HIEI POV
— Hiei...você está bravo comigo, não é? – Yukina evitava me olhar enquanto permanecia numa postura envergonhada. – Eu prometi que teria cuidado e acabei atrapalhando vocês...desculpa.
— Eu disse que você não deveria vir. – Num reflexo ela tentou esconder ainda mais o rosto. – Mas já que está aqui, por que não tenta ser mais cuidadosa? Já deveria ter escondido sua hiruiseki.
— E-eu esqueci desse detalhe. Sinto muito! – Ela se angustiou ainda mais atrás de mim.
Suspirei profundamente impaciente, enquanto ela dava um jeito de esconder a lágrima gélida. Sabia que a presença de Yukina aqui só seria um estorvo, por mais que ela se esforçasse para conseguir o contrário. Eu devia tê-la obrigado a ficar no templo de qualquer jeito, mas algo me impediu de iniciar uma discussão. Além disso, Yukina já havia demonstrado ser mais teimosa do que eu imaginei. Obviamente eu ainda tinha muito o que aprender sobre ela.
— Vamos voltar lá pra cima. – Ela ergueu a cabeça, levando o olhar de encontro ao ponto da montanha em que caiu.
— Mas você vai conseguir voltar pra lá, Hiei? É tão alto... – Com a dúvida estampada em seu rosto, ficou claro que ela também tinha muito o que aprender sobre mim.
— Mas é claro que vou. – Eu a peguei no colo e tomei impulso. Num salto só nos lancei sobre a parede íngrime da montanha, seguindo com uma sequência de pulos rápidos em direção ao topo do desfiladeiro. Conforme avançava, o medo de Yukina se transformou em um abraço cada vez mais apertado em volta do meu pescoço. Pousando enfim em solo firme, Yusuke veio correndo de encontro a nós.
— Olha eles aí!
— Que alívio! Vocês estão bem? – A guia espiritual se aproximou também, exageradamente preocupada.
— Óbvio que estamos. – Respondi ríspido.
— Yukina eu fiquei tão preocupado! Achei que tivesse morrido! – A voz de Kuwabara era irritante e seus olhos ainda mantinham um resquício de lágrimas. Ele apenas se calou quando se deu conta que Yukina ainda me segurava com força, o que fez com que sua expressão de choro se transformasse em fúria. Patético. O tipo de sentimento que insistia em nutrir por ela era mais ridículo do que ele próprio.
— Desculpem pela preocupação. Kazuma estou bem, Hiei me pegou antes que eu caísse.
— É, eu tô vendo!
— Bom...parece que era só um bando de demônios atrás da tal Kiara, não é? Confundiram ela com a Keiko. Você não conseguiu tirar nenhuma informação do cara que te seguiu, Hiei? – Yusuke perguntou esperançoso.
— Não. – Respondi encerrando a conversa, enquanto Yukina tratava de contar com detalhes tudo o que havia acontecido. Poupei a mim mesmo de ouvir toda a história, levando minha mente pra bem longe dali.
Aquela mulher que encontramos parecia ser uma humana comum. No entanto, não podia ignorar o estranho fato de ter percebido que Yukina é uma koorime. Pra saber exatamente como uma mulher do gelo é, ela precisaria ter muito conhecimento sobre youkais. Além disso, por mais que não tivesse sentido energia alguma vindo dela, ainda assim a mulher estava decidida a lutar comigo. Se era uma humana qualquer, por que tentaria batalhar com um demônio? Seria muita prepotência.
Se ela estivesse sozinha eu não teria hesitado em usar o Jagan para tirar as dúvidas, mas aquela criança humana atrapalhou meus planos...
— Então era só uma garota comum? – A mulher de Yusuke perguntou à Yukina me levando de volta à realidade.
— Bem...seus olhos eram castanhos e alguém a chamou de Lucy. Ela também cuidava de uma criança. Acho que não era quem procuramos.
— Mas é estranho que ela tenha reconhecido o tipo de youkai que você é com tanta precisão, Yukina. – Yusuke ponderou.
— Pode ter sido coincidência. – De prontidão, Kurama interrompeu a ideia – Não podemos nos esquecer de que essa cidade tem traficantes de youkais. Muita gente aqui pode ter conhecimento sobre demônios, ainda mais se for uma espécie de interesse pra eles. – Ele me lançou um olhar desconfiado de suas próprias palavras. Ainda que tentasse ser racional, no fundo estava tão incomodado quanto Yusuke.
Cansado de perder tempo com a missão estúpida que Koenma nos deu, me desviei de todos os olhares ansiosos por um palpite e retomei o caminho em direção a cidade. Em resposta ouvi passos lentos me seguirem. A verdade é que pouco importava se aquela humana era quem procuramos ou não e ficar discutindo isso era perda de tempo. A única questão que realmente me incomodava era o profundo reflexo de ódio que a mulher carregava em seus olhos. Yukina pelo visto nem percebeu, mas comigo era diferente. Talvez porque há tempos atrás eu levasse essa mesma expressão no olhar, quando ainda buscava vingança contra as koorimes.
O que realmente me perturbou nesse encontro foi ter visto a mim mesmo quando olhei pra ela.
HIEI POF
KURAMA POV
Quase chegando na entrada de Kurushimi, o vento soprou forte, de modo que entre o farfalhar das folhas das árvores pude ouvir um baixo estalido, quase inaudível. Cessei os passos enquanto os outros continuavam andando e olhei para trás procurando a causa do som, mas não encontrei nada fora do normal. Não podia ser mais um ataque youkai, se não eu já teria sentido o youki do inimigo. Tudo o que conseguia perceber era a presença de muitos humanos...o que era de se esperar, já que estávamos em uma grande cidade do Ningenkai. Convencido de que estava me alarmando à toa, voltei a caminhar, seguindo Yusuke e os demais.
Repentinamente, um baque estrondoso de disparos múltiplos e simultâneos quase estourou meus tímpanos. Desnorteados pelo som doloroso, os outros pareciam alheios ao seu real significado. Eram armas de fogo...estavam disparando em nós! Koenma havia nos alertado sobre os youkais, mas não esperávamos um ataque vindo de humanos. Comprimindo os olhos com força, pude ver vários projéteis vindo em nossa direção por trás.
— Cuidado! – Tentei alertar a todos ao mesmo tempo em que dava um jeito de desviar do ataque. Porém, não adiantou. Para eles minha voz ainda estava abafada pelo zumbido proveniente do barulho explosivo das armas, nem se querer me ouviram. Hiei e eu conseguimos desviar com sucesso do ataque dos atiradores e Yusuke escapou por pouco, protegendo Keiko ao derrubá-la no chão.
Em câmera lenta, consegui ver os tiros acertarem Kuwabara, Yukina e Botan de maneira certeira e rapidamente me preparei para socorrê-los de seus ferimentos. No entanto, congelei ao ver que não haviam se machucado. Não havia nenhuma gota sequer de sangue após serem atingidos e só fui compreender o que estava acontecendo nos instantes seguintes, quando círculos brilhosos e quase transparentes envolveram o corpo de cada um deles. Os projéteis que os atingiram não existiam mais, eles haviam se transformado nessas estranhas projeções, deixando claro que não estávamos lidando com armas de fogo humanas e sim armas vindas do Makai.
Os atiradores que antes estavam escondidos agora corriam em nossa direção, nos deixando cercados. Com artilharia apontada para nós e uniformizados em roupas especiais, seus capacetes protetores deixavam apenas uma parte do rosto exposta.
— Que porcaria é essa? – Impaciente, Kuwabara gritou se referindo o círculo luminoso que o rodeava. Ele o tocava por dentro, como se estivesse empurrando uma verdadeira parede de concreto. Irritado, não esperou receber uma satisfação pelo que estava acontecendo. – Ah que se dane, eu mesmo vou destruir essa merda! Espada Dimensional!
Num piscar de olhos, Kazuma conjurou sua arma e tentou quebrar a projeção luminosa à sua volta, usando boa parte de sua força. A prisão estremeceu ao quase se romper, nos fazendo arregalar os olhos em surpresa ao percebermos que o ataque não havia funcionado. No entanto, nossas expressões se converteram em horror quando notamos que as intenções de Kazuma tiveram o efeito oposto. O golpe que lançou foi absorvido pela prisão e ricocheteou contra seu próprio dono, abrindo um enorme corte que se estendia do seu ombro direito até o tórax.
— Kuwabara! – Yusuke gritou espantado ao ver o amigo sendo banhado pelo sangue que escapava do ferimento. Ele se ajoelhou no chão com o impacto de seu próprio golpe, tentando resistir à tentação de desabar por conta da dor.
— Kazuma! – Yukina gritou preocupada ao ver o sangue que se espalhava no chão. Intuitivamente ela se agachou e ergueu as mãos para curá-lo, mas nem ao menos conseguiu encostar em Kuwabara, porque também havia sido atingida por um tiro e aprisionada da mesma forma.
— Idiotas...– o homem que parecia ser o líder dos atiradores começou a falar –...isso é uma barreira refletora, uma vez presos nela, qualquer ataque lançado de dentro será refletido de volta a você. Mas é bom que saibam que golpes vindo de fora podem atingí-los normalmente. Além disso, ela é indestrutível, feita pelo maior perito de barreiras do Mundo dos Demônios, então é melhor que se rendam agora mesmo.
Eu fiquei desacreditado e escutei Yusuke proferir todos os palavrões que conhecia. Não era pra menos. O fato da espada de Kuwabara ter sido a única ferramenta capaz de quebrar a barreira dimensional entre o Ningenkai e o Makai há um tempo atrás, e agora acabar sendo refletida como se não fosse absolutamente nada, nos dava a certeza que o homem não estava mentindo. Se Kuwabara não era capaz de rompê-la, ninguém mais seria.
Sem perder tempo, o líder sinalizou aos demais atiradores um gesto que todos nós entendemos de imediato. Assim, quando eles voltaram a atirar já estávamos preparados para escapar. Hiei, Yusuke e eu desviávamos da maneira que conseguíamos, porém era óbvio isso não seria o suficiente para resolver nossa situação. Kuwabara estava ferido e aprisionado, assim como as garotas. De nada adiantaria vencer esses humanos se não conseguíssemos ajudá-los a se livrarem daquelas prisões.
O homem que comandava a operação provavelmente seria o nosso trunfo. Ele saberia como libertá-los e se conseguíssemos capturá-lo como refém teríamos controle sobre os demais. Enquanto bloqueava os ataques que vinham em minha direção e destruía as armas de atiradores com o Rose Whip, procurei ao meu redor o líder do grupo. Em meio a tanta confusão tive dificuldade para localizá-lo, e quando consegui, apenas vislumbrei sua imagem dentre uma série de obstáculos, correndo para longe de todos nós.
Por um segundo cogitei a possibilidade de que ele estivesse fugindo da batalha, porém ao me livrar de alguns homens que bloqueavam minha visão pude ver mais adiante o porquê ele corria na direção oposta à nossa. Estava perseguindo Keiko! Ela corria o mais rápido que podia, mas o homem avançava em passos largos e logo a alcançaria. Instantaneamente a lembrança dos youkai que nos atacaram me veio em mente. Estavam pensando que Keiko pudesse ser Kiara...isso não era coincidência. O homem tentando capturá-la com suas próprias mãos deixava claro a situação estava se repetindo. Mas por que humanos também estavam atrás da garota?!
Em seguida tudo aconteceu tão rápido que mal tive tempo de raciocinar com calma. Estava claro que o que eu planejava fazer com o líder, era o mesmo que ele planejava fazer com Keiko. A questão agora era saber qual dos dois seria feito de refém primeiro. Vendo que o homem estava prestes a alcançá-la, velozmente inúmeras ideias se passaram na minha mente para tentar impedí-lo, mas nenhuma me satisfez de fato, pois implicariam em ferir não somente os inimigos, mas também a Yusuke, Hiei e os outros que ainda estavam indefesos pelas barreiras que os prendiam.
Estando tão longe de mim, a única chance de freá-lo era por meio do Rose Whip, mas para que o chicote o alcançasse eu precisaria chegar pelo menos um pouco mais perto. Segurando um punhado de pétalas de rosa na mão, as lancei no alto, criando inúmeras cópias das originais. Logo, uma chuva de pétalas afiadas me rodeava e me protegia de qualquer tiro ou ataque humano. Dessa forma, estando livre da luta com os demais atiradores, corri o mais rápido que pude em direção ao meu alvo.
Considerando as chances de falhar, ao mesmo tempo em que corria, retirei da manga um conjunto de mínusculas sementes aveludadas e com o Rose Whip abri um corte em meu pulso, fundo o suficiente para embeber as inúmeras sementes com o meu próprio sangue. De imediato elas absorveram o líquido espesso que saía da ferida e em seguida eu as colei no Rose Whip, aproveitando a textura pegajosa e grudenta que possuíam. Ao ver que a distância entre nós havia diminuído o suficiente, lancei enfim o chicote em direção ao homem.
O chicote o prendeu com força pela coxa esquerda, limitando seus movimentos, ao mesmo tempo em que ele alcançava Keiko com as próprias mãos. O homem gritou de dor quando os espinhos cortantes do Rose Whip abriram um ferimento em sua pele, mas mesmo assim não soltou a garota.
Internamente, culpei a mim mesmo por falhar. Devia ter sido mais ágil e impedido que ele capturasse Keiko a qualquer custo. Inspirei com força todo o ar que pude, preocupado com o que teríamos que enfrentar a seguir.
— PAREM! – Com um grito forte e energético, o comandante chamou a atenção de todos nós, inclusive de seus próprios homens, que cessaram os ataques para encararem paralisados o seu líder – Se não pararem, eu mato ela! – O homem se aproximava de nós, segurando Keiko de refém ao pressionar uma faca em seu pescoço. Ele me encarou em tom de ordem para que eu desprendesse o Rose Whip de sua perna. Sem ter outra opção, retraí o chicote, enquanto Yusuke impulsivamente partia para um ataque.
— Solta ela! – Usar Keiko era uma armadilha ridícula, mas funcionou, porque devido à sua distração, um disparo atingiu Yusuke por trás, fazendo com que ficasse envolto pela barreira refletora. Assim, antes mesmo de conseguir alcançar o indivíduo com um soco, por conta do efeito reflexo ele acabou sendo arremessado para trás e caindo de costas no solo.
— Por que nos atacam? – Perguntei ao homem que mantinha Keiko refém, enquanto ganhava tempo para observar discretamente o Rose Whip. O local que antes eu havia preenchido com as minúsculas sementes agora estava vazio. Da mesma forma que se aderiram ao Rose Whip, elas se grudaram no exato local onde o sangue do inimigo escorria devido ao corte do chicote de rosa.
— Estamos observando vocês há um tempo. Sabemos que são demônios, embora essa aqui...– disse ele olhando para Keiko –...seja humana. Estou curioso, por que uma humana anda com demônios? Por acaso o nome dela é Kiara?
— Não! Não é! Solta ela, agora! – Yusuke gritou mais uma vez partindo pra cima dele, de tal forma que terminou por atingir outro golpe em si mesmo.
— Garoto idiota...isso é inútil, eu já falei! Vocês terão que nos acompanhar e se não for de bom grado terá de ser a força. Vocês dois...– ele revezou os olhares entre mim e Hiei –...nem pensem em continuar fugindo. Se não se renderem agora mesmo, essa aqui morre. – Ele apertou a faca ainda mais no pescoço de Keiko, arrancando um filete de sangue. Ela reprimiu um grito de dor, tentando se livrar dos braços do comandante.
— Por que eu faria isso, se posso matar todos vocês agora mesmo?
— Não! Hiei, por favor...não – Yusuke suplicou sabendo que Hiei estava falando sério. Ele nunca se importou com Keiko e não parecia inclinado a aceitar se deixar levar preso por culpa da garota. Colocando a mãos sobre a bainha da katana, tive certeza de que ele estava prestes a ignorar a súplica de Yusuke, então, a fim de evitar o iminente desastre que ocorreria a seguir, desbloqueei completamente a minha mente. Sabia que acesso de Hiei aos pensamentos alheios variava em grau de dificuldade conforme a força da mente de seu alvo. Dessa forma, garanti que meus pensamentos se tornasse um livro aberto pra ele.
Resumidamente lhe mostrei por telepatia o plano que havia arquitetado. Soube pelo seu olhar estreito e desconfiado que tinha "escutado" cada palavra, mas não estava convencido de que era a melhor opção...e de certa forma, ele estava certo.
As sementes que usei são de uma espécie vegetal do Makai conhecida como Parasita Silenciosa. São plantas oportunistas cujas sementes vivem em estado de dormência, sem nenhuma atividade fisiológica. Assim que entram em contato com a corrente sanguínea de um youkai, despertam rapidamente desse estado e germinam, se instalando o cérebro do demônio e controlando todas as suas atividades em seu benefício próprio. Por isso são consideradas pragas em regiões hostis do Makai, já que nesses lugares o que mais existe são youkais com feridas abertas e sangue exposto. As sementes minúsculas, leves e pegajosas se espalham pelo ar e se prendem facilmente em seus alvos, parasitando-os.
Infelizmente as propriedades do sangue de um ser humano não são suficientes para quebrar essa dormência com tanta eficácia. Na tentativa de acelerar esse o processo, fiz com que as sementes absorvessem o meu próprio sangue youkai para depois injetá-las na corrente sanguínea do comandante com o Rose Whip, no entanto não sabia se a estratégia funcionaria, afinal nunca havia testado antes. Além disso, era arriscado, considerando que não era uma solução a curto prazo e eu não fazia ideia de quanto tempo levaria para que a germinação se iniciasse. No entanto, considerando que Keiko estava sendo ameaçada de morte, essa era nossa única opção.
Felizmente, Hiei terminou por suspirar profundamente de raiva e desfez sua postura de ataque, deixando que eu tomasse controle da situação.
— Vão em frente, nos capturem. Nós não vamos tentar fugir. – Falei com firmeza, e em um único comando as pétalas que ainda dançavam ao meu redor caíram ao chão, me deixando completamente exposto. Pela fenda do capacete protetor, pude ver o homem sorrir com os olhos, ao mesmo tempo em que guardava sua faca e liberava Keiko de seus braços. Três últimos tiros ecoaram no local, atingindo Hiei, Keiko e a mim ao mesmo tempo, fazendo com que também terminássemos aprisionados nas barreiras refletoras.
Uma vez prisioneiros, fomos transportados até um grande edifício em Kurushimi e direcionados até uma sala gélida e monocromática, onde duas celas vazias nos aguardavam. Nenhum de nós se atreveu a abrir a boca, nem mesmo quando Hiei, Yusuke, Kuwabara e eu fomos colocados em uma cela e Botan, Yukina e Keiko na outra.
Além de nós, na sala fria estavam apenas o líder do grupo que nos atacou e um demônio pequeno, de pele azul, olhos amarelos e corcunda que nos encarava com ar de superioridade pela situação em que nos encontrávamos. Era tão insignificante que um assopro seria o suficiente para acabar com ele.
— Kuwabara você tá bem? – Yusuke sussurrou para Kazuma, que estava sentado e cabisbaixo, ainda sangrando por conta do ferimento profundo que provocou em si mesmo. Ele apenas me olhou para cima e acenou com a cabeça positivamente, ainda que suas feições de dor deixassem claro que estava mentindo.
Abruptamente, a porta da sala se abriu revelando um outro youkai humanóide. Ele entrou em passos firmes no lugar, com uma expressão endurecida e, sem fazer cerimônias, questionou diretamente ao humano que nos capturou.
— Então, o que conseguiram hoje?
— Olá Ryou. Pegamos todo esse grupo aqui, tem uma humana entre eles. Estranho não? Uma humana andando com demônios?
— Estranho mesmo, mas...– ele respondeu estudando Keiko com o olhar, que por sua vez se esforçava para manter a calma –...ela não se parece com a descrição da komorebi que te dei.
— Mas pode ser que seja. Talvez esteja tentando juntar reforços, não podemos descartar a hipótese. Eles nos deram trabalho e demonstraram ser bem fortes. Aquele ali por pouco não quebra a barreira refletora. – O comandante apontou para Kuwabara, porém o youkai o ignorou, desviando sua atenção para as garotas presas na cela à nossa frente.
— Acho que hoje é o dia e sorte de Yamazaki, parece que conseguiram uma koorime.
— Tem certeza? O senhor Yamazaki ficará muito satisfeito se for verdade!
— No passado eu tive a infelicidade de conhecer essa espécie miserável. Eu tenho certeza que é uma koorime, reconheço esse cheiro a metros de distância. – Ele respondeu em tom de desprezo – Mas os demônios não me importam, isso é com Yamazaki, só quero saber da humana. Preciso descobrir se é a mulher certa. Ela resistiu ou lutou?
— Não...ela não fez nada.
— A humana que procuramos é uma lutadora, não se deixaria levar assim tão fácil. De qualquer forma, testaremos ela.
O pequeno demônio azul e corcunda que escutava atentamente a conversa dos dois, sorriu maliciosamente ao mesmo tempo em que um brilho malígno tomava conta de seu olhar. As últimas palavras do grande youkai ecoavam na minha mente como um boomerang que martelava incessantemente o meu cérebro. Apertei os punhos com força, apreensivo, imaginando o que faria se meu plano funcionasse às custas da vida de um de meus amigos.
KURAMA POF
KIARA POV
— Lucy eu soube do que ocorreu hoje no parque. Vocês estão bem? – O senhor Yamazaki me perguntou ofegante, tentando recuperar o fôlego. Cheio de preocupação, ele veio correndo de onde estava para assegurar com seus próprios olhos que a filha estava bem.
— Sim, Sayu não se machucou, está tudo bem.
— Haruo me falou que você venceu os dois demônios que a atacaram. – Assenti em concordância timidamente. Quando me encontrei com Haruo, ele ficou boquiaberto ao ver os demônios mortos no chão. Achou que tivesse sido obra minha e não parou de elogiar minhas habilidades. Obviamente eu não pude revelar a verdade sobre o que aconteceu, tampouco Sayu o fez, então eu apenas afirmei que fomos atacadas por dois youkais e que tinha os vencido facilmente. Curei meu ferimento antes que fosse notado por alguém e, assim que fiquei sozinha com Sayu, consegui convencê-la a não contar nada do que viu, porque seu pai apenas ficaria triste e preocupado.
Felizmente, a garota era muito colaborativa e me obedeceu. Assim, confirmei as palavras de Yamazaki e recebi os méritos por algo que não fiz, pronta para aproveitar a oportunidade e subir ainda mais no conceito do traficante. Em outra época eu ficaria com peso na consciência por isso, mas as confições mudaram drásticamente.
Ele suspirou aliviado, retomando o ar de seus pulmões.
— Ainda bem que vocês duas estão bem.
— Eu defenderia Sayu com a minha própria vida, senhor. – Ele sorriu emocionado sem imaginar a verdade. Se ele soubesse que deixei uma koorime escapar seria o meu fim. Por outro lado, se eu a tivesse entregado, ganharia muitos pontos com ele, mas como eu poderia fazer isso? Eles a torturariam até a morte.
— Se está tudo bem eu fico bem mais tranquilo. Vamos deixar Sayu segura aqui em casa pelo resto do dia e você pode descansar. Já trabalhou o bastante por hoje e deve estar cansada pela luta, não é? Eu vou voltar ao trabalho, meus homens capturaram uma humana suspeita andando com demônios, pode ser a tal da garota que procuramos.
Ele sorriu em êxtase de animação e eu retribui falsamente em resposta, pronta pra aproveitar a chance que me estava sendo dada.
— Posso ir junto? É que na verdade eu não estou cansada e posso ajudar a fazer com que ela confesse a verdade...– Sugeri tentando parecer natural, mas recuei em seguida ao ver seu olhar não muito convencido em minha direção. Droga! Eu precisava dizer o que esse homem queria ouvir. – Desculpa, senhor, não quis parecer intrometida. É que eu...eu achei que seria uma boa ideia se passássemos mais tempo juntos.
Dando em cima de alguém pra conseguir o que queria, eu desconhecia a mim mesma. Pelo menos pareceu funcionar e ele abriu um largo sorriso de felicidade.
— Então está bem. Será um prazer ter você me acompanhando hoje, Lucy.
Assim, saímos da mansão Yamazaki até o enorme prédio em que ele trabalhava, ou melhor, o local em que aprisionava seus preciosos demônios. Nesse tempo em que eu estou trabalhando para Mikio, pude vir aqui apenas algumas vezes e acabei descobrindo que um dos membros do grupo de youkais que dizimou o meu clã trabalha diretamente no local. Seu nome é Ryou e sua aparência é humana, embora a sua exagerada altura seja fora do comum.
Ryou me odeia desde o primeiro dia que coloquei os pés nesse lugar. Ele me vê como uma mulher intrometida e não vai nem um pouco com a minha cara. Tive sorte de conseguir enganá-lo, porque o cara não é burro. Acontece que ele não faz ideia do tempo real que trabalho para Yamazaki...se descobrisse com certeza desconfiaria de mim e faria uma investigação. No entanto, pesquisar sobre os funcionários do traficante não estava em seus planos. Sorte a minha.
Com convicção, podia dizer que a parte mais difícil de fingir ser Lucy era manter a mim mesma sob controle toda vez que o encontrava. Só de olhar para Ryou meus músculos começam a ficar tensos, como se meu corpo implorasse para que eu o matasse, satisfazendo o meu desejo de vingança. Obviamente eu não podia ser tão precipitada, porque seus colegas ainda teriam Kazuki como refém e eu acabaria voltando a estaca zero. Assim, sabendo que eu o encontraria, tudo que restava fazer era me preparar mentalmente para o encontro.
Isso era exatamente o que eu estava fazendo enquanto seguia cada passo de Yamazaki pelos corredores do edifício, em direção ao subsolo, onde os reféns eram aprisionados. Porém, diferente das outras vezes, ao entrar na sala em que Ryou se encontrava, por um segundo até esqueci de sua presença e tive que conter um grito de surpresa ao me deparar com dois rostos conhecidos atrás das celas: a koorime e o seu protetor! Como era possível, eu dei a chance de fugirem e mesmo assim foram pegos? Como podiam ser tão idiotas?!
Eles me fitavam atentamente, tão surpresos quanto eu. Instintivamente, prendi a respiração com medo de que um deles acabasse revelando nosso segredo. Procurei agir normalmente e fingi que não os conhecia, torcendo para que fizessem o mesmo. Disfarçando, olhei para os outros reféns, concluindo que se tratava de um grupo no mínimo curioso.
— O que ela faz aqui? – Perguntou Ryou a Yamazaki. Ao ouvir sua voz, pude sentir minha pulsação aumentando de raiva e tentei relaxar. – Ela não trabalha aqui, Yamazaki! Pensei ter deixado isso claro!
— Não precisa me lembrar, Ryou. Mas ela trabalha pra mim e está me acompanhando hoje. – Mikio interveio em minha defesa. – E então, o que temos aqui?
O líder das tropas de capura de youkais, vestindo o seu habitual traje de trabalho tratou de responder o seu chefe.
— Pegamos essa humana andando com esses demônios. Talvez seja a garota que procuramos. Temos que fazê-la falar. Além disso, tem essa outra aqui. – Ele apontou para a garota de cabelos esverdeados e olhos vermelhos cujo nome havia ficado na minha memória: Yukina. – Segundo Ryou, é uma koorime.
— Uma mulher do gelo? Tem certeza?! Se for verdade vou ganhar muito dinheiro! – Yamazaki gritou eufórico sem saber o perigo que poderia estar correndo. O demônio que protegia a garota hoje mais cedo tinha uma expresssão assustadora, como a de um assassino. Se por algum motivo ele conseguisse escapar da barreira refletora que o prendia, seria o fim de Mikio Yamazaki.
— Podemos confirmar ao mesmo tempo em que testamos a humana. – Ryou respondeu com indiferença. Ele não ligava pro lucro de Yamazaki, apenas queria capturar Kiara, ou melhor, me capturar.
— Eu posso fazer isso. Torturarei as garotas. – O pequeno youkai azulado e servente de Ryou, que até então nos observava calado, sugeriu ansioso conforme sondava as mulheres com malícia. Esse nojento não só torturaria as três, mas também se aproveitaria delas. As garotas humanas que acabavam vindo pra cá por vezes eram estupradas, mortas e servidas de alimento para os demônios que aqui trabalham. Eu não deveria me colocar em mais problemas por culpa dessa koorime de novo e nem por nenhuma humana, mas me senti mal estando ali sem fazer nada. Afinal, estavam confundindo a garota comigo.
— Não, eu quero torturá-las. – Num impulso, eu disse em tom de imposição, mesmo sabendo que poderia me meter em problemas.
— Como é que é? Já falei que você não trabalha aqui! – Ryou me respondeu irritado. Tentando ser natural, improvisei uma desculpa para justificar minha atitude.
— Esse idiota...– eu apontei para o youkai pequeno e corcunda –...não sabe a hora de parar. Se ela for mesmo uma koorime, é muito valiosa! Ele pode acabar matando ela se não tomar cuidado...sabe quanto tempo vai demorar pra conseguir outra?!
— Não vou matá-la, só me divertir um pouco...você não deveria se meter lindinha, a não ser que queira participar da festa também. – O servente se aproximou me olhando de cima a baixo e eu me afundei em náuseas. Esse inútil realmente me chamou de lindinha?
— Ryou, controle esse idiota, não vou permitir que ele fale assim com Lucy! – Yamazaki retrucou a insinuação furioso.
Ryou esboçou um sorriso nos lábios, se divertindo com a reação de Mikio. – Que seja! Se ela quer fazer isso, então que faça. Mas em troca quero que ela nunca mais volte aqui, não gosto que essa humana se meta em nossos assuntos. Essa será a última vez.
— Lucy é de extrema confiança e só está preocupada com o meu trabalho. Agora me diga...e esses os outros aí? Algum importante? – Yamazaki questionou se referindo aos homens que acompanhavam as garotas.
— Não sei quem são ou o que querem, vamos torturar as fêmeas primeiro e depois vemos o que faremos com eles.
— Certo, então solta elas logo pra que eu possa fazer isso. – Ordenei, desmanchando o sorriso no rosto do youkai. Ele semicerrou os olhos, me estudando com cuidado.
— Vê se faz direito. Não podemos perder nenhuma informação importante.
Eu o ignorei e em seguida, o líder das tropas de Yamazaki manuseou um tipo de controle que desfez as barreiras refletoras que aprisionavam as mulheres, deixando-as completamente livres para a tortura, inclusive para revidarem meus ataques. Por fim ele abriu a cela, as jogando para perto de mim.
Sem o mínimo cuidado, comecei a puxar cada uma das garotas com força e sem dó, as arrastando até a sala de tortura que ficava ao lado do cômodo onde estávamos. Ignorei completamente os xingamentos furtivos de seus amigos atrás de mim. Talvez um dia eles me agradecerão pelo que eu farei a seguir.
Curiosidade: O legal de trabalhar com o Kurama é que ele permite uma gama absurda de ataques a serem criados, até porque utiliza o Reino Vegetal a seu favor. No caso, a "Parasita Silenciosa" é uma planta que eu inventei, me baseando em um fungo que realmente existe (Cordyceps unilateralis), capaz de controlar o comportamento do seu hospedeiro (formigas, no caso) com a finalidade de propagar seus esporos e dar continuidade à sua espécie.
Enfim, espero que tenham curtido a leitura :)
