós.
— Quem são vocês? – Gritou um dos demônios, magricela e com aparência de lobo. – Sinto cheiro de humana e de demônios – Ele olhava fixamente para Keiko enquanto suas narinas se inflavam com vontade. Outro que mais parecia um trasgo gritou em seguida.
— Pode ser a tal garota! Peguem ela!
O quê?! Meu sangue ferveu de raiva pelo alvo deles ser Keiko. Esses youkais estúpidos não eram páreo pra pra nenhum de nós, mas mesmo assim me senti ameaçado com a possibilidade de que algo pudesse acontecer a ela.
— Seu miserável...nem pense nisso! LEIGAN! – Enfurecido e sem pensar direito, lancei primeiro disparo em direção aos monstros. Atingi em cheio o youkai trasgo que havia dado a ordem e outro que estava ao lado dele. Ambos ficaram dilacerados e completamente mortos com a explosão. No entanto, eu sabia que poderia e deveria ter acertado mais alguns. Os que sobraram acabaram sendo ágeis e conseguiram escapar do ataque...ou será que eu fui lento demais?
— Qual é Urameshi, tá brincando de quê? – Kuwabara me reprendeu por deixá-los escapar, ao mesmo tempo em que conjurava sua espada dimensional. Eu ri da situação. Desde quando levo bronca de Kazuma por fazer besteira numa luta?
— Foi mal...acho que tô meio enferrujado, mas da próxima vez eu consigo acabar com todos eles de uma só vez.
— Desgraçado! Vão nos pagar por isso! – Um demônio escamoso do grupo gritou e todos eles partiram em nossa direção ao mesmo tempo. Dois pularam em cima de mim, consegui desviar saltando para o lado e chutei fortemente um deles na têmpora. Não dei chance de revidarem e parti pra cima em uma sequência de socos rápidos e perfurantes em seus estômagos, os lançando para longe. Eram fracotes e só tinham aparência, porque em força ou agilidade ficavam devendo.
Pelas minhas costas mais um demônio me atacou e eu desviei de seu golpe ao me abaixar. Porém, antes que pudesse revidar, me dei conta que eu não era seu único alvo. Um pouco atrás de mim estava Yukina e como eu havia desviado ela acabou ficando completamente visível para ele. Atirar um Leigan seria ter certeza de que não acertaria somente o inimigo, mas também a koorime. Merda!
De maneira covarde, ele avançou em cima dela fazendo com e que ela perdesse o equilíbrio ao andar pra trás e acabasse caindo no desfiladeiro às suas costas. Sua voz ressoou num um grito estridente enquanto despencava em quedra livre para uma morte quase certa.
— Yukina! – Apavorado com a cena, Kuwabara gritou com toda força que tinha nos pulmões, enquanto retirava sua espada espiritual do peito de outro monstro caído aos seus pés.
Mal notei que Hiei já havia saltado com toda sua velocidade atrás da garota na tentativa de pegá-la antes que atingisse o chão, sendo seguido pelo demônio que a derrubou. Perdi os três de vista na vegetação ao fim da queda. Keiko, Kuwabara e Botan olhavam boquiabertos para o que aconteceu e eu voltei a dar atenção aos últimos youkais que restavam em nossa caminho. Kurama e eu nos entreolhamos decidindo qual de nós mataria os imprestáveis restantes. Hiei e Yukina ficariam bem, eu tinha certeza disso, só teríamos que nos reencontrar depois.
YUSUKE POF
KIARA POV
Cumprindo a promessa que fiz ontem a Sayu, saímos bem cedo de sua casa para irmos ao parque que ficava perto dos limites da cidade, acompanhadas por alguns homens que trabalham para o senhor Yamazaki. Na primavera as árvores florescem em abundância, no entanto, estamos no outono, e com o fim do ano se aproximando, logo Kurushimi seria atingida pelo inverno rigoroso. Boa parte das vezes chega a nevar, já que a cidade se situa numa região montanhosa. Então, o outono é a época em que todos saem de suas casas a fim de ter os últimos vislumbres das árvores coloridas.
— Se precisar de alguma coisa é só gritar, Lucy. Estarei aqui por perto. – Haruo, um jovem trabalhador das tropas de Yamazaki, me alertou.
— Pode deixar, Haruo.
Sayu brincava sorridente por cada canto que passava, enquanto colhia folhas e flores caídas na grama. Ficar com ela era o mais perto que eu pude chegar da felicidade no últimos meses, por isso adorava fazer suas vontades.
Distraída com a garota, que corria alegremente por todo perímetro do parque, nem percebi o quanto acabamos nos afastando de Haruo e dos outros até uma área mais reservada, de forma que ficamos a sós e literalmente chegamos ao que parecia ser o fim da cidade. À nossa frente, apenas uma pequena cerca de metal nos separava de uma enorme vegetação que se estendia por toda a montanha acima. Diante daquela quietude, me questionei se deveríamos ficar tão isoladas de todos. Era um lugar deserto e possivelmente perigoso para Sayu e até mesmo pra mim. Não deveria arriscar tanto.
— Tia Lucy quero voltar aqui todo dia! – Sayu interrompeu meus pensamentos enquanto enchia as mãos de pétalas soltas caídas no chão – Acha que papai vai gostar dessas flores que vou levar pra ele?
— Claro. Ele vai amar. – O sorriso em meu rosto de desfez em um segundo ao perceber o estranho som vindo da mata à nossa frente. A agitação das folhagens aumentava progressivamente em nossa direção de uma maneira incomum, como se alguém estivesse se aproximando em alta velocidade e o pior...parecia estar acompanhado.
Desconfiada de que não se tratava de simples humanos, rapidamente peguei Sayu no colo e a deixei escondida atrás de alguns arbustos.
— Fique aí, Sayu! Entendeu? – Ela apenas concordou com a cabeça, completamente assustada.
Não tive tempo de me esconder, pois repentinamente dentre as árvores surgiram dois vultos cuja energia que emitiam deixava clara suas identidades: youkais, sendo um deles de aparência humana e outro mosntruosamente feio, com chifres protuberantes na cabeça.
O demônio de aparência humana se moveu tão rápido que mal pude ver seus movimentos e, somente quando ele se afastou o suficiente do outro e parou de correr, consegui entender o que estava acontecendo. Ele carregava no colo uma youkai, como se estivesse tentando protegê-la. Colocando a garota no chão, partiu pra cima do inimigo com uma katana.
No entanto, acho que ele não contava com um fator surpresa: um quarto demônio animalesco surgiu debaixo do solo, espalhando terra pelos ares e lançando o seu corpo longo e cilíndrico em cima da youkai ao mesmo tempo em que seu protetor lutava com o outro.
Eu não havia como prever a minha atitude a seguir e nem ao menos poderia explicá-la. Instinto, talvez? Tudo o que sei é que, quando dei por mim, eu já havia interferido, desviando a garota do caminho do inimigo e me ferindo como consequência. Um corte se abriu no meu antebraço e um pouco de sangue começou a escorrer, mas eu ignorei. Pronta para um contra-ataque, desembainhei a minha katana e me virei em busca do meu oponente. Porém, antes que eu tivesse a chance de entrar em ação, o demônio urrou em um grito de dor e caiu morto no chão, com uma espada atravessada em toda extensão de seu corpo.
O youkai de cabelos negros desgrenhados e arrepiados, que antes trazia a garota no colo, matou os dois monstros que o perseguiam tão rápido que nem pude ver o que tinha acontecido. O tempo que eu a empurrava foi o suficiente para ele finalizar a luta.
Prendi o fôlego em tensão enquanto nós três nos encarávamos e, no instante em que meus olhos pousaram sobre a garota caída aos meus pés, tomei um susto ao reconhecer suas características físicas. A pele pálida, os olhos vermelhos e cabelos esverdeados se uniam num conjunto genético característico de uma espécie de demônio que eu já tinha ouvido falar muito: as mulheres de gelo. Pendurada em seu pescoço, uma pedra preciosa brilhava intensamente ao escapar de dentro de sua roupa, confirmando minhas suspeitas.
Mas o que uma koorime estaria fazendo aqui nessa cidade? É simplesmente suicídio! Suas lágrimas se cristalizam em pedras valiosíssimas que enriqueceriam até o mais pobre dos homens em questão de segundos. Essa garota seria considerada uma preciosidade para o senhor Yamazaki.
— Muito obrigada. – A youkai disse a mim. Fiquei momentaneamente atordoada pela situação incomum...nunca pensei que veria um demônio me agradecendo por salvar sua vida, geralmente eu fazia o contrário. Voltei minha atenção para o outro youkai que a acompanhava. Sua energia demoníaca era incrível e evidenciava o quão perigoso podia ser. Ele me encarava sério, com frieza no olhar e cara de poucos amigos. Definitivamente representava problema.
Meus pensamentos foram desviados no mesmo instante para Sayu. Precisava tirá-la daqui o quanto antes! Comecei a me afastar lentamente da youkai do gelo dando passos para trás, até que minha perna direita trombasse com um pequeno obstáculo que entrou no meu caminho. Sayu saiu do esconderijo e agora se agarrava em mim enquanto olhava com medo para o demônio parado à nossa frente. Ela não me obedeceu, droga! Não era pra ter sido vista. Respirando fundo, tomei coragem para iniciar uma conversa.
— Você é uma koorime, não é? – Perguntei à mulher que se levantava do chão.
O demônio ao lado da garota ficou visivelmente irritado com a minha pergunta e ameaçadoramente avançou alguns passos em minha direção. Meu coração disparou pela forma cruel com que ele me olhou, mas eu não podia simplesmente recuar, então fiz o mesmo gesto e me preparei pra um ataque.
— Se afaste, Sayu. – Ordenei para a garotinha sem olhá-la e a ouvi dar lentos passos para trás, emitindo um choramingo.
— Hiei, está tudo bem...ela me salvou. – A mulher do gelo disse a ele.
— Esse é o lugar menos indicado pra uma koorime ficar. Não sabe que aqui tem caçadores de demônios? Você vale uma nota pra eles. Vão embora daqui. – Tentei ser o mais firme possível nas minhas palavras.
O demônio parecia estar me analisando em cada detalhe e revezava seu olhar entre mim e Sayu, por vezes pousando os olhos sobre a minha katana, até que, despreocupado, aliviou sua postura e embainhou sua espada suja de sangue, terminando por virar as costas para mim como se não tivesse medo algum de ser atacado. Que arrogância. Nunca havia me sentido tão subestimada.
— Vamos, Yukina.
— Mas ela se feriu no momento que me salvou...eu deveria pelo menos curá-la.
— Não, Yukina, vamos embora. – Ele a repreendeu furiosamente com o olhar.
— Lucy! – Haruo gritou distante o bastante para não nos ver. Provavelmente ele ouviu o barulho da luta e agora estava correndo pra cá. Se esses dois não se mandassem daqui nesse exato instante, eu teria sérios problemas.
— Você devia escutá-lo, garota. Vão embora dessa cidade, agora! – A koorime me olhou uma última vez antes de começar a caminhar ao lado do outro youkai, em direção à floresta, onde sumiram completamente da minha vista. Meus batimentos cardíacos voltavam lentamente ao normal enquanto eu suspirava aliviada, embora ainda estivesse confusa. O que diabos acabou de acontecer?
