KIARA POV
Um grito estridente e abafado me fez despertar num sobressalto. Com gotas de suor escorrendo pelo rosto e o coração martelando de tão agitado, me ergui, observando o entorno escuro, aquecido e silencioso do cômodo em que estava. Por alguns segundos estranhei aquele lugar, sem nem ao menos ter ideia de como havia chegado ali. Porém, não demorou muito até que uma enxurrada de lembranças viesse à tona, desfazendo a confusão em que me encontrava.
"Ilha Nozomi, é aonde eles ficam. É aonde você vai encontrar seu irmão."
Essas foram as últimas palavras que eu havia escutado antes de desmaiar. Me lembrava perfeitamente da sensação de estar perdendo a consciência diante de todos aqueles desconhecidos. Obviamente não desejava demonstrar tal fraqueza e vulnerabilidade na frente deles, mas o que eu podia ter feito? Estava completamente exausta e havia perdido o controle do meu corpo. Desabar ali mesmo foi inevitável.
No entanto, não podia ignorar o fato de ainda estar viva. Se eles fossem meus inimigos, com certeza teriam se aproveitado da situação para me matar ou sabe-se lá mais o quê. Sendo assim, será que são realmente confiáveis? Ou ainda seria muito cedo para arriscar uma conclusão?
Sem ter uma resposta para meus próprios questionamentos, levantei da cama em que havia sido colocada para me deparar com um velho relógio eletrônico no móvel ao lado, indicando que eram 7:17 da manhã. Por alguns instantes encarei confusa aquele aparelho, sem orientação alguma para saber por quanto tempo eu havia dormido.
Ainda exausta, podia sentir cada músculo do meu corpo implorando para que eu repousasse novamente sobre o macio colchão em que haviam me deixado, porém, mesmo que desejasse muito fazer isso, sabia que minha mente não permitiria. Não depois do pesadelo que havia tido. Lembrava que, após uma sequência de cenas terríveis envolvendo Ryou torturando Kazuki, desesperada, gritei o mais alto que pude e acordei assustada com a lembrança da minha própria voz. Assim, preferindo não arriscar ter outro sonho como esse, decidi que voltar a dormir não seria uma opção.
— Ah, então você acordou? – alarmada, pulei de susto com a pergunta e me virei em direção à porta, onde aquela humana chamada Keiko estava parada.
Me analisando com cuidado, ela usava roupas leves e confortáveis e havia prendido os cabelos curtos, deixando seu rosto limpo completamente à mostra. Ao vê-la assim, meu estômago se revirou em náuseas ao me dar conta da discrepante diferença que havia entre nós duas. Imunda após enfrentar Ryou, a aparência estonteante da garota parecia destacar ainda mais o meu estado deplorável.
— Você desmaiou ontem, então te trouxemos pra esse quarto. Parece que estava bem cansada, porque dormiu direto até agora.
— Eu desmaiei ontem? Quer dizer que já se passou um dia inteiro? – inevitavelmente arquejei espantada ao perceber que, mesmo tendo descansado por tanto tempo, ainda assim não me sentia renovada.
— Sim. Mas pode ficar tranquila, todos já devem estar se aprontando pra ir atrás do seu irmão. Imagino que você esteja com fome, não é? Vou preparar algo pra comermos, então fique à vontade pra nos acompanhar se quiser...– ela sugeriu amigavelmente, recuando em passos lentos a fim de sair do quarto.
— Espera...– perturbada com a minha própria condição, respondi antes que a perdesse de vista. Surpresa, ela deu meia volta e me observou com curiosidade – Se não for um incômodo, será posso tomar banho em algum lugar antes de ir?
Em resposta, ela sorriu discretamente, assentindo em concordância. Em seguida, me conduziu a um dos banheiros do templo.
— Escuta Kiara, eu nem tive tempo de te agradecer por ter nos salvado na sala de tortura... – ela disse enquanto gentilmente me entregava uma muda de roupas limpas emprestada –...e depois também, quando nos libertou da prisão.
— Não precisa me agradecer.
— Claro que preciso! Se não fosse por você, as meninas e eu seríamos... – ao imaginar as possibilidades, apreensiva ela interrompeu a si mesma –...nem quero pensar no que teria acontecido com a gente. Ah...e me desculpa por ter tentado te bater! Eu estava assustada e me precipitei. Naquela hora, achei que você fosse fazer mal à Yukina (1).
Sem ter ideia ao que ela estava se referindo, precisei de alguns segundos para que minha mente resgatasse por completo a imagem de Keiko tentando me esbofetear para proteger a koorime da tortura que Yamazaki havia me encarregado de submetê-las. Sem entender como a garota podia ser capaz de guardar peso na consciência por uma atitude de defesa como aquela, reprimi um sorriso com a recordação.
— Esquece isso, eu nem me lembrava mais. Além disso, no seu lugar teria feito exatamente o mesmo. Era de se esperar que você quisesse defender a si mesma e suas amigas, então não precisa se sentir mal por isso – aliviada, ela murchou os ombros como se um enorme peso tivesse sido retirado de suas costas e cruzou os braços envolvendo a si mesma num abraço.
— É...acho que tem razão.
— Posso te perguntar uma coisa, Keiko?
— C-claro... – com o olhar firme sobre mim, ela respondeu hesitante sem esconder a desconfiança em seu tom de voz.
— Por que você anda com eles? Nunca tinha visto uma humana viver cercada por demônios antes... – comentei intrigada enquanto a observava franzir o cenho incomodada com a pergunta.
— Pode não fazer sentido pra você, mas eles são meus amigos. Eu não sei como eram os costumes no seu clã, mas eu não faço distinção entre humanos e não humanos. Pra mim, eles são só pessoas. Não existe diferença. – tendo o mesmo efeito de um soco no estômago, suas palavras me tiraram o fôlego, ainda que sem intenção. Ao notar minha reação, ela abafou um riso antes de continuar – Além disso, eu sou casada com um deles.
— Casada?! – achei ter escutado mal e, de súbito, retruquei indiscretamente sem conseguir evitar o espanto pela simplicidade com que a palavra havia saído de sua boca.
— Sim, Yusuke e eu nos casamos. É uma longa história, mas nem tão complicada quanto você deve estar imaginando! Se quiser, te conto durante o café da manhã, o que acha? – entusiasmada, ela piscou sugestivamente e fechou a porta do banheiro antes mesmo que eu tivesse a chance de responder, me deixando completamente sozinha e desnorteada após aquela absurda revelação.
Ao me recuperar daquele estado estupefato, sem tempo a perder liguei chuveiro e me infiltrei na água quente. Em seguida, com uma ferocidade além da necessária, esfreguei o rosto a fim de retirar os últimos resquícios do sangue seco de Ryou que haviam espirrado na minha pele no momento em que dei fim à sua vida (2). Tentando me desfazer dessa desagradável lembrança, fechei os olhos e me deixei levar pela profunda sensação de relaxamento que aquele banho reconfortante me proporcionava. No entanto, incapaz de esvaziar a minha mente devido à incômoda conversa com Keiko, fui teletransportada de volta ao passado através das minhas memórias.
Akinori, meu avô paterno e líder do Clã Komorebi, foi o responsável por me ensinar tudo sobre o Makai e seus habitantes. Qualquer pessoa vinda de fora poderia supor que, como comandante de um povo incumbido de eliminar youkais, ele odiaria os demônios mais do que ninguém, porém, isso estava longe de ser verdade. Na realidade, ainda recordava com clareza de sua voz me dizendo que nem todos os youkais eram ruins, muito pelo contrário! Segundo ele, alguns seres humanos poderiam ser muito mais cruéis do que qualquer outro ser vivo do planeta. Portanto, graças ao meu avô nunca alimentei nenhum sentimento de ódio em relação aos youkais e apenas enfrentava aqueles que representavam ameaças para a vida de humanos inocentes.
Entretanto, desde o ataque que sofremos, mudei radicalmente minha forma de pensar e agir e injustamente passei a olhar o Makai com ódio e rancor, mesmo sabendo que isso seria errado. Após aquele dia, automaticamente todos os youkais se tornaram meus inimigos. Todos eles deveriam ser eliminados.
Exausta, suspirei profundamente ao analisar a atual situação em que me encontrava. Quem diria que, depois de tanto tempo guardando raiva dos demônios de um modo geral, eu acabaria me aliando a um grupo constituído por alguns deles? Talvez meu avô estivesse realmente certo em não repudiá-los e quiçá essa fosse a oportunidade perfeita para repensar minhas recentes atitudes. Assim, ao terminar o banho, decidida a tentar ser menos grossa com os anfitriões da casa, saí em disparada à procura de todos e, seguindo o som das vozes distantes que se misturavam no ambiente, fui guiada diretamente para a cozinha. Ali, conversando tranquilamente alheios à minha presença, todos estavam reunidos.
Na tentativa de não causar alarde, timidamente avancei dois míseros passos em direção a eles, de maneira que, ao perceberem minha aproximação, abruptamente cessaram o falatório. Cercada por tantos olhares curiosos, encabulada, os encarei de volta sem saber ao certo como agir.
— Bom dia Kiara, se sente melhor? – Koenma perguntou a mim amigavelmente.
— Sim. – respondi sem pensar duas vezes, ainda que não estivesse sendo completamente sincera.
— Tem certeza? – Yusuke questionou em meio a uma careta, analisando cada linha de expressão do meu rosto – Olha garota, considerando essa sua cara de acabada, acho que você tá mentindo...
— Yusuke! – Keiko o repreendeu lhe desferindo um forte tapa no braço – Isso são modos de se falar? Que grosseria!
— Yusuke não tem jeito! Ela já não gosta da gente e ele ainda fica falando essas bobagens. É um idiota mesmo!
— Olha quem fala, Kuwabara! Não fui eu que quase morri por conta da imbecilidade de me atacar com meu próprio golpe!
— Ora seu...
Atônita e sem reação, observei uma discussão acalorada se iniciar entre os dois companheiros que, em meio a uma série de xingamentos lançados de um lado para o outro, desfizeram num piscar de olhos o ambiente harmonioso que nos encontrávamos.
— Parem com isso! Vocês dois não tem modos, não?! Parecem duas crianças! – Keiko exclamou irritada dando um fim à confusão que ambos haviam criado – Kiara, não dê ouvidos pro Yusuke. Ele é um grosso mesmo...
— Tudo bem, esqueçam isso. – tendo total consciência de que Yusuke estava certo, respondi dando de ombros. Apesar de saber que minha aparência não estava em seus melhores dias, me faltava tempo e disposição para me preocupar com isso.
— Viram? Todo esse alvoroço à toa...ela nem se incomodou com o que eu disse! – Yusuke vociferou tomando o último gole de café da xícara que estava em sua mão, bruscamente repousando-a em seguida sobre a mesa central da cozinha, enquanto os outros ainda lhe lançavam olhares de reprovação.
— Bom, aproveitando que todos estão aqui...– retomei a palavra, fazendo com eles dirigissem suas atenções à mim – ...antes de irmos pra Nozomi, eu gostaria de contar a vocês algumas coisas sobre os sequestradores do meu irmão.
— Contar o quê? Se me lembro bem, ontem você disse que não sabia nem o porquê aqueles youkais estavam atrás de você – Yusuke ponderou analítico.
— E eu não menti, se é o que está pensando. Eu realmente não consegui descobrir nada sobre eles enquanto estive trabalhando para Yamazaki, mas enfrentei o líder do grupo no dia em que meus companheiros foram assassinados. É pouca informação, mas devo compartilhá-la com vocês, até porque, é bom que tenham pelo menos uma noção de onde estão se metendo.
Mudos e impassíveis, eles me observaram por alguns instantes em meio a um silêncio constrangedoramente incômodo que fez com que meu coração acelerasse num ritmo descompassado e desconfortável.
— Ah nesse caso, por que não nos conta tudo enquanto come alguma coisa? Você deve estar faminta e também não pode sair por aí de estômago vazio, né? – com uma animação matinal que eu nunca havia visto antes, a estranha e sorridente garota chamada Botan surgiu por trás de mim quebrando o silêncio. Por fim, me empurrou levemente pelas costas a fim de me conduzir a um assento vago na mesa e, em seguida, se ajeitou ao meu lado para me servir café, cujo aroma fresco e agradável indicava ter sido preparado recentemente.
Criando coragem para trazer à tona as memórias daquele fatídico dia que constantemente me atormentava na forma de pesadelos, respirei fundo e tomei um gole da calorosa bebida em busca de conforto. Na sequência, resumi em detalhes os fatos mais importantes acerca do extermínio do meu clã, incluindo as descrições dos youkais que havia enfrentado.
— Então, um deles pode mudar de aparência? – questionou Koenma após me ouvir com atenção.
— Não só de aparência, mas eu não consegui perceber a aura dele de youkai. É como se ele conseguisse imitar perfeitamente um ser humano. Isso é o que mais me preocupa, porque ele pode estar em qualquer lugar sem que nós saibamos. Teremos que ter muito cuidado. – quietos, eles assentiram em concordância, me encorajando a continuar – Já o líder do grupo...duvido muito que esteja por lá. Aliás, acho que nem deve estar aqui no Mundo dos Humanos, porque a presença dele é tão gritante que seria possível senti-la de qualquer lugar. Se ele estivesse aqui, eu com certeza saberia.
— Ah calma aí...não acha que está sendo um pouco exagerada? – o humano alto e ruivo, cujo nome eu ainda desconhecia, me perguntou descrente.
— Nunca falei tão sério. Ele é um tipo diferente de youkai, não é como nenhum outro que eu já conheci.
— Como assim "diferente"? – Yusuke perguntou.
— Eu não sei...é difícil de explicar. Sinceramente, eu nem sei dizer se ele era realmente um demônio. Pra mim, não parecia nem humano, nem youkai.
Desconfiados, eles se entreolharam como se minhas palavras fossem insanas e, já esperando por aquela reação, suspirei cansada sem a mínima perspectiva de conseguir convencê-los do contrário.
— E o que poderia ser, senão humano ou youkai? – Yusuke perguntou pensativo recostando-se na cadeira e semicerrando os olhos em direção a Koenma, que hesitante e tenso, desviou o olhar para suas próprias mãos, enfaixadas – aparentemente às pressas – com ataduras.
— Ele está no Makai – ao perceber que ninguém teria uma resposta para Yusuke, afastado de nós e observando o entorno do templo pela janela, Hiei disse mudando o assunto, antes de se virar em minha direção e me fitar com o mesmo ar de desprezo da primeira vez que nos vimos.
— Como tem certeza? – perguntei de maneira quase inaudível.
— Você disse que se ele estivesse aqui no Ningenkai seria sentido de qualquer lugar, não é? É exatamente isso que acontece no Makai. De qualquer lugar é possível sentir uma estranha energia maligna que a cada dia parece se fortalecer mais. Essa energia surgiu há meses atrás e desde então começou a tomar uma proporção inimaginável, até cobrir cada canto do Makai. Eu não tinha ideia do que se tratava, mas agora está claro. Pelo que você contou, só pode ser o seu inimigo.
Pensativa, o observei atônita, desejando por um momento ser capaz de refazer a barreira entre os dois mundos e aprisionar aquele monstro no Makai pelo resto da eternidade.
— Kiara, você disse que os militares da aldeia começaram a atacar você e seus amigos sem motivo algum? – o garoto de longos cabelos ruivos perguntou, me despertando do estupor de meus pensamentos.
— Ah...sim. Mas quando voltei pra aldeia Kimura pra procurar meu irmão, entendi o que de fato aconteceu. – respondi enquanto retirava do bolso da calça um pedaço de pergaminho envelhecido, o entregando a ele em seguida. – Lá encontrei alguns ofudas como esse presos nos corpos dos homens que nos atacaram (3). Andei pesquisando e descobri que foi assim que os militares estavam sendo controlados, porque a escrita contida neles é um antigo encantamento de controle mental.
Ele observou o papel com cuidado, repassando-o em seguida para os outros à sua volta, até que, depois de rodar a mesa inteira, o amuleto retornasse para as minhas mãos. Assim, sem mais nenhuma informação importante para acrescentar, voltei a falar a fim de encerrar a conversa.
— Bom, era isso que eu precisava contar a vocês. Como eu disse, não é muita coisa, mas pode ser útil.
— Quer saber? – Yusuke retrucou, batendo o punho com força na mesa e consequentemente assustando Keiko ao seu lado. – Depois de ouvir toda essa história, eu tô é maluco pra encontrar esses caras, em especial o líder. Vamos ver se ele realmente é tudo isso que você tá dizendo – ele sorriu de maneira desafiadora, evidentemente animado com a ideia.
— Hm. Duvido muito que você manteria essa postura confiante se estivesse frente a frente com ele.
— Duvida? Você não me conhece, ou melhor...não conhece nenhum de nós – ele arqueou as sobrancelhas sugestivamente, cruzando os braços em seguida ao congelar cada músculo do rosto em um semblante impassível – Não nos subestime, senão vai acabar tendo uma surpresa.
Sem intenções de rebater suas palavras e entrar em uma discussão, dei de ombros outra vez, tomando mais um gole do café a fim de me esquivar do assunto.
— Ah falando em conhecer... – Botan exclamou pensativa –...agora que percebi que estamos aqui conversando há um tempão sem nem ao menos termos nos apresentado! Como você desmaiou ontem, nem nos deu a chance.
— Tem razão, mas de uma forma ou de outra, acabei ouvindo o nome de quase todos vocês. Na verdade, só falta saber o de vocês dois – respondi me dirigindo aos dois ruivos sentados à minha frente.
— Eu me chamo Kazuma Kuwabara. – o humano disse inflando o peito cheio de orgulho, enquanto servia a si próprio mais um pouco do café, sem perceber que deixava escapar alguns respingos sobre a mesa.
— E eu sou Kurama Youko. – o outro se apresentou em seguida.
Estranhando a absurda familiaridade com que aquele último nome soou aos meus ouvidos, permaneci calada por alguns instantes tentando recordar de onde o conhecia, até que, num reflexo recuei assustada inevitavelmente arregalando os olhos.
— Espera...Kurama Youko?! Você não tá querendo dizer que é aquele lendário demônio Kurama Youko, né?
— Já ouviu falar de mim?
— Sim! Quando era criança, escutava muitas histórias sobre diversos youkais. Contos sobre você transcenderam várias gerações no meu clã, mas alguns deles são tão absurdos que chegamos a imaginar que você fosse uma espécie de folclore inventado pelos nossos antepassados. – por alguns segundos ele me fitou com atenção, até que, tentando esconder o riso, ergueu timidamente o canto dos lábios antes de responder.
— Eu não sou um folclore.
Ainda sem assimilar o fato de estar diante de um demônio cuja crueldade havia se tornado uma lenda para nós komorebis, visivelmente desconfortável com a situação, me mantive tensa e calada sem saber ao certo o que pensar ou como agir.
— Algum problema? – ele perguntou ao perceber minha mudança de comportamento.
— Não, é que...– estudei bem as palavras antes de concluir o raciocínio –...eu nunca imaginaria que um demônio milenar estaria vivendo no Ningenkai e que ele aparentaria ser tão...humano. Desculpa, mas não era essa a imagem que eu tinha construído de você. – resignado, ele balançou a cabeça em concordância como se já esperasse por isso.
— Apesar de ser Kurama Youko, vivo no Ningenkai com a identidade humana de Shuuichi Minamino.
Confusa, permaneci em silêncio enquanto ele me explicava como e porquê sua aparência humana nem ao menos era a verdadeira. Posteriormente, ao concluir o café da manhã, saí sozinha do templo a fim de buscar um pouco do ar fresco que circulava na mata ao redor da casa, deixando todos para trás. Por algum motivo, senti uma repentina e sufocante necessidade de deixá-los à vontade, até porque havíamos decidido que somente os garotos e eu iríamos seguir nessa viagem, portanto, muito provavelmente eles se despediriam das meninas e de Koenma que, devido a complicações no Reikai, não poderia nos acompanhar. Dessa forma, temendo que minha presença fosse ser inconveniente, decidi me retirar de lá o mais depressa possível.
Caminhando em direção à floresta, bruscamente cessei os passos ao perceber que um par de olhos negros e brilhantes me observava à uma certa distância. Arfante, me virei para encará-los, terminando por ficar cara a cara com a enorme ave azul nomeada por todos de Piu. Assim como eu, ele aguardava aos demais para partimos em direção a Nozomi, no entanto, cansado de esperar, grunhiu sonolento e se aninhou sobre uma parte sombreada do relevo, encoberta por enormes árvores que impediam a passagem dos raios solares.
O analisando com calma, não fui capaz de reviver o medo que havia sentido quando a vi aterrissar em Kuroshimi, muito pelo contrário, logo pude notar que se tratava de uma criatura dócil e pacífica. Assim, criando coragem, me aproximei ajoelhando ao seu lado e acariciei as penugens azuis e macias em seu tronco. Tranquilo, ele pareceu apreciar o carinho, fechando os olhos para entrar num profundo estado de relaxamento. Motivada a tomar o mesmo rumo que ele, recostei em seu corpo e aproveitei os minutos seguintes para esvaziar um pouco a mente ao lado da minha mais nova companhia.
Porém, a paz e o silêncio que nos cercavam se desmancharam no instante em que passos apressados sobre a grama fofa do solo aproximaram-se de nós, somados a uma discussão agitada que dissipou a tranquilidade que a floresta me proporcionava.
— Pare de me seguir, Yukina. Eu já disse que não! – seguido pela koorime, Hiei vinha em direção a nós, visivelmente incomodado com a presença da garota e completamente alheio à minha. Sem saber o que fazer, permaneci imóvel e oculta atrás de Piu a fim de não ser descoberta.
— Por favor, pense melhor. Eu tenho desenvolvido muito a minha capacidade de cura. Sei que realmente posso ajudá-los caso acabem se ferindo, assim como aconteceu com o Kazuma nessa última vez.
— Hm, não nos julgue com base naquele idiota...nem todos são tão descuidados quanto ele. Não precisaremos de você.
— Mas e se alguém acabar ferido e...
— Já chega, Yukina. Você precisa entender que só vai nos atrapalhar.
Sem me manifestar, observei a garota mordiscar o lábio inferior chateada com o comentário do youkai, me causando um profundo sentimento de pena. No entanto, por mais rudes que aquelas palavras tivessem sido, ele estava certo. A presença de Yukina seria um transtorno, tendo em vista que ela é um alvo fácil e teríamos nos preocupar com sua segurança o tempo inteiro. Mesmo assim, ao vê-la fragilizada daquela maneira, não pude me conter. Decidida a dar um fim à sua apreensão, levantei de onde estava, assustando a ambos com uma aparição repentina.
— Não se preocupa Yukina...– me aproximei lentamente caminhando em direção a eles – ...pode deixar que eu vou estar lá pra curá-los se for necessário.
Surpresa, ela me fitou sem resposta, enquanto Hiei me encarava aborrecido.
— Por acaso você sempre teve esse péssimo costume de seguir os outros pra escutar as conversas que não te dizem respeito? – ele me perguntou mal-humorado.
— O quê?! Eu não segui ninguém. Caso não tenha notado, eu estava aqui antes de vocês chegarem! Além disso, não me interessa ouvir nada do que estão dizendo.
— Ah não? Então, por que estava escondendo sua presença dessa forma?
— Eu não estava escondendo...não de propósito! Já me acostumei a ficar nesse estado. Acontece que passei meses seguidos fazendo isso pra não ser descoberta por Ryou e hoje já se tornou um hábito. E quer saber? Não te devo explicações! – retruquei indignada, enquanto ele mantinha o olhar desconfiado sobre mim. – O fato é que, por acaso, acabei escutando o que vocês estavam dizendo e quis tranquilizar a Yukina.
— Me tranquilizar? – ela perguntou tentando entender minhas intenções.
— Sim. Eu ouvi quando você disse que sua presença será útil caso aconteça alguma coisa a qualquer um de nós. Diz isso porque tem habilidade de cura, certo? Pois saiba que eu também tenho e, por isso, não faz sentido que você vá. Se alguém precisar, eu vou estar lá.
— Ah, isso é verdade? – ela perguntou surpresa.
— Sim.
Analítico, Hiei semicerrou os olhos em minha direção de maneira desafiadora. Pela expressão que fez, obviamente já havia notado que eu estava mentindo. Sabia que eu não os ajudaria caso precisassem...não porque eu não quisesse, mas porque não havia recuperado energia suficiente para isso. No atual momento, seria incapaz de ajudar a mim mesma. No entanto, considerando o quão desesperado estava em tentar afastar Yukina da viagem, não ousaria revelar a verdade para a koorime. Assim, rapidamente retomou a palavra, se aproveitando para compactuar com a mentira a seu favor.
— Acho que isso encerra nossa discussão, Yukina. – ele disse à ela antes de, num movimento brusco e veloz, desaparecer do nosso campo de visão, deixando-nos a sós.
— Tem certeza que vai mesmo poder ajudá-los? – receosa e incerta, ela me perguntou mais uma vez.
— Absoluta.
— Obrigada...acho que ficarei mais tranquila assim. – aliviada, ela desfez o semblante preocupado e sorriu sem nem ao menos desconfiar da mentira. – Ah! Eu já ia me esquecendo! Isso é seu? – a observei remexer nos bolsos da calça retirando de dentro de um deles uma corrente prateada, sendo que, anexado à ela, um pingente familiar estava pendurado. Assustada, automaticamente levei as mãos ao meu pescoço, confirmando a ausência de meu colar.
— Sim!
— Eu encontrei no banheiro há alguns minutos atrás. Acho que você esqueceu lá. – ela estendeu a mão o devolvendo a mim. Indignada por ser tão descuidada, o pendurei rapidamente no pescoço, vociferando mentalmente alguns xingamentos contra mim mesma.
— Obrigada por guardá-lo.
— De nada. – ela sorriu fixando o olhar no pingente – Ele é bem bonito, significa alguma coisa em especial?
— Sim. É o símbolo dos lutadores do meu clã...ou melhor, era. Todos costumavam carregar um consigo, porque teoricamente significa "proteção contra os inimigos", mas acho que isso não quer dizer muito, afinal, agora todos estão mortos.
— Mas você continua viva e ainda está carregando o seu, não é? Talvez ele não seja tão falho assim.
— Eu continuo com ele, porque foi um presente da minha mãe. É só pelo valor sentimental e não por acreditar superstições. – respondi por fim, evitando prolongar aquela conversa um tanto invasiva.
— Ah entendi. – ela disse em voz baixa e tristonha conforme gentilmente acariciava Piu – Escuta Kiara, sobre a sua situação...eu gostaria que soubesse que eu posso compreender tudo que está sentindo. Por isso, se houver algo que eu possa fazer por você, por favor, não hesite em me chamar. Estou aqui para ajudar no que for necessário.
Tendo o efeito oposto ao desejado, incomodada com o tom de piedade que havia por trás daquelas palavras, respondi automaticamente em seguida com uma rispidez desnecessária, fazendo com que a koorime instantaneamente desfizesse o sorriso amigável que estampava seu rosto.
— Não Yukina, você não pode compreender nada! Como poderia? Sua vida é bem diferente da minha.
— É verdade. – sem graça, ela desviou o olhar deprimido para o chão – Mas eu sei como é ter uma única pessoa importante na vida e não saber aonde ela está. Eu passei por algo semelhante.
— Do que está falando?
— Também tenho um irmão e por muito tempo fiquei separada dele.
— Um irmão?! Impossível! Até onde sei, mulheres do gelo não procriam da maneira convencional. Vocês fazem partenogênese (4).
— Sim, isso também é verdade. Mas quando uma koorime se relaciona com um macho de outra raça, ela tem um filho. Quero dizer...obrigatoriamente um homem. Isso aconteceu com a minha mãe e ela teve gêmeos: meu irmão e eu.
Atordoada com revelação, eu me vi sem respostas diante daqueles olhos vermelhos vacilantes e cheios de mágoa. Então, respirei fundo e engoli em seco, limpando a garganta em seguida a fim saciar minha curiosidade.
— E o que aconteceu? Digo...depois que vocês nasceram?
— Minha mãe morreu e as mulheres do gelo abandonaram meu irmão, o separando de mim. Eu passei a procurá-lo desde o momento em que soube da sua existência, mas só fui encontrá-lo há pouco tempo atrás.
— Que horror, Yukina...eu não tinha ideia de que isso era possível. Me desculpa, às vezes eu sou tão... – envergonhada, fui incapaz de encará-la diretamente devido a forma como a havia tratado. No entanto, sem nenhum sinal de chateação, ela respondeu em seguida.
— Não tem problema, não precisa se justificar. Só queria que você soubesse que, embora as meninas e eu não possamos ir atrás do seu irmão junto com vocês, estaremos aqui caso precise conversar. E que também tenho certeza que logo seu irmão estará com a gente. Se eu consegui encontrar o meu, você também vai. Eu acredito nisso!
Em agradecimento ao seu apoio, não fui capaz de proferir uma única palavra, entretanto, pela primeira vez no dia me permiti sorrir em resposta, esperançosa após ouvir seu discurso tão otimista. Recíproca, ela sorriu docemente de volta, feliz por provocar uma mudança em meu semblante fechado e severo. Poucos instantes depois, mais ansiosa do que nunca para reencontrar Kazuki, deixei Yukina para trás, a fim de me juntar a Yusuke, Hiei, Kurama e Kuwabara que já se colocavam sobre o dorso de Piu, prontos para encarar a viagem até Nozomi.
— Tenham cuidado. Se algo der errado, voltem imediatamente! – Koenma gritou do solo, enquanto nos afastávamos ao levantar vôo.
— Não se preocupa, Koenma! – Yusuke retrucou antes de me lançar um olhar confiante – Devemos voltar logo, só que com uma pessoa a mais a bordo!
(1) – Fato que aconteceu no capítulo 10, caso alguém queira rever.
(2) – Fato que aconteceu no capítulo 12.
(3) – Amuleto japonês feito em tiras de papel, pano ou madeira, cuja finalidade varia conforme o encantamento escrito nele. Ela encontrou no capítulo 4
(4) Partenogênese é um tipo de reprodução assexuada em que se gera uma nova vida a partir de um óvulo não fecundado por um espermatozóide (ou seja, sem a participação de um indivíduo do sexo masculino).
