YUSUKE POV
A princípio, Nozomi parecia ser uma ilha como qualquer outra. A vista aérea do local revelou que apenas uma porção pequena da vegetação havia sido substituída pela urbanização da cidade, já a restante permanecia intacta na sua forma natural. Na tentativa de não sermos descobertos, aterrissamos em meio à mata no topo de uma montanha, longe da área urbana e das pessoas que ali viviam. A partir daquele ponto, caminhamos sem rumo ou planejamento, procurando por algo que nem nós mesmos saberíamos dizer o que era.
É claro que o nosso objetivo era o resgate do irmão de Kiara, mas como deveríamos chegar até ele? Encontrando pistas sobre o seu paradeiro ou procurando diretamente pelos sequestradores? Sem dúvidas, a segunda opção me parecia muito mais atraente, no entanto, estávamos longe de alcançá-la. Até o momento, não havíamos sido capazes de detectar a presença de youkai algum e tudo ali parecia absolutamente normal! Assim, com a insatisfação estampada em meu rosto, em estado letárgico passei a seguir os demais, que apesar de mascararem bem as suas frustrações, também já demonstravam alguns sinais de impaciência.
— Kiara, tem uma coisa que eu ainda não entendi... – Kuwabara, que aparentemente estava tão entediado quanto eu, resmungou dando fim ao silêncio que pairava há horas entre nós. Surpresa ao ouvir seu nome tão repentinamente, a garota se voltou para ele, o encorajando a continuar – Esse lance de você ser uma humana com dois tipos de energia é meio bizarro. Como isso funciona em você, afinal? Quer dizer, sei que demônios tem youki e humanos reiki, mas achei que os dois tipos de energias não fossem diferentes em essência.
— Você está certo, em essência ambas podem ser consideradas a mesma coisa: a energia processada por um ser vivo, seja ele humano ou youkai. Mas na prática elas não são idênticas, cada uma tem seus potenciais e limitações. Precisei aprender a controlá-las respeitando suas particularidades, entende?
— Hum...mais ou menos. – fazendo uma careta, ele respondeu indicando a confusão no qual estava completamente imerso – E na luta com Ryou você usou ambas? Pergunto isso, porque Koenma disse algo sobre seus olhos mudarem de cor dependendo da energia que você utiliza e foi exatamente isso que aconteceu naquela hora.
— Sim, eu usei as duas. No começo estava utilizando a energia espiritual, mas depois troquei pra acabar com aquele idiota.
— É isso que não consigo entender! – ele exclamou indignado – Por que você deu preferência ao youki pra dar um fim nele? Se você já tava usando sua energia espiritual, por que não continuou? Imagino que seja trabalhoso ficar alternando no meio da luta, justamente por tais particularidades de cada uma, não é? – Kiara separou os lábios intencionando uma resposta, mas desistiu em seguida. Seu olhar vacilante perdeu o foco por alguns instantes antes que decidisse retomar a conversa.
— É que eu consigo controlar o youki muito melhor do que o reiki – ela sussurrou de forma quase inaudível.
— O que quer dizer com isso? – Kuwabara estreitou os olhos pensativo. No entanto, antes que Kiara pudesse pensar em outra resposta tão vaga quanto a anterior, Hiei se antecipou, concluindo sem esconder o tom ácido em sua voz.
— Ela quer dizer que não domina a sua própria energia espiritual.
Ao meu lado, Kiara rosnou de raiva com aquelas palavras tão diretas, indelicadas e provavelmente mais verídicas do que ela gostaria que fossem. Ainda assim, ela não disse nada, apenas limitou-se a fulminar Hiei pelas costas como se estivesse o amaldiçoando mentalmente.
— Isso é verdade? – inocente, Kazuma voltou a questioná-la sem notar como aquele assunto a havia afetado.
— Não totalmente. Eu domino bem meu reiki para curar a mim mesma, inclusive, sem isso não teria sobrevivido àquela luta.
— Por acaso está se referindo ao momento em que saiu ilesa do golpe que Ryou lançou em você? Eu realmente não entendo como fez aquilo. Ele te atingiu em cheio!
— Eu não sai ilesa, Kuwabara. Na verdade, usei minha energia espiritual para curar os ferimentos no mesmo instante em eles começaram a se formar. Se não fosse por isso, eu teria perdido a luta – deixando a modéstia de lado, ela retrucou numa tentativa óbvia de defender a si mesma da avaliação injusta de Hiei sobre suas habilidades.
— Espera...quer dizer que usou seu reiki pra evitar que aquele golpe te causasse danos? Você é louca?! Isso deve consumir uma energia absurda! Vejo a Yukina se esgotar somente de curar ferimentos que já estão expostos, então impedir que eles se formem deve ser ainda mais difícil.
— É verdade, é muito mais complicado usar sua energia pra impedir que um ferimento se forme do que simplesmente curar um ferimento que já existe, mas naquela situação essa era minha única alternativa. Pelo menos assim eu pude contra-atacar e dar um fim naquele imbecil.
— E agora você está pagando um preço alto por tal atitude – Kurama, que permanecia em silêncio até então, apenas nos guiando entre os caminhos sinuosos daquela densa floresta, ponderou observando-a analiticamente de canto.
— O que quer dizer?
— Confesso que fiquei impressionado com o que fez e, pra falar a verdade, fazia muito tempo que eu não via alguém usar a habilidade de cura com tamanha maestria. Não é todo mundo que consegue desenvolvê-la, porque a energia que se gasta pra tratar uma ferida muitas vezes não compensa, já que o usuário que a utiliza fica esgotado e vulnerável a ataques de outros inimigos. Justamente por isso, muitos desistem de aprendê-la e buscam outros métodos capazes de medicar e cicatrizar ferimentos.
— Ainda não entendi aonde quer chegar, Kurama.
— Entendeu sim. Ontem você teria saído gravemente ferida daquela batalha, mas se curou completamente. Honestamente, me assusta imaginar o quanto de energia gastou pra conseguir fazer isso. E pra completar, depois ainda usou o que te sobrava de força pra acabar com a vida de Ryou. Me corrija se estiver errado, mas você nunca tinha exagerado desse jeito, certo? Sua energia está visivelmente mais fraca hoje, ou melhor, bem mais fraca do que deveria ser. Basicamente, poderíamos dizer que esse é o momento menos indicado pra você ir direto ao esconderijo dos youkais que procura.
— Me recuperei o suficiente pra vir aqui.
— Você sabe que não é verdade.
— Se você tá sugerindo que eu volte atrás e desista, então tá perdendo seu tempo. Isso não vai acontecer! – ela interrompeu os passos, cruzando os braços irritada. Paciente, Kurama se virou a fim de encará-la diretamente.
— Não é nada disso. O que estou sugerindo é que você tome muito cuidado como vai utilizar sua força daqui em diante. Dessa vez você não poderá lutar e se curar ao mesmo tempo.
— Dessa vez, eu não vou precisar fazer os dois ao mesmo tempo – ela retrucou com rispidez sobrecarregando o clima entre nós, cujo aspecto amigável se dissipava aos poucos dando lugar a uma atmosfera um tanto quanto hostil.
— Tem razão, você não vai precisar. É pra isso que estamos aqui, não é? Pouco importa se está sem energia ou não. Se for necessário, nós te daremos cobertura e pronto – incomodado, respondi na tentativa de encerrar aquele assunto de uma vez por todas. Porém, insatisfeita com o que ouviu, ela direcionou um olhar mortífero a mim.
— Eu não entendo o porquê estão assumindo que eu preciso tanto assim de ajuda. Eu nem ao menos estou pedindo por isso, muito pelo contrário, foram vocês que insistiram em me acompanhar! Não precisam se sentir na obrigação de me protegerem e nem nada disso. Inclusive, arriscarem suas vidas por alguém que mal conhecem chega a ser patético.
— Por que não diz isso pra si mesma? Ou por acaso se esqueceu do que fez por nós em Kurushimi?
— Se libertei vocês de lá foi pra me proteger, porque se Asuka os encontrasse, eu estaria encrencada. Agora a situação mudou e eu não pretendo correr o risco mais uma vez.
— Ah deixa de papo furado! – retruquei revirando os olhos – Jamais nos abandonaria caso precisássemos de ajuda.
— Você não me conhece, Yusuke.
— Não preciso conhecer, eu sei que você não faria isso — em resposta, ela fixou seu olhar em mim de maneira desafiadora. Porém, indisposta a continuar a discussão, suspirou profundamente num sinal de total desistência.
— Aproveitando que estamos falando em correr riscos... – Kurama interveio se colocando entre nós –...que tal focarmos no que importa agora? Acho que deveríamos ir até a cidade para continuarmos a busca.
— Não sei não... – Kazuma avaliou apreensivo – Ficaremos extremamente expostos por lá e é justamente isso que não queremos, não é? E se formos pegos numa emboscada?
— É possível que aconteça – Kurama o respondeu com franqueza – Mas ficar andando pela ilha sem rumo também não vai nos levar a lugar algum. Até agora não encontramos nada e não temos todo tempo do mundo pra perder aqui. Se demorarmos muito, poderá ser tarde demais.
Por alguns instantes o encarei confuso, tentando decifrar se ele se referia à vida do irmão de Kiara ou à possibilidade dos youkais abandonarem a ilha antes mesmo que nós tenhamos a chance de encontrá-los. Independente da resposta, sabíamos que ele estava certo: qualquer minuto perdido poderia ser fatal para os nossos planos.
Dessa forma, convencidos de que aquela era a nossa melhor opção, concordamos com a proposta e descemos o mais depressa possível em direção à cidade, alertas a qualquer movimento suspeito. No entanto, tal como na floresta, tudo naquele lugar se mostrou absolutamente trivial, sendo que a única singularidade digna de atenção e destaque era evidente e exagerada alegria que estampava o rosto dos seus habitantes, o que contrariava fortemente minhas expectativas, considerando o fato de que eles conviviam diariamente com demônios assassinos de humanos.
Afinal, como a população local poderia viver tão tranquilamente estando numa situação de perigo constante?
— Já chega, eu desisto! – interrompendo meus pensamentos, Kuwabara exclamou frustrado desabando todo seu peso num banco vago situado à frente de uma loja de souvenirs — Estamos andando há horas nessa ilha e não existe sinal algum de vida youkai por aqui! Escuta Hiei, tem certeza que pegou a informação certa daquele tal de Yamazaki? Esses demônios se escondem mesmo nesse lugar?
— Mas é óbvio que sim.
— Mas como tem tanta certeza? – Kiara o questionou impaciente – Talvez você tenha se confundido ou...
— A não ser que você tenha conseguido uma informação melhor que a minha, acho melhor guardar seus palpites pra si mesma.
— Não precisa agir assim Hiei, Kiara está certa. – Kuwabara a defendeu – Olha pra esse lugar...você não vê ninguém com medo, alarmado ou qualquer coisa do tipo. Se aqui vivem youkais perigosos, a situação não deveria ser o inverso? Eles nem ao menos parecem saber que vivem entre demônios!
— E talvez eles realmente não saibam – antes que Hiei tivesse a chance de retrucar, Kurama interrompeu a discussão, trazendo em mãos um jornal amassado e antigo, cuja data indicava ter sido impresso há um mês – Olhem isso.
Ele o entregou a Kuwabara e eu me aproximei procurando entender do que se tratava. Na primeira página, uma enorme manchete estava destacada:
"Embarcação é encontrada no fundo do mar e paradeiro dos desaparecidos se confirma: nenhum sobrevivente."
Abaixo do título da notícia, a matéria relatava a morte de 15 jovens que haviam viajado em intercâmbio promovido pelo governo da cidade. Há dois meses eles estavam retornando para Nozomi pro meio de uma viagem marítima, porém a embarcação nunca chegou ao seu destino final, desaparecendo no meio do caminho sem deixar rastros. O caso foi solucionado no mês passado quando alguns corpos foram encontrados no fundo do mar junto a destroços do barco. Segundo a perícia local, a embarcação não passou por uma revisão antes da última viagem e, ao atravessar um perigoso trecho do oceano, o motor sobrecarregou e explodiu, levando todos os seus passageiros para uma morte certa.
— Não entendi Kurama. É uma notícia terrível, mas o que tem a ver? – perguntei ao terminar aquela longa e cansativa leitura.
— É convincente, não? Olha só esse lugar: isolado do mundo, com uma população humana de tamanho considerável, mas sem grande visibilidade da mídia mundial. É o lugar perfeito pra youkais ficarem escondidos, enquanto cometem crimes mascarados por falsas notícias na tentativa de não gerar suspeitas.
— Tá dizendo que a viagem dessas pessoas foi organizada para que eles desaparecessem em seguida num suposto acidente?
— É só um palpite, mas me parece coerente. Pensem bem, não seria vantajoso atacarem os humanos e serem descobertos, isso atrairia a atenção de autoridades do país, do Mundo espiritual e até do Makai, principalmente depois que Enki determinou que os youkais devem deixar os humanos em paz. Se fossem descobertos, eles estariam encrencados. Por isso, é muito mais fácil permanecerem escondidos em uma cidade sem que a população tenha consciência disso.
— O jornal diz que essa viagem foi planejada pelo governo desse lugar. Se o que você sugere é verdade, então significa que os youkais estão no governo, não é? – questionei acompanhando o seu raciocínio.
— É possível. Das duas, uma: ou eles tomaram o controle da cidade se passando por humanos, ou eles tem controle sobre o ser humano que está no poder. De qualquer forma, eles conseguiriam encobrir tudo.
— A primeira opção é a mais provável, já que um deles é capaz de mudar de forma e aparentar um ser humano comum. – Kiara disse por fim, enquanto Kurama assentia em concordância.
— Ótimo! E qual é o nosso plano? Invadir o governo em busca do cara e o obrigar a dizer toda a verdade? – Kuwabara indagou num tom irônico e debochado.
— Talvez não seja boa ideia. Não sei se conseguiremos passar despercebidos e isso é a última coisa que queremos. Em teoria, eles não sabem que nós descobrimos sobre essa ilha, então qualquer movimento suspeito vai colocá-los em alerta sobre nossa presença. Se isso acontecer, eles poderão escapar – Kurama ponderou analítico.
— Caramba, eu não tava falando sério Kurama. Nem acredito que você cogitou mesmo essa possibilidade! – assustado, Kazuma o respondeu arregalando os olhos.
— Sobre passarmos despercebidos, esqueçam – de súbito, Hiei nos advertiu com simplicidade, fazendo com que automaticamente direcionássemos nossa atenção a ele, angustiados por uma explicação – Estamos sendo observados.
— O quê?! Como assim?! – procurando por um inimigo, Kuwabara exclamou alarmado examinando as pessoas ao seu redor.
— Calma Kuwabara! – Kurama colocou a mão em seu ombro – Precisamos agir normalmente. Estamos sendo observados de onde, Hiei?
— Longe o suficiente pra que sua presença não possa ser detectada por nós. Provavelmente ela também deve ter algum tipo de visão remota e consegue enxergar a longas distâncias.
— Ela? É uma youkai? – Kiara perguntou.
— Sim. Uma criança.
— Tem certeza que ela está nos observando, Hiei? Estamos rodeados de humanos, ela poderia estar de olho em qualquer um aqui – sugeri um tanto incerto.
— Isso não faria sentido algum. Se ela conhece cada humano que vive nesse lugar, seu único interesse é o de averiguar qualquer movimento fora do comum, no caso, nós. Não resta dúvidas de que está nos observando.
— Mas que droga! – cerrei os punhos irritado – Há quanto tempo você percebeu isso?
— Eu estou alerta com o Jagan desde a hora que chegamos nessa ilha e posso garantir que somente agora fomos localizados.
— Isso quer dizer que ela ainda não avisou os outros youkais sobre nós! Se esse for o caso, ainda temos uma chance de não sermos descobertos, não é? Acha que a gente consegue chegar até ela antes que ela se encontre com os demais?
— Hum...– ele deu um sorriso cínico de canto antes de me responder. –...óbvio que sim. Parece que ela não consegue nos ouvir, senão já estaria indo até seus superiores. Como ela não tem ideia de que já detectamos sua presença, será fácil pegá-la de surpresa.
— Fácil? Mas você disse que a garota está longe daqui, como vamos chegar até ela a tempo?! – Kiara questionou apreensiva sem compreender a lógica por detrás daquele plano.
— Correndo, é claro – com naturalidade, ele retrucou sério deixando-a completamente atônita.
— Fique tranquila Kiara, somos mais rápidos do que imagina. Quando ela perceber nossa aproximação, já será tarde demais – Kurama tentou acalmá-la – E caso você não consiga acompanhar nosso ritmo, podemos nos encontrar depois que a capturarmos. O importante é que não devemos deixar que ela escape. Essa é a chance de conseguirmos encontrar seu irmão e os responsáveis pela morte de todo o seu clã. Se não a pegarmos agora...
—...nós seremos pegos primeiro. Eu sei. – ela completou resignada.
— Ela está indo embora. Se quiserem capturá-la, é melhor pararem de conversar e começarem a se mexer – sem perder tempo, meio segundo após dar o aviso, Hiei já desaparecia do nosso campo de visão correndo em disparada atrás da youkai. Em seguida, Kurama o imitou deixando nós três para trás.
— Vamos! – gritei para Kuwabara e Kiara, encarando pela última vez as expressões inseguras em seus rostos antes de ir ao encalço de Kurama e Hiei. Regulando a respiração, acelerei o ritmo e permaneci ligeiramente atrás de ambos, sabendo que usar todo nosso potencial não seria necessário para capturar uma criança. Ainda assim, com apenas metade dele pude sentir os outros dois ficando cada vez mais para trás e distantes de nós.
Seguindo o caminho para fora da cidade, poucos minutos foram necessários para que eu fosse capaz de enxergar uma pequena e feminina figura emergindo no horizonte. De costas, a garotinha de longos e volumosos cabelos platinados caminhava tranquila e completamente alheia à nossa presença. Apesar de sua aparência frágil, vulnerável e indefesa, intuitivamente aceleramos ainda mais e, incapazes de esconder nosso youki naquela situação, de súbito ela se virou para trás assustada ao perceber nossa aproximação tão repentina.
Com uma expressão de terror escancarada em seu rosto, a youkai permaneceu paralisada enquanto Hiei, que estava na dianteira, acelerava ao máximo a fim de alcançá-la. Porém, despertando daquele estupor no último segundo, ela conseguiu desviar de suas mãos por muito pouco, quase caindo no chão como consequência. Mesmo assim, em seguida, tomou o impulso necessário para sua fuga e, inesperadamente ágil, começou a correr na direção contrária a nossa.
Tão ou mais rápida do que qualquer um de nós, ela desviava dos obstáculos em seu caminho com uma destreza impressionante, como se conhecesse cada trajeto ou atalho daquela floresta monocromática. Sem acreditar no que estava acontecendo, tropecei algumas vezes nos meus próprios pés enquanto tentava manter o ritmo naquela perseguição. Afinal, quem poderia imaginar que a garota seria assim tão veloz?! Até mesmo Hiei ou Kurama – que naquele momento já havia se transformado em Youko – demonstravam dificuldade para alcançá-la.
Ao chegarmos numa bifurcação, de repente a imagem da youkai se duplicou, cada uma tomando um rumo diferente. Sem pestanejar, Hiei e Kurama seguiram uma delas pela mesma direção, ignorando completamente a existência da outra. Já eu, incerto sobre qual seria a verdadeira, me separei dos dois seguindo pelo outro caminho.
Apertei os meus passos mais do que meu corpo parecia suportar, no entanto, ainda assim fui incapaz de diminuir a distância que existia entre nós. Ao chegarmos numa grande clareira, a garotinha repentinamente estagnou virando-se em seguida para mim. Surpreso, observei o sorriso malicioso surgir em seu rosto angelical e então logo compreendi o que havia acontecido: aquela era apenas uma projeção da verdadeira, uma imagem completamente falsa. Irritado por ter sido facilmente enganado, desacelerei ao notar que aquela falsificação desaparecia aos poucos, me deixando completamente só.
No mesmo instante pensei em retornar para procurar Kurama, Hiei e a garota verdadeira, mas um tremor vindo do subsolo prendeu a minha atenção, fazendo com que eu me mantivesse estático no mesmo lugar. Era fraco no início, mas aos poucos começou a tomar grandes proporções, até que, sem saber o que aquilo significava, tomado pela confusão caí em vão ao perder o equilíbrio. Com agilidade, me levantei a tempo de escapar da enorme rachadura que se abria no chão abaixo de mim, revelando uma cratera ainda maior. Naquela tensão eu mal sentia a terra tremer aos meus pés, ainda que o meu corpo inteiro estivesse vibrando como consequência.
Erguendo-se de dentro do buraco, uma espécie de máquina – que parecia ter saído de algum filme de ficção científica – se materializou na minha frente. Com uma anatomia semelhante a de um besouro, era constituída por um corpo principal que se mantinha erguido graças ao apoio de seis enormes pernas mecânicas, cujas extremidades possuíam garras afiadas revestidas por lâminas. Um visor robótico dançava pela parte frontal do seu corpo até que, ao focar em minha direção, ficou imóvel.
Prevendo o que viria a seguir, me esquivei rapidamente de uma das garras, que por errar o alvo, terminou perfurando o solo em que eu me encontrava instantes atrás. Sem perder tempo, corri contornando aquela máquina monstruosa, me esquivando sem grandes dificuldades de todas as suas investidas. Assim, decidido a dar um fim àquela situação, ergui o indicador de uma das mãos concentrando nele minha energia.
— LEIGAN! – o som da explosão ecoou forte no instante em que o disparo a atingiu, fazendo com que faíscas elétricas saíssem da sua maquinaria danificada. Naquele momento eu soube que o estrago havia sido grande, mas não sabia se seria o suficiente para detê-la. De repente, encoberta pela poeira levantada, uma das garras avançou em minha direção e, sem tempo para reagir, num reflexo a segurei com minhas próprias mãos, freando seu movimento.
As lâminas afiadas que revestiam aquela garra perfuraram minha pele com facilidade, abrindo inúmeros cortes na região. Senti o sangue escorrer e se espalhar ao longo dos meus braços erguidos, mas ignorei completamente a dor colocando mais força contra aquela máquina. Em meio àquele árduo embate, perdi a noção do tempo e inesperadamente escutei o meu nome ser chamado de algum lugar distante, enquanto as lâminas afundavam ainda mais em meus músculos.
Ao olhar para o lado, me deparei com Kiara correndo até nós em sua máxima velocidade, atraindo também a atenção da criatura que, num momento de distração, afrouxou um pouco a garra que mantinha cravada sobre mim. Aproveitando a oportunidade, a puxei de surpresa torcendo-a com força suficiente para que aquele membro de metal se rompesse. Em seguida, rapidamente corri até o seu corpo principal e por fim a atingi numa série de golpes sucessivos. Sem regular a força dos meus punhos, perfurei sua resistente carapaça, embora por debaixo dela uma outra camada se expunha protegendo sua circuitaria interna.
Numa última investida, a arremessei para longe, enquanto Kiara se aproximava lentamente de mim, assustada com a cena.
— O que diabos é isso?! – ela perguntou ofegante.
Por não ter uma resposta e por estar concentrado demais nos movimentos daquela coisa, permaneci calado. Distante de nós, a máquina rapidamente se recompunha sem demonstrar ter sido gravemente danificada pelos meus ataques. Com facilidade ela se ergueu nas cinco pernas mecânicas que lhe restavam e abriu seu corpo em dois pontos específicos, revelando duas projeções semelhantes a canhões. Merda! Entendendo o que aquilo significava, empurrei Kiara para um lado e saltei para o outro antes que os disparos lançados por aquelas armas nos atingissem.
— Corre pra floresta! – ordenei para Kiara, sabendo que ela não estava em condições de lutar de igual para igual com aquele monstro, e que também não conseguiríamos derrotá-lo enquanto não soubéssemos o seu ponto fraco. Por um instante a garota hesitou em me obedecer, mas em seguida partiu resignada em direção à mata fechada. Dessa forma, a fim de dar tempo para que ela escapasse, permaneci exposto na clareira servindo de isca para aquela criatura.
Incessantemente ela tentava me atingir com múltiplos disparos provenientes de suas armas de fogo, porém, em reflexos ligeiros eu desviava com sucesso de suas investidas. Assim, ao ter certeza que Kiara estava completamente longe de seu alcance, decidido a tomar o mesmo rumo que ela, me virei de costas para aquela lataria e parti em direção à floresta. Uma dor aguda instantaneamente se espalhou por todo o meu corpo assim que um tiro atingiu repentinamente minha perna esquerda, retardando ainda mais a minha fuga. Sem olhar para trás e tomando cuidado para não ser pego novamente, continuei o meu caminho o mais rápido que pude, até adentrar à mata e estar completamente envolto e protegido por enormes árvores.
Ao ouvir os passos pesados daquela máquina se aproximarem de mim, continuei avançando pela selva, atropelando todas as pedras, galhos e raízes que surgissem em meu caminho. Foi somente ao me sentir completamente só que gradativamente decidi interromper o percurso, encostando num tronco qualquer a fim de recuperar o fôlego perdido, enquanto as feridas que havia ganhado durante a batalha ardiam como brasa em minha pele.
Irritado, permaneci imóvel por alguns instantes pensando no quanto me sentia um covarde. No fundo, estava possesso de raiva! Odiava fugir de uma luta e jamais me permitiria a tomar uma atitude como essa se estivesse enfrentando um adversário de verdade. No entanto, aquela porcaria nem ao menos era um ser vivo e meus ataques nem sequer a afetavam. Maldição! Eu caí na armadilha daquela pirralha como um imbecil!
Frustrado, apesar de todas as dores que sentia, preferi não pensar na minha condição e em seguida retomei a caminhada em meio ao silêncio na floresta. Cuidadoso, prestava atenção a cada simples farfalhar das folhas ao meu redor preparado para um ataque assim que julgasse necessário. De repente, um ruído ressoou à minha direita e, sobressaltado, me voltei naquela direção. Ainda que não pudesse enxergar nada além da escuridão da mata, podia sentir a presença de alguém. Era fraca, mas sólida ao mesmo tempo...vindo em direção a mim.
Cansado de fugir, decidi tomar a iniciativa e partir para uma investida. Assim, ao ir de encontro àquela presença, minha fúria se intensificou ao notar que ela convergia até mim com as mesmas intenções. Sabia que agora seria tudo ou nada e o primeiro que vacilasse, perderia. No entanto, prestes a disparar um Leigan, ao alcançá-la me vi obrigado a interromper meus movimentos, surpreso e aliviado por me deparar com um rosto amigo. Com o indicador ainda apontado para ela, parei apenas a alguns centímetros da garota que, da mesma forma que eu, estava preparada para um combate, mantendo a lâmina de seu sabre direcionada ao meu pescoço.
— Ah Kiara, é só você... – desconfiada, ela semicerrou os olhos enquanto me observava desfazer a postura de luta. Mantendo a katana estendida, deixava evidente suas dúvidas sobre minha identidade, ponderando a possibilidade de estar frente a frente com um impostor – Já pode abaixar essa arma. Sou eu mesmo, não há motivos pra você pensar o contrário.
— Como posso ter certeza?
— Eu poderia te perguntar a mesma coisa, sabia? – eu disse zombando da situação. Impaciente com a resposta, ela endureceu a expressão em seu rosto e automaticamente ergueu o sabre, aproximando-o ainda mais de mim.
— Isso mostra o quão descuidado você é, pois abaixou a guarda assim que me viu. Quem te garante que sou eu mesma? Se eu quisesse, poderia ter te matado.
— Ah me poupe! Como se eu pudesse ser morto com essa sua arma estúpida! Além disso, se eu abaixei a guarda foi porque, por mais que alguém imitasse sua aparência, tenho certeza que você é a verdadeira. Pelo que nos contou hoje lá no templo, você deve ser o tipo de pessoa que desconfia até mesmo da própria sombra. Estranho seria se você não agisse assim comigo.
Ela me estudou por alguns instantes, pensativa e receosa. Por fim, embainhou a espada convencida da minha identidade, embora um brilho cético insistisse em permanecer em seu olhar como se estivesse inclinada a mudar de ideia a qualquer momento.
— Onde estão Hiei e Kurama?
— Foram pelo outro caminho, o caminho certo.
— Por que vocês não conseguiram pegar a garota? Kurama garantiu que vocês eram velozes, o que aconteceu?!
— Nós a subestimamos, aquela pirralha é tão rápida quanto nós e ainda por cima consegue criar imagens falsas de si mesma. Não tenho ideia se Kurama e Hiei conseguiram capturá-la.
— Ah que maravilha! – irônica, ela bufou irritada ameaçando proferir uma série de palavrões contra nós três, mas logo desistiu, balançando a cabeça em negação e inspirando profundamente na tentativa de se acalmar. Por fim, minutos depois estagnou o olhar aflito sobre meus braços cobertos de sangue – Você está bem?
— Sim, isso não é nada. Vai por mim, já estive bem pior. E onde está o Kuwabara?
— Acabamos nos separando em algum momento. Acho que ele ficou pra trás e aí tinha uma bifurcação...não sei pra onde ele foi. Afinal...- ela inspirou fundo antes de continuar –...o que era aquela coisa que você estava enfrentando?!
— Parece piada, né? Youkais que usam tecnologia de ponta pra combater os invasores. Era só o que faltava.
— Acha que ela virá atrás de nós? – ela perguntou franzindo o cenho apreensiva.
— Tenho certeza que sim.
