YUKINA POV
A porta se fechou em uma batida forte, deixando os gritos de protesto de Kazuma e Yusuke abafados pela separação. Sondei rapidamente o local para qual havíamos sido arrastadas em busca de uma saída, mas a sala era completamente fechada, escura e fria. Não havia nenhuma fresta sequer para tentar uma fuga. A pouca iluminação vinda de uma única lâmpada revelava paredes sujas de sangue seco e velho, proveniente das torturas anteriores.
Lucy não teve medo algum de ficar de costas para nós três enquanto terminava de trancar a porta, nos trancafiando por completo. Ao finalizar, se virou com uma expressão fria e cruel.
Um espasmo de medo percorreu o meu corpo ao ouvir tinido metálico quando Lucy desembainhou sua katana. No entanto, algo dentro de mim não queria acreditar que aquela humana iria nos torturar. Se ela era má, por que me salvou hoje mais cedo? Teve a oportunidade de me entregar ao seu chefe e não o fez.
Exibindo a lâmina afiada da espada, começou a caminhar em minha direção. Eu arregalei os olhos espantada e decidi tomar uma atitude antes que fosse tarde demais.
— Por favor, deixe a Keiko e a Botan em paz. Elas não são quem procuram! Você sabe que sou mesmo uma koorime, mas elas não tem valor pra vocês.
— O quê?! – Exclamaram Keiko e Botan ao mesmo tempo.
— Para com isso, Yukina! Você enlouqueceu? – Botan me repreendeu, mas eu a ignorei.
— Libertem elas, se fizerem isso não vou tentar fugir...serei colaborativa e produzirei todas as hiruisekis que desejarem. Por favor. — Implorei, enquanto Botan e Keiko me olhavam boquiabertas. Lucy, por outro lado, não demonstrou reação alguma e continuou avançando até mim.
Nada disso Yukina! – Keiko interveio, se colocando repentinamente na minha frente – Ela não é nem louca de tocar em você, eu não vou permitir! Se quiser tocar na Yukina, primeiro vai ter que passar por mim.
A garota não se intimidou e chegou tão perto a ponto de Keiko tentar golpeá-la com um tapa. Facilmente ela bloqueou o golpe, segurando-a pelo pulso e a empurrando com força para o lado. Por pouco Keiko não cai no chão, se mantendo de pé graças ao amparo de Botan.
— Pronto...passei. É melhor você aguardar a sua vez. – Lucy disse com deboche à Keiko e voltou a me encarar frente a frente. Respirei fundo, suando frio de medo, enquanto recuava em passos curtos. Ela me acompanhou até me encurralar completamente na parede do cubículo. Levantou a espada, mirando-a em mim e sussurrou baixo.
— Grite.
Achando ter escutado mal, olhei para Botan e Keiko em busca de ajuda. Mas elas também pareciam confusas com a ordem.
— O quê? Acho que não entendi...
— Quero que você grite. Dê um grito de medo. – Vendo que eu não a obedeceria, Lucy pressionou a lâmina da katana em meu peito, ordenando mais uma vez com firmeza – Eu mandei gritar, agora!
Seu tom rígido me alarmou, e assim, obedeci simulando um grito o mais alto que pude. Em seguida, ela segurou minha mão esquerda e percorreu toda a palma com a ponta da espada, abrindo um corte razoavelmente profundo. Senti a ferida arder e latejar, mas não disse nada. Já havia passado por coisas piores com Tarukane.
Pressionando o corte, conseguiu expelir uma boa quantidade de sangue. Assim, completamente concentrada, Lucy começou a pincelar seus dedos no líquido vermelho e espesso que escorria do ferimento, o espalhando em algumas partes do meu rosto. Meus músculos enrijecidos logo relaxaram ao entender o significado daquilo. Pretendia fingir uma tortura...?
— Espalhe seu sangue aonde eu mandar. Quanto menos meu cheiro estiver impregnado em você, mais convincente isso ficará.
Ignorando a dor, por conta própria pressionei a ferida, a forçando a liberar mais sangue.
— Pode abrir mais cortes se quiser. – Sugeri e Lucy me olhou surpresa – Vai ser mais convincente, não é?
Olhei mais uma vez para Keiko e Botan em busca de apoio e elas assentiram com a cabeça, indicando que estavam prontas para se submeterem às mesmas condições.
Lucy concordou e abriu mais alguns ferimentos superficiais no meu rosto, braços e pernas. Dando continuidade ao plano, fui espalhando o sangue aonde ela mandava, além de gritar e fingir choramingar cada vez que pedia. Em seguida, ela fez o mesmo procedimento com Keiko e Botan, que chiaram verdadeiramente de dor ao serem feridas com a katana.
A cada falso grito de medo que emitíamos, em resposta podíamos escutar protestos distantes dos garotos, mas os ignorávamos. Se nos prendessemos a isso, não conseguiríamos dar continuidade à farsa.
— Vamos sair, mas vocês precisam fingir estarem cansadas, machucadas, com dificuldade de andar...qualquer coisa. Não vai ser fácil convencê-los, mas vamos tentar. O grandalhão lá fora sabe que você é uma mulher do gelo...– Lucy disse a mim – ...não vamos conseguir enganá-lo. Será a minha palavra contra a dele pra conseguir convencer o outro, o meu chefe. Então vamos tentar fazer isso funcionar.
— Sim. – Concordamos as três juntas.
— Estão proibidas de tentar falar sobre isso para seus companheiros, deixem que eles pensem o pior. Não podemos correr o risco de que alguém saiba a verdade. Não perdoarei vocês se meu chefe descobrir. Se fizerem isso, serei obrigada a tornar essa tortura real. Entenderam?
— Sim. – Concordamos juntas mais uma vez.
— Ótimo. Só mais uma coisa, Yukina... – Estranhei ela me chamar pelo meu nome e a observei procurar algo entre suas roupas. Por fim, ela retirou de um bolso escondido um frasco com uma espécie de líquido arroxeado dentro. –...você vai precisar disso. Vou pingar um pouco em seus olhos. Eles ficarão avermelhados, como se você tivesse acabado de chorar.
Ela se aproximou com o frasco e eu recuei automaticamente.
— Mas o que tem aí?
— Por acaso isso importa? Prefere ser descoberta?! – Abaixei a cabeça envergonhada ao ser repreendida por Lucy. Sabia que ela estava certa. Aquele homem precisava ver que eu chorei e que nenhuma lágrima havia sido cristalizada. – Não se preocupa, não causará nenhum dano permanente.
Após me tranquilizar, ela abriu o frasco e respingou gotículas do líquido sobre meus olhos. No mesmo momento, senti que estava sendo corroída por ácido e cheguei até a imaginar que esse era o real conteúdo daquele vidrinho. Por um instante pensei que ficaria cega e precisei fazer uma força descomunal para controlar a mim mesma e não chorar de verdade.
Esfreguei os olhos com força na tentativa de me libertar da sensação ardente e, ao colocar minha visão em ordem, acabei me fixando sobre o antebraço exposto de Lucy. Por um tempo fiquei observando a pele lisa e perfeita. O corte que ela havia ganhado ao tentar me salvar hoje mais cedo não estava mais presente. Simplesmente desapareceu. Mas...como? Nenhum humano se recupera tão rápido, a não ser que...
Absorta em meus pensamentos, mal notei que Lucy já estava na porta, prestes a destrancá-la.
— Espera! – Ela se virou assustada com a minha ordem. – Você estava ferida no braço, não é? Como não está mais? O que você fez?
— Isso é irrelevante. – A resposta veio seca e mal humorada.
Dando o assunto por encerrado, Lucy não me deu tempo de questionar mais e destrancou a trava num único movimento brusco. Abriu a porta, queimando novamente meus olhos com a iluminação ofuscante vinda da outra sala. Ao receber a inesperada onda de luz, a ardência voltou mais forte que antes. Incapaz de enxergar, não me movi, mas senti uma mão firme me agarrar pelo braço e me puxar com força para fora dali.
Abri os olhos com dificuldade e, em meio à visão turva e oscilante, dei de cara com o rosto enfurecido de Kazuma. Ele e os outros nos encaravam estupefatos, silenciosos e cheios de fúria, enquanto Lucy nos empurrava para prosseguirmos. Ela impulsionou Keiko forte o suficiente para que se desequilibrasse e caísse de verdade no chão, gemendo de dor.
— Desgraçada! – Berrou Yusuke. – Lucy ignorou a ofensa e apenas assistiu Keiko se levantar com dificuldade.
— E então Lucy? Elas tem valor? – Perguntou o seu chefe.
— Não. Essas aí são humanas comuns e infelizmente essa não é uma koorime.
— O quê? Eu sinto cheiro de koorime vindo dela! – O demônio chamado Ryou se intrometeu na conversa, irritado. Como Lucy havia nos alertado, ele não acreditaria na mentira. Engoli em seco, amedrontada.
— Ela não é. Eu tenho certeza, porque nenhuma lágrima dela cristalizou.
— Confio mais nos meus instintos que em você, garota.
— Está me acusando de mentir? O que eu ganharia com isso? – Lucy perguntou ao youkai.
O humano chamado Yamazaki, que estava no meio dos dois, olhava confuso de um lado para outro sem saber o que fazer. Lucy revirou os olhos e tentou mais uma vez argumentar, dessa vez diretamente com o seu chefe. – Senhor, ela não é uma koorime. Eu fiz questão de conferir...mas se você quiser posso demonstrar agora na sua frente.
Eu nem tive tempo de pensar em reagir. Lucy me puxou por trás para perto de si, imobilizando o meu corpo com um braço e colocando sua espada colada ao meu pescoço com a mão livre. Senti a pressão do metal sobre minha pele, prestes a me cortar. Se eu me movesse um centímetro sequer, acabaria me ferindo.
— Larga ela ou eu te mato, sua infeliz! – Kazuma gritou de dentro da cela, enquanto se levantava num pulo só, pressionando o ferimento em seu tórax com a mão. Vê-lo assim me deixou agitada por dentro, pois poderia acabar se machucando ainda mais. Apertei os olhos apreensiva. Não queria e nem podia encarar nenhum dos meus amigos, apenas desejava que tudo estivesse acabado assim que eu voltasse a abrí-los.
— Não...não Lucy, isso não é necessário. Não é o tipo de coisa que eu goste de ver. Eu acredito em você. – O humano chamado Yamazaki respondeu, e por fim Lucy me largou. – Não tem porque Lucy estar mentindo, Ryou. Eu confio nela.
O youkai se calou ao lado do humano, nos encarando furioso. Parecia descrente com o que havia acabado de acontecer. Evitei olhá-lo diretamente nos olhos, pois temia que meu rosto acabasse confessando involuntariamente a verdade.
— Se são inúteis, posso ficar com elas? – O demônio pequeno e azul, que antes queria nos torturar, perguntou esperançoso.
— Não! – As vozes de Lucy e Ryou se misturaram ao mesmo tempo e eles se entreolharam surpresos. Aparentemente, era a primeira vez que concordavam em alguma coisa.
— Por acaso você descobriu o que humanos fazem aqui junto com youkais? – Ryou questionou mais uma vez à Lucy.
— Sim. Eles fazem o mesmo que você, estão atrás da tal komorebi. Ouviram falar da recompensa que estão dando. – Me assustei com a afirmação. Não tínhamos contado à Lucy que estávamos realmente atrás dessa humana.
— Isso não explica o porquê humanos e youkais andam juntos.
— O que tem de errado? Desde que a barreira entre os dois mundos foi desfeita, a relação entre humanos e youkais ficou amigável. Não sei porque você tá estranhando. Todos querem ser recompensados, por isso estão juntos.
— Estou começando a achar que eu mesmo deveria ter feito essa tortura – Desconfiado, o youkai se aproximou com ferocidade e desafiadoramente parou na nossa frente. Pela primeira vez Lucy não respondeu. Cínico, ele sorriu ao perceber o discreto semblante de preocupação que emergiu no rosto dela. – Quer saber? Acho que não é má ideia, faz tempo que não me divirto um pouco.
— Está insinuando mais uma vez que eu estou mentindo? – Lucy perguntou. A suavidade de sua voz havia desaparecido, junto com a auto-confiança que exibia minutos antes.
— Encare isso apenas como uma confirmação dos seus resultados. – Ele debochou e encarou fervoroso Keiko, Botan e eu. Estávamos perdidas. Lucy não poderia se opor a isso...não haveria ninguém para nos ajudar dessa vez!
— Nem pensa nisso, seu covarde nojento! Se quer tanto torturar alguém, por que não vem pra cima de mim?! – Yusuke gritou por trás das grades assim que o youkai avançou um passo em nossa direção. Ao seu lado, Kazuma, Kurama e Hiei se enfileiraram. As energias de cada um cresciam aterrorizantes, mesmo dentro das barreiras refletoras. O demônio resmungou, os encarando por fim.
— Até tinha me esquecido que estavam aí. Por acaso vocês tem alguma explicação diferente pra dar?
— Não. O que essa mulher disse é verdade. Procuramos uma humana chamada Kiara, porque ouvimos falar de uma recompensa. Sendo assim, parece que estamos do mesmo lado, não é? – Em um tom nada amigável, Kurama tentou convencê-lo. O demônio estreitou os olhos, analisando cada palavra.
— Não mesmo. Tem algo errado nessa história...não existe sinal de que Kiara esteja em Kurushimi, então por que vocês a estariam procurando justamente aqui? Quem são vocês na realidade e o que vieram fazer nessa cidade?! – Ninguém ousou responder – Já que se recusam em dizer a verdade, terei que conseguir as informações à força. Se fazem tanta questão, começarei a tortura por vocês quatro, o que acham?
Os garotos se colocaram em posição de ataque, no entanto, antes que Ryou tivesse a oportunidade de cumprir a ameaça, repentinamente, a sala foi preenchida por um som estridente e característico. Reconheci imediatamente o toque do telefone celular humano, mas me surpreendi com o fato do dono não ser o homem chamado Yamazaki e sim o próprio Ryou. De prontidão ele retirou o aparelho escondido de sua roupa e atendeu o chamado.
— Ryou falando. – Súbitamente, a sala parecia cheia e quente demais para respirar normalmente e eu pude sentir uma gota de suor escorrendo pelo meu rosto. Todos observávamos Ryou atentamente, mas era impossível identificar o conteúdo da sua conversa, mesmo para ouvidos youkais. Eu apenas podia escutar um zumbido do outro lado da linha, antes que a voz do demônio ressoasse mais uma vez – Por que eu? Por que não mandam o garoto komorebi pra lá? Tenho coisas pra fazer aqui.
Ao meu lado, uma energia diferente e quase imperceptível chamou a minha atenção. Pálida como um fantasma, Lucy estava cabisbaixa. Parecia estar passando mal. Por algum motivo eu senti uma enorme vontade de perguntar se estava bem, mas resisti ao impulso. Não faria sentido demonstrar compaixão por alguém que supostamente me torturou. Notando que eu a observava, a garota se recompôs, voltando rapidamente ao normal.
— Se é assim, vou precisar que Asuka venha aqui. Tenho um grupo suspeito que parece estar escondendo informações, preciso dela. – Ryou esperou a resposta de seu pedido por mais mais alguns segundos e revirou os olhos irritado. – Então que seja amanhã sem falta!
Por fim, desligou o aparelho e se dirigiu aos meninos dentro da cela. – Vocês tem sorte. Preciso resolver algumas coisas hoje, então nossa conversa terá que ficar pra amanhã.
Em seguida, tudo aconteceu muito rápido. Fomos mais uma vez atingidas pelos projéteis que formaram as barreiras refletoras e colocadas novamente dentro da cela em frente a dos meninos. Ryou saiu da sala, seguido de Yamazaki, seu comandante e por último Lucy. O único a ficar conosco foi o pequeno youkai corcunda que nos olhava penetrantemente de cima à baixo.
— Vocês estão bem?
A pergunta de Kurama assustou a nós três. O youkai azulado observava cada movimento que fazíamos, assim, desviei o olhar dos garotos e apenas assenti com a cabeça, lembrando da ameaçada que Lucy nos fez caso contássemos a verdade a eles.
"Se fizerem isso, serei obrigada a tornar essa tortura real"
Enquanto estivéssemos sendo vigiadas, não poderíamos dizer absolutamente nada.
YUKINA POF
KIARA POV
Tentando me recuperar de uma súbita falta de ar, saí em disparada para fora do prédio na frente de Ryou e Yamazaki. Precisava me afastar dos dois antes que perdesse o controle sobre mim mesma. Aquelas palavras do youkai não paravam de martelar em minha cabeça.
"Garoto komorebi".
Só podia ser Kazuki...quem mais seria? Isso significa que ele está vivo! Embora eu tivesse sustentado por todos esses meses a esperança de meu irmão estar bem, essa foi a primeira vez que recebi uma confirmação. No entanto, eu não estava esperando por isso e talvez tenha deixado escapar alguma reação suspeita. Aquela koorime notou, mas e os outros...? Ryou teria reparado?
— Lucy?
Pulei de susto e encarei Yamazaki atrás de mim. Nem havia notado que se aproximava.
— Você está bem? Parece estar um pouco...pálida.
— Eu acho que minha pressão caiu...mas já estou melhor! – Concluí a ideia rapidamente ao ver a preocupação em seu rosto.
— Tem certeza? Eu acho que você deveria ir pra casa e descansar, pode ter uma recaída.
— Não se preocupe senhor, tenho certeza que já estou bem.
Sendo assim... – Ele sorriu hesitante e vasculhou o nosso entorno com os olhos, tentando confirmar que estávamos a sós. Levemente corado, com cautela começou a sussurrar. –...lembra o jantar que você está me devendo? Eu consegui reservar um ótimo restaurante para hoje. Mas vou entender se preferir ficar descansando em casa.
O convite me pegou de surpresa e por alguns segundos apenas fiquei o encarando sem saber o que fazer, gesto que não passou despercebido pelo traficante.
— Se você achar que está muito em cima da hora podemos marcar outro dia...
— Não, hoje está perfeito! Fico muito feliz com o convite, senhor Yamazaki! – Respondi mais entusiasmada do que deveria, mas foi inevitável. Essa era a oportunidade que eu estava esperando para conseguir mais informações sobre Ryou e seu grupo. Talvez fosse minha única chance de descobrir onde Kazuki está.
Yamazaki reluziu em um sorriso como nunca eu havia visto antes e acabou me dispensando pelo resto do dia, com a desculpa de me dar tempo de descansar antes do encontro. Recusei a sua sugestão de me buscar em casa e garanti que o encontraria diretamente no restaurante. Por fim ele se despediu de mim, me dando o endereço do local. Se tratando de um restaurante refinado, precisei correr arás de roupa própria para a ocasião, de forma que quando voltei para o hotel já estava um pouco tarde e logo tive que começar a me arrumar.
Não acreditava que ia me submeter a essa situação. Era deprimente. Aonde eu estava com a cabeça?! A princípio o plano não me parecia tão difícil, a não ser pelo fato de eu não ter nenhuma experiência amorosa. Nunca havia me relacionado com ninguém, afinal era comprometida com Daisuke no Clã. Em uma ocasião cheia de erros, até cheguei a beijá-lo. Ao menos meu antigo noivo era um conhecido de longa data, diferente de Mikio Yamazaki...a simples ideia de encostar meus lábios nesse velho me embrulhava o estômago! Definitivamente eu não podia fazer isso, precisava dar um jeito que conseguir as informações que preciso sem permitir que ele me toque.
Coloquei o vestido preto que comprei e o caimento ficou perfeito. O tecido era realmente bonito e, apesar de simples, os detalhes em renda o deixavam sofisticado. Não tinha um decote muito grande e não era muito curto, mas marcava discretamente minhas curvas. O único problema é que me impossibilitava de andar com a minha katana e eu odiava profundamente estar desarmada.
Penteei o cabelo, o deixando completamente solto e passei um pouco de maquiagem. Fiz o básico, porque não entendia muito do assunto, finalizando com um batom vermelho vivo, que se destacou em contraste com o preto da minha roupa. Ao me olhar no espelho não vi a mim mesma, mas fiquei satisfeita com o resultado final.
No horário combinado, eu cheguei ao restaurante e fui direcionada até a mesa pela recepcionista, onde o desagradável senhor Yamazaki já me aguardava. Ele havia pensado em tudo. A mesa reservada que escolheu assegurava o máximo possível de privacidade para nós dois.
Ao perceber que eu me aproximava, seus olhos se arregalaram em luxúria, me causando um espasmo de pavor.
— Boa Noite Lucy! Se me permite dizer...está lindíssima hoje! – Ele segurou minha mão e a beijou, ao mesmo tempo que me olhava da cabeça aos pés.
— Muito obrigada, senhor. Você também está muito bem.
Como pude dizer isso?! Esse homem estava igual a todos os dias e o terno sofisticado não mudava de forma alguma o sentimento de repulsa que sentia por ele.
— Senhor? Vamos deixar essas formalidades de lado, Lucy. Pode me chamar de Mikio.
— Tudo bem então, Mikio.
Olhei o cardápio rapidamente, mas como não estava familiarizada com os pratos oferecidos, deixei que o próprio Yamazaki escolhesse o jantar.
— Aceita dividir saquê comigo?
— Claro. – Respondi de prontidão com a esperança de que o álcool o fizesse ficar mais solto com as palavras. Em seguida, ele fez os pedidos e o garçom nos deixou a sós.
— Fiquei muito feliz que você aceitou meu convite.
— Eu é que fiquei feliz por ter me convidado. Agradeço muito pela confiança que tem depositado em mim senhor...ou melhor, Mikio.
— Você merece. Tem demonstrado ser digna de toda a minha atenção. Gosto muito de você, Lucy.
Um calafrio percorreu todo o meu corpo, de forma que apenas consegui sorrir sem graça.
— Mas me conte mais sobre você. Tem um sotaque leve, de onde você disse que era mesmo?
O garçom nos interrompeu ao trazer a bebida e Mikio logo tratou de tomar um generoso gole. Eu experimentei apenas bebericando de leve, o suficiente para sentir a sensação doce, quente e reconfortante que podia me proporcionar. Era realmente bom.
— Sou de uma pequena aldeia no interior do Japão, por isso o leve sotaque interiorano. – Menti com facilidade.
Pelos minutos seguintes, Yamazaki continuou investigando a minha vida e eu fui mentindo o quanto pude, tomando cuidado para não cair em nenhuma contradição, até que chegasse a minha vez de investir.
— Mas e você, Mikio...nunca ouvi falar da sua esposa, nem mesmo Sayu fala dela. O que aconteceu com vocês?
Ao vê-lo franzindo a testa e me olhando entristecido, tive a certeza que toquei num assunto delicado.
— Minha esposa faleceu. Minha Naoko. – Ele se interrompeu para tomar mais saquê – Foi uma tragédia, ela estava...doente. Sofreu muito, até que um dia nos deixou. Era tão linda...
— Sinto muito, eu não sabia que ela havia falecido.
— Não tem problema, Lucy. Sayu nem se lembra dela e por isso não fala da mãe. Sabe...desde que você apareceu minha filha tem sido muito mais feliz. Obrigado por cuidar dela, você é como um anjo em nossas vidas.
— Imagina, é um prazer estar com Sayu. Me apeguei como se fosse a minha própria filha. Ela precisa de uma figura materna.
Emocionado, num gesto de gratidão Yamazaki colocou sua mão sobre a minha, a acariciando com movimentos circulares. Ele se aproximou em seguida, de tal forma que pude sentir nossas respirações se chocarem. Meu coração deu um pulo e no mesmo instante o garçom nos interrompeu mais uma vez ao chegar com o jantar, fazendo Mikio se afastar incomodado. Eu suspirei aliviada, expelindo com força todo o ar em meus pulmões.
Lentamente comecei a comer, tentando prolongar a conversa e impedir que Mikio me tocasse novamente. Afinal, ele não faria isso enquanto eu estivesse comendo, não é? Conversamos, rimos e jogamos conversa fora sobre todo tipo de assunto, até que não demorasse muito para que Yamazaki demonstrasse estar sob efeito do álcool. Já havia terminado seu jantar e tagarelava sem parar, impaciente.
— Lucy eu te acho incrível...em todos os possíveis sentidos da palavra! – Ele disse quase aos berros, pousando uma das mãos um pouco acima do meu joelho. Levei um susto e dei um pequeno pulo ao sentir o contato de sua pele com a minha. Eu estava enganada...ele me tocaria enquanto eu estivesse comendo!
Rapidamente retirei sua mãos da minha perna e a segurei com firmeza, tentando ser natural.
— Incrível é você. Tudo que você faz e a maneira como se preocupa com a Sayu, mas... – Lágrimas falsas e forçadas brotaram em meus olhos sem dificuldade.
— O que foi querida? – Ele se aproximou preocupado.
— É que...seu trabalho é tão perigoso. Tenho medo que te aconteça algo de ruim. Seu vínculo com o grupo de Ryou me deixa preocupada, escutei rumores de que não são confiáveis e podem te trair a qualquer momento. Se eles fizerem algo a você ou à Sayu, eu não vou suportar.
— É verdade. Eles são perigosos e traiçoeiros. Mas nós temos um acordo que beneficia ambos, não é conveniente que me matem.
— Seu papel é fundamental pra que eles consigam capturar humanos, eu sei disso. – Elogiei falsamente e ele sorriu inflando o peito, num sinal de que realmente se achava o máximo. – Mesmo assim eu fico apreensiva, você conhece o líder deles? – Sem aguentar mais aquela enrolação, fui direto ao ponto, mas Mikio não pareceu suspeitar das minhas reais intenções.
— Não, eu apenas recebo os subordinados dele. Nunca falei pessoalmente com ele e sinceramente eu nem quero, deve ser um demônio terrível! Sabe...esses youkais não são comuns, são todos estranhos e com habilidades perigosas.
— Você conhece as habilidades de cada um?
— De todos não, apenas conheço Ryou e Asuka.
— Quem é Asuka?
— Uma youkai que consegue manipular as mentes das pessoas.
— Manipular a mente? Como assim?
— Ela entra na sua mente eu acho...não sei explicar, não sei como funciona. Pelo visto amanhã ela vai ver a memória dos prisioneiros que pegamos hoje. Ryou acredita que eles estão escondendo alguma coisa. Mas não é a primeira vez que ela virá, já esteve aqui antes pra garantir que eu não estava traindo eles. – Yamazaki gargalhou – Eles a mandam pra cá quando querem averiguar que está tudo sob o controle.
Arregalei os olhos assustada. Se o que Mikio disse é verdade, ter essa essa youkai aqui seria muito perigoso. Eu até poderia evitar encontrá-la, mas Yamazaki não. Assim que ela vasculhar a sua mente, saberá que tivemos essa conversa e então tudo estará acabado! Pelo visto esse idiota nem percebeu sua indiscrição.
Súbitamente, um novo pensamento me assombrou. A lembrança do youkai urso que enfrentei há cinco meses voltou com força total em minha mente. Ele sobreviveu naquele dia! Provavelmente essa tal de Asuka já deve ter me visto na mente dele e, diferente dos outros, ela sabe exatamente como Kiara é! Assim que ela vir Lucy na mente de Yamazaki, vai descobrir toda a farsa.
— Você sabe o porque estão atrás dessa tal de Kiara?
— Não sei, não me contam esse tipo de coisa, Lucy. Mas deve ser muito importante, porque eles só querem saber dessa humana.
— E você sabe onde eles se escondem aqui no Ningenkai?
— Sei, eles tem um esconderijo próprio aqui no mundo dos homens, mas... – De repente, Yamazaki pareceu ter voltado à realidade e notou que as minhas perguntas estavam sendo invasivas demais. Aparentemente, todo o álcool que ele tomou não tinha sido suficiente para perder o total controle sobre si mesmo – ...pra que você quer saber isso?
— Eu só estava preocupada, desculpe...não quis me intrometer nos seus negócios. – Eu disse pousando minha mão sobre a dele, da mesma maneira que ele havia feito comigo antes do jantar. O gesto fez com que suas feições desconfiadas se aliviassem, sendo transformadas em uma harmoniosa combinação de felicidade e emoção.
— Ah querida não se preocupe, ficarei bem. Mas tem coisas que é melhor você nem saber, pra sua própria segurança, não quero que você se arrisque com esse assunto. Se eu te contasse essa informação eles matariam nós dois.
Eu assenti em concordância, escondendo minha frustração. Como podia ter perdido a informação mais importante? Precisei conter a vontade de estrangular Yamazaki ali mesmo.
Terminando o jantar, Mikio pediu a conta e decidiu me levar de volta para casa. Eu fingi morar em um apartamento e pedi que seu motorista parasse o carro perto do endereço cuja localidade ficava à uma quadra de distância do hotel. Prestes a abrir a porta e escapar dali, congelei ao sentir a mão de Yamazaki escorregando pelas minhas costas. Me virei para ele, encarando seu rosto de perto.
— Lucy, obrigado pela noite maravilhosa. Estou muito feliz por estar aqui com você.
— Eu é que agradeço pela companhia, Mikio.
Ele se aproximou mais e eu entendi o que viria a seguir. Até poderia ter aceitado seu beijo, se fosse continuar mantendo a farsa para arrancar mais informações sobre meus inimigos. No entanto, Lucy morreria hoje mesmo. Assim que eu saísse desse carro largaria a personagem que tenho vivido e voltaria a ser Kiara. Portanto, não valeria a pena o sacrifício de beijar Yamazaki sendo que eu nem consegui todas as informações que precisava. Ele não merecia nada de mim.
Fui mais rápida e o envolvi num abraço antes que seus lábios pudessem tocar os meus. Em seguida, apenas nos separei e observei sua expressão desapontada.
— Espero que possamos repetir mais vezes, Mikio.
Ele voltou a sorrir timidamente, franzindo o cenho sem entender minha atitude.
— Também espero Lucy. Boa noite.
Eu saí do carro e andei lentamente até o prédio, deixando para trás o confuso senhor Yamazaki, que certamente passaria a noite tentando entender o que fez de errado. Ao ver o veículo sumir no final da rua, eu desviei o caminho e fui para hotel.
Respirei fundo ao chegar no quarto barato que eu me hospedava. Lavei o rosto com água e sabonete comum, retirando sem muito sucesso a maquiagem que insistia em continuar impregnada na minha pele. Tirei o vestido que me incomodava e o joguei num canto qualquer do quarto, vestindo por fim roupas confortáveis. Desabei meu peso sobre a cama e, mesmo sabendo que não seria capaz de dormir essa noite, fechei os olhos tentando acalmar meus pensamentos.
Já havia aprendido que chorar e me desesperar não resolveria meus problemas. Eu precisava pensar num plano pra me livrar dessa situação e ao mesmo tempo descobrir onde está Kazuki.
Essa noite prometia ser mais longa do que eu havia planejado.
Vale lembrar alguns fatos dos capítulos anteriores:
Capítulo 8 (Disfarce): No final, Kiara acaba realmente ferida no antebraço ao tentar salvar Yukina. Foi o primeiro encontro delas.
Também no capítulo 8, logo no início Yamazaki havia convidado "Lucy" para um jantar. Ela recusa e fica devendo pra uma próxima vez.
