KURAMA POV

Impressionado. Não haveria melhor maneira de descrever o meu estado, enquanto tentava inutilmente alcançar aquela pequena youkai. Sem precisar dizer uma única palavra, eu sabia que Hiei estava se sentindo da mesma forma, embora jamais fosse admitir devido ao seu temperamento orgulhoso. Afinal, não era fácil superá-lo em termos de agilidade, porém aquela garota certamente o colocava em xeque. Ou estavam empatados, ou ela era ligeiramente superior.

Obviamente a menina não representava ameaça alguma para nós e, provavelmente, sua única função na ilha era a de levar informações para seus superiores. Isso estava claro pelo jeito desesperado como fugiu assim que a encontramos. Suas feições amedrontradas ao olhar para trás e se deparar com a minha transformação em Youko não saíam da minha mente. Ela estava aterrorizada e não pretendia nos enfrentar.

Ainda assim, foi valente o suficiente para planejar uma fuga, sem se deixar ser pega por nós. Aproveitando do fato de conhecer a floresta com a palma da mão, tentava nos despistar a todo momento e, criando uma cópia de si mesma, conseguiu até se livrar de Yusuke no meio do caminho. Sua habilidade ainda precisava ser aperfeiçoada, é claro. Olhos mais treinados, como os meus ou os de Hiei, puderam facilmente perceber uma pequena falha durante a separação das duas imagens. Graças a isso, nós dois continuamos a perseguição atrás da verdadeira youkai.

De qualquer maneira, o seu talento era inegável e o nosso maior erro foi subestimá-la.

Cansado daquele jogo de perseguição, com um movimento brusco Hiei desembainhou sua katana e acelerou. Ao cogitar a possibilidade de que ele a mataria, pensei em impedí-lo, porém recuei ao notar suas verdadeiras intenções. Ele mirou a lâmina do sabre nos pés da garota a fim de lhe ferir no tornozelo e impossibilitá-la de correr, mas num reflexo ágil ela pulou assustada evitando que a arma lhe atingisse em cheio, quase tropeçando ao aterrissar novamente no solo. Com apenas um corte superficial na pele, a menina desviou o caminho tentando mais uma vez nos despistar.

Persistente, Hiei a alcançou novamente preparando a katana para mais um golpe e, sabendo que eu não seria capaz de atingir a mesma velocidade de ambos, decidi me aproveitar da situação. No instante em que Hiei tentou cortá-la, a youkai abaixou a guarda em relação a mim e, ao tentar desviar da lâmina do sabre, lancei o Rose Whip em sua direção. Ela gritou de dor assim que o chicote lhe cortou o tornozelo esquerdo, olhando para trás em desespero. Escorregadia e ágil, ainda assim conseguiu evitar que o Rose Whip a agarrasse, embora suas feições deixassem claro que a dor logo limitaria os seus movimentos.

A ponto de ser capturada por Hiei, inesperadamente ela se lançou na encosta florestada da montanha em que nos encontrávamos, desaparecendo de vista. Sem pensar muito, ele reagiu segundos depois e pulou em seguida atrás dela. Por fim, os imitei demorando um minuto para conseguir vislumbrá-los em meio à quantidade absurda de enormes árvores que adentravam ao meu caminho conforme descíamos até o sopé do monte.

Ao chegarmos num terreno plano, Hiei continuou a seguí-la com agilidade, pulando de galho em galho num ritmo quase impossível de se acompanhar com os olhos. Ainda assim, foi incapaz de alcançá-la mais uma vez. Naquela perseguição sem fim, eu me via cada vez mais distante de ambos, tentando entender como a youkai era capaz manter tamanha velocidade mesmo estando com aquele profundo ferimento na perna. Não fazia sentido algum...

Num misto de choque e indignação, de repente freei meus movimentos ao me virar para trás, encarando o topo da montanha no qual há poucos minutos havíamos saltado.

— Hiei, pare! – gritei à plenos pulmões com mais força do que o necessário, enquanto retornava à minha forma humana. Ele olhou para trás hesitante e em seguida interrompeu a caça. A garota parou também, alguns passos à sua frente e nos observou com um semblante sereno. Após alguns poucos instantes em silêncio, ele logo compreendeu o que havia acontecido.

— Ela não é real, não é? – Hiei perguntou, enquanto eu me dirigia calmamente até eles.

— Não. Estamos correndo atrás de uma ilusão.

— Mas quando você a atingiu, ainda era a verdadeira. Sua habilidade não é perfeita. Teríamos percebido caso criasse uma cópia.

— Ela se aproveitou do declive. Estava repleto de obstáculos e desapareceu do meu campo de visão por um tempo. Do seu também, certo?

— Foram apenas alguns segundos, Kurama.

— Mas ela soube aproveitar bem esses segundos. Não a subestime, ela é inteligente. Percebeu que seria pega por você, então arriscou tudo. Não esperávamos que ela fosse se jogar da montanha, porque numa dessas ela poderia até ter morrido. Mas ela sabia que assim a perderíamos de vista por alguns instantes, por mais que acabasse se ferindo como consequência. Ela soube exatamente onde se esconder e, apesar de precisar melhorar sua habilidade, conseguiu produzir uma cópia perfeita de si mesma. Não é uma ilusão qualquer, é feita com seu próprio youki. Jamais notaríamos a diferença.

— Hum – ele murmurou irritado – Preciso te lembrar que acaba de ser enganado por uma criança? Guarde esses elogios inúteis pra depois.

— Você parece mais incomodado com isso do que eu.

Ele me encarou furioso, sem intenções de responder. Retirou a faixa do Jagan e se concentrou em nosso entorno, procurando pela fugitiva. Não o impedi, por mais que soubesse que aquilo seria um esforço em vão. No fundo Hiei também sabia, pois considerando a velocidade que a garota era capaz de atingir, provavelmente já estaria longe de nós. Além disso, ainda que que estivesse muito ferida após cair da montanha, provavelmente saberia perfeitamente aonde se esconder para se manter segura.

Segundos depois de sondar o local com a visão remota, Hiei franziu o cenho confuso e incerto.

— O que é isso?! – por fim, resmungou para si mesmo em voz alta.

— O que foi? Achou a garota? – questionei ao estranhar sua atitude.

— Não. Ela deve estar escondida em algum lugar fora do meu alcance.

— E então? O que você viu?

— Algo bem maior do que ela – ele retrucou enigmático e sem vontade alguma de entrar em detalhes, fazendo com que no mesmo instante eu me recordasse do estrondo que ouvimos após nos separarmos de Yusuke. Assimilando os fatos, me dei conta de que Hiei não precisava explicar mais nada. Antes que percebessemos, já havíamos dado meio volta a fim de retornarmos para o nosso ponto de partida.

KURAMA POF

KUWABARA POV

Há tempos que havia aprendido a não ignorar os meus pressentimentos. Exatamente por isso que, ao chegar numa bifurcação em meio àquela floresta, descartei o caminho à minha direita, ainda que um estrondo vindo daquela direção indicasse que algo de errado havia acontecido ali. Resistir à tentação de ir até o som para confirmar que meus amigos estavam bem não foi fácil. Porém, minha percepção espiritual nunca falhava e, embora eu estivesse completamente fora de forma – motivo pelo qual fiquei para trás de todos durante a perseguição – ela permanecia afiada, como sempre foi. Por isso, segui o caminho à esquerda sem hesitar ou olhar para trás.

Àquela altura do campeonato, eu já sabia que o nosso plano de capturar a criança tinha ido por água abaixo, caso contrário, Yusuke e os outros voltariam para me encontrar, como Kurama disse que fariam. Eu tinha certeza que algo realmente ruim estava acontecendo, mas mesmo assim nutria a esperança de que todos ficariam bem. Até porque, como poderia acontecer algo a eles? Yusuke, Kurama e Hiei são incrivelmente fortes e seria preciso muito mais do que meia dúzia de youkais estúpidos para derrotá-los!

Apegado a esse pensamento, continuei seguindo em frente esbanjando confiança a cada passo dado, porém, não demorou muito para que todo o meu otimismo começasse a se desmantelar dando lugar a um terrível sentimento de angústia. Afinal, é exatamente isso que acontece quando seus amigos desaparecem sem deixar rastros em pleno território inimigo. Qualquer pessoa normal se desesperaria, certo?! Contra a minha vontade, pensamentos terríveis encobertos pelo pessimismo começavam a tomar forma em minha mente, cogitando todas as possíveis desgraças que poderiam ter acontecido a cada um dos meus companheiros.

Tentando acalmar os nervos, respirei fundo e fechei os olhos para contar mentalmente até dez, esperando que, como num passe de mágica, encontrasse uma solução para os meus problemas assim que voltasse a abrí-los. Porém, ao levantar as pálpebras, com o rosto voltado para o chão me deparei com algo que contrariava todas as minhas expectativas. No relevo aos meus pés, aquela mancha densa e viscosa de coloração vermelha viva e brilhante só podia indicar uma coisa: sangue fresco.

Mesmo tendo certeza do que se tratava, por algum motivo desconhecido esfreguei a sola do sapato sobre ela, a espalhando ainda mais pela terra do solo arenoso a fim de confirmar o frescor daquele líquido. Observando com atenção, notei que uma trilha de sangue se formava à frente daquela mancha, como se indicasse um caminho a ser seguido. Apreensivo por não saber a quem ela pertencia, estava certo de que não podia dar para trás num momento como esse, pois se algum dos meus amigos estivesse em perigo, era meu dever salvá-lo.

Seguindo aquele rastro de sangue, fui levado diretamente à um enorme e velho portão de ferro, escondido entre as árvores altas da floresta. Acima dele, uma placa antiga e enferrujada, quase completamente encoberta por folhagens de plantas trepadeiras, anunciava: "Cemitério Nozomi". Assim que a li, no mesmo instante calafrios navegarem por cada centímetro do meu corpo, embrulhando meu estômago em náuseas profundas. Não estava acostumado a ir a esse tipo de local[1] e a simples ideia de estar no mesmo ambiente que uma infinidade de corpos em decomposição não me soava nenhum pouco atraente.

Que azar! Com tantos lugares pra eu ir parar, tinha que ser logo num cemitério?!

As manchas de sangue que eu perseguia continuavam avançando pelo portão semi-aberto, sumindo de vista por entre as tumbas ali contidas. Tomando coragem, respirei fundo e engoli seco antes de adentrar ao local. Naquele silêncio ensurdecedor eu podia escutar meu coração martelando mais forte do que nunca e, suando de tão nervoso, quase gritei de susto ao virar numa esquina e me deparar repentinamente com uma pequena garotinha.

De costas, trajando um vestido imundo e maltrapilho, ela mancava arrastando o pé esquerdo pelo chão, enquanto seu tornozelo escorria sangue devido à ferida profunda que limitava sua caminhada. Sem desgrudar os olhos dela, rapidamente me escondi atrás de uma enorme lápide de granito, colocando as duas mãos sobre a minha própria boca para evitar emitir qualquer ruído que anunciasse minha presença.

Então, essa é a garota que estávamos caçando? Mas aonde estão Yusuke e os outros?! Francamente, o que adianta serem mais velozes do que eu, se não conseguem sequer capturar uma simples criança?!

Confuso e sem ter respostas para os inúmeros questionamentos que brotavam em minha mente, ainda assim suspirei um tanto aliviado ao ter certeza que o sangue não pertencia a nenhum dos meus amigos.

Distante de mim, a garota exclamou de dor, enquanto lacrimejava ao olhar para seu ferimento. Tentando me controlar, a contragosto resisti ao ímpeto imprudente de ir ajudá-la. O que os outros pensariam de mim se eu acabasse sendo capturado por pura burrice de tentar socorrer essa garotinha supostamente indefesa? Provavelmente me encheriam o saco pelo resto da eternidade...

Repentinamente, a youkai estagnou os passos em frente a um túmulo específico e virou em minha direção. Meu coração disparou com força e num reflexo me coloquei completamente atrás da lápide, torcendo para que a baixa iluminação do local não tivesse sido suficiente para que ela me enxergasse. Em meio àquela tensão, prendi a respiração automaticamente e, somente ao ouvir um som distante de mim, retomei o fôlego me permitindo bisbilhotá-la mais uma vez.

Com dificuldade, a garotinha arrastava para o lado a enorme e pesada pedra que cobria aquela tumba, revelando uma abertura no solo onde o morto deveria estar. Ela pretendia violar o túmulo?! Enojado ao imaginar o que viria a seguir, segurei a ânsia fazendo uma careta, desacreditado no que estava vendo. Porém, após afastar a pedra, a garota rapidamente adentrou àquela passagem no solo, sumindo completamente do meu campo de visão. Ao compreender o que aquilo significava, um estalo ecoou na minha mente.

Aquela certamente era a passagem para o esconderijo dos youkais. Todo esse tempo eles estavam no subsolo! Justamente por isso, nós não fomos capazes de detectar a presença de nenhum deles assim que chegamos à essa ilha.

Hesitante, me aproximei lentamente do buraco sem ter certeza do que faria a seguir. Eu pretendia mesmo perseguir uma youkai dentro de um túmulo?! Definitivamente era uma péssima ideia, para dizer no mínimo! Ainda assim, algo dentro de mim dizia que era o correto a ser feito. Portanto, respirei fundo tomando coragem para seguir em frente e me infiltrei pela passagem estreita que havia sido liberada, submergindo numa completa e macabra escuridão.

Por aquele túnel de terra, caminhei cauteloso sem enxergar absolutamente nada à minha frente, enquanto o ar se tornava cada vez mais denso e limitado. Conforme eu avançava, uma baixa claridade vinda de algum lugar adiante começava a se intensificar aos poucos, iluminando as paredes frias e rústicas ao meu redor. Ao ouvir inesperadamente uma voz masculina grave e amedrontadora, congelei prendendo a respiração. Estava perto...perto demais!

— Então quer dizer que a garota está na ilha e acompanhada?

— Sim, eles me atacaram de surpresa! Não pensei que me descobririam, porque eu os estava observando de longe! De repente, eles chegaram tão rápido...

Em silêncio e cauteloso, me aproximei lentamente. Projetadas no solo, as sombras desproporcionais da criança e seu acompanhante surgiam em meu campo de visão, embora eu ainda fosse incapaz de enxergá-los de fato.

— Pelo que Asuka falou, o filho[2] de Raizen e seus amigos estão com a komorebi – disse a voz grave por fim.

Senti o meu coração quase saltar para fora do meu peito. Ele estava se referindo a Yusuke? Como eles poderiam saber quem somos?! Nós viemos pra cá de surpresa! Eles não tinham como saber disso, pois Kiara matou Ryou, não é? Transtornado, me foquei naquele nome que soava um tanto familiar: Asuka. Mas é claro...só podia ser isso!

Lembrava de Yusuke ter dito que enfrentou uma youkai chamada Asuka quando Kiara nos libertou daquela prisão. Mas podia jurar que ela também estava morta, até porque Yusuke me disse isso com todas as letras. Ora...aquele imbecil! Mentalmente amaldiçoei Urameshi de todas as formas que eu conhecia, sem entender como ele poderia ter sido tão descuidado a ponto de deixar um inimigo sobreviver para espalhar informações sobre nós. Ele vai ver só, assim que nos encontrarmos...

— Eles são perigosos! – a garotinha exclamou interrompendo meus pensamentos – Se eu não tivesse conseguido escapar com a minha ilusão, acho que teriam me matado!

— De fato, são perigosos. Graças àquele torneio estúpido realizado no Makai, hoje sabemos que os acompanhantes do filho de Raizen são Kurama Youko, ladrão conhecido no Makai, e Hiei, atual subordinado de Mukuro. Não podemos desprezá-los.

— Exatamente! Foi Youko que me feriu! Eu vi ele se transformar bem na minha frente! Fiquei com tanto medo...– a garotinha lacrimejava, ressentida com a memória – Ah, mas tem outro além desses dois, um humano! Ele é bem alto e tem uma cara estranha.

Enfurecido, senti meu rosto pegar fogo, enquanto rangia os dentes de raiva. Como essa pirralha ousava falar assim de mim?! Com certeza ela me pagaria por esse insulto!

— De qualquer forma, nós não precisamos nos preocupar com eles. O importante é que já sabemos que a garota está na ilha e quem são nossos inimigos. Isso vai facilitar muito as coisas.

— O que faremos?

— Finalmente vamos usar a nossa isca, não é?

No meu limitado campo de visão, um garoto surgiu de repente caminhando em direção à sombra do homem. A inegável semelhança dos cabelos castanhos em conjunto aos olhos esverdeados deixava claro que aquele era Kazuki, irmão de Kiara. Parecia saudável, porém ao mesmo tempo abatido e, com o olhar vazio perdido no horizonte, ele não emitia reação alguma para o que estava acontecendo ao seu redor.

Preso em seu peito, uma espécie de amuleto em forma de pergaminho estava em destaque, idêntico ao ofuda que Kiara encontrou junto aos corpos dos moradores que a atacaram naquela aldeia. Sabia que precisava removê-lo para libertar Kazuki do controle mental que o haviam submetido, mas como faria isso sem ser visto? Droga! Talvez fosse melhor voltar atrás para avisar os outros antes de fazer alguma besteira e...NÃO! O que estou pensando? Eu nem ao menos sei onde Yusuke e os outros estão e talvez essa seja a nossa única chance de resgatar o garoto. Não posso desperdiçá-la!

— Quem é você?

Demorei um tempo para notar que a pergunta havia sido direcionada a mim. Pego de surpresa, me virei num pulo para encarar o demônio de aparência humana que estava às minhas costas. Perplexo por não ter sentido a sua aproximação, permaneci calado apenas o analisando de cima a baixo.

Era tão alto quanto eu, mas nada corpulento. Não parecia forte, tampouco ameaçador.

— Falei com você. Responda! – por fim, ele ordenou irritado.

Ah, dane-se! Sem ter motivos para continuar me escondendo, reuni forças para golpeá-lo na altura do estômago. No entanto, antes mesmo que meu punho pudesse atingir o seu corpo, surpreendentemente fui arremessado para trás em alta velocidade, caindo por fim no chão áspero da sala em que a garotinha e o outro youkai se encontravam. Rapidamente me levantei, enquanto o homem se aproximava de mim pela frente e os outros dois me cercavam pelas costas.

— Parece que temos um intruso aqui. Estava observando vocês dois.

— É o humano que está com a komorebi! – a criança exclamou assustada.

— Você deixou que ele te seguisse, Chiharu? – assustado, me virei para enfim descobrir quem era o dono daquela grave voz. O demônio alto, de olheiras escuras e aparência nada jovial, usava vestes pretas e contorcia os lábios finos de maneira nem um pouco amigável, enquanto observava a garotinha com um ar de desprezo.

— N-não, senhor Shinzou! Não sei como ele nos encontrou! Ele nem ao menos estava por perto quando despistei os outros!

— Precisa ser mais cuidadosa – o outro youkai bufou, revirando os olhos – Você deixou um rastro de sangue enorme lá fora, tive que apagar tudo – completou por fim me lançando um sorriso debochado.

— Me desculpem...– a menina lamentou cabisbaixa, tristonha e envergonhada.

Revezando o olhar entre os três, eu me preparava para receber de um ataque surpresa vindo de qualquer direção. Lidar com a menina não seria um problema, mas como enfrentaria os outros dois e salvaria Kazuki ao mesmo tempo? Merda! Já havia me esquecido de como era estar em maus lençóis. Nem ao menos podia contar com a possibilidade de ser encontrado por Yusuke, Kurama, Hiei ou Kiara, porque aquele demônio magrelo e imbecil eliminou os rastros de sangue que podiam guiá-los até mim. Estava completamente só e, portanto, teria que me virar por conta própria.

Calmo e despreocupado, o youkai mais velho deu um passo a frente e estreitou os olhos em minha direção.

— Espere Shinzou! – o outro interveio – Pode deixar que eu cuido dele. Afinal, ele tentou me atacar há um minuto atrás. Não posso deixar por isso mesmo, não é?

— Hum – o homem resmungou revirando os olhos ao relaxar – Faça como quiser Bakugo, mas não demore. Temos coisas mais importantes para nos preocuparmos!

Ele ordenou à medida em que se afastava de nós, junto à companhia da criança. Sem entender o porquê decidiram abdicar da vantagem numérica que possuíam sobre mim, me voltei para o jovem youkai parado à minha frente e rapidamente me coloquei em posição de luta.

Ao encarar seu semblante displicente, corri bruscamente em sua direção a fim de pegá-lo de surpresa, providenciando uma sequência de golpes rápidos e precisos. No entanto, tal como da primeira vez que tentei atacá-lo, fui repelido a cada investida dada. Meus socos e chutes nem ao menos chegaram a encostar em seu corpo e, sem mover um único músculo, ele permaneceu impassível, enquanto me observava fracassar a cada tentativa.

Ao ser arremessado uma última vez, interrompi o golpes cansado de gastar energia à toa. Ofegante, me levantei do chão para estudá-lo com atenção.

— Humano imbecil, já acabou?

Não respondi. Enquanto eu o analisava para entender o que estava acontecendo de errado com os meus golpes, me vi intrigado ao notar a ausência de sua energia demoníaca. Há minutos atrás eu estava distraído e, portanto, era perfeitamente aceitável que não tivesse sentido ele se aproximar de mim pelas costas. Mas agora, mesmo me concentrando ao máximo, ainda assim não conseguia sentir seu youki! Por quê? O que isso significava, afinal?

— O que tanto você pensa? Cuidado pra não fritar seus miólos, você não parece muito inteligente – ele riu sarcástico – Desista de uma vez, você nunca vai me vencer.

— Do que está falando? Por acaso é imortal?!

Ele gargalhou alto, fazendo com que sua voz ecoasse por toda a amplitude daquele local.

— Você é mesmo burro. Ainda não percebeu?

— Percebi o quê? Desembucha! – irritado com aquela provocação, materializei minha espada dimensional planejando o próximo golpe. Em resposta, ele riu ainda mais balançando a cabeça em negação.

— Tudo bem, eu vou te ajudar a compreender o porquê você nunca vai me derrotar. Está estranhando o fato de não conseguir sentir meu youki, não é? Acontece que o minha energia demoníaca se manifesta na forma de uma barreira que impede a passagem de qualquer coisa que tente me atingir.

— Como é que é?!

— Exatamente isso que você ouviu. É assim desde que nasci e nem eu mesmo tenho controle sobre isso. Mesmo que eu não queira, minha energia demoníaca me cerca como uma barreira. Digamos que é uma proteção natural.

— Então é por isso que eu não consigo perceber seu youki? Porque ele fica completamente contido numa barreira?

— Entendeu agora? Posso ver que, apesar de não muito inteligente, você é forte. Mas não adianta ser forte, se não é capaz de atingir seu adversário. Poucas coisas na vida foram capazes de romper o meu escudo, tenha certeza que esse seu brinquedinho... – ele apontou para a espada de reiki em minha mão –...não será uma delas.

— Espera aí. Não me diga que... – interrompi a fala ao lembrar do ocorrido em Kurushimi. Aquela barreira em que fomos aprisionados era quase indestrutível e nem mesmo minha espada dimensional foi capaz de rompê-la. Será que esse cara...?

Uma dor agúda me atingiu quando, ao se aproveitar da minha distração, o youkai me golpeou em cheio no estômago. Em seguida, ele desferiu um potente chute em minhas costelas, terminando por me arremessar para longe após ouvir o som dos meus ossos me recompor, cuspindo sangue no chão ao me reerguer. Queria revidar suas investidas, mas não sabia como. Naquela situação, me sentia impotente e inútil, enquanto xingava a mim mesmo mentalmente. Se não tivesse ficado tanto tempo sem treinar, muito provavelmente não estaria tendo tantos problemas para enfrentá-lo! Que merda!

— Você pode produzir qualquer tipo de barreira? – resmunguei com dificuldade ao me levantar devagar.

— Porque essa pergunta agora? Por acaso está querendo ganhar tempo?

— Foi você que produziu as barreiras que aquele tal de Yamazaki usava em seus prisioneiros, não é?

— Pra que quer saber disso a essa altura do campeonato? Isso não vai ajudar a você sair vivo daqui! – ele respondeu sarcástico e me encarou desafiadoramente. Porém, ao perceber que a pergunta era séria, suspirou cansado antes de continuar – Bom, já que você vai morrer, então não tem problema dizer. É isso mesmo, eu produzi aquelas barreiras refletoras, e daí? Eu consigo projetar e produzir qualquer tipo de barreira!

Eu sabia! No entanto, naquele dia, estando aprisionado eu não podia atingir ninguém, mas a recíproca não era verdadeira, pois um golpe vindo de fora poderia me me machucar. Então, como ele, aprisionado e envolto pela sua própria barreira, era capaz me atingir? Não deveria ser exatamente a mesma situação? Será que...

— Chega de conversa, Bakugo! – cada vez mais impaciente, o youkai mais velho ordenou interrompendo o meu raciocínio, enquanto nos observava de longe – Mate-o de uma vez antes que eu o faça!

— Não se meta nisso, Shinzou! – o demônio retrucou irritado para, em seguida, avançar em minha direção a fim de desferir mais um golpe.

Com o intuito de checar minha teoria acerca da natureza daquele youkai, me mantive estático no mesmo lugar, preparado para receber de bom grado o soco no peito. Naquele momento, ao me concentrar ao máximo, apesar da dor excruciante, fui capaz de perceber seu youki durante a mínima fração de segundos em que encostou em mim, confirmando minhas suspeitas. Isso significa que, embora eu não possa golpeá-lo devido ao escudo que o protege, o contrário não se aplica, pois no momento em que ele encosta em mim, a sua barreira não deixa de existir, mas passa a me envolver também!

Após o golpe, o demônio me atingiu no estômago antes que eu tivesse a chance de reagir e, ao me ver caindo no solo mais uma vez, chutou minhas costas, me arremessando mais uma vez para longe de si.

— Escuta humano estúpido, atrás de você há um tanque de trinta metros de profundidade preenchido com o ácido mais potente do Makai, capaz de corroer qualquer coisa em menos de dez segundos – ainda caído no chão, me virei na direção do barranco que havia atrás de mim. Ali, o líquido de estranha e enojante coloração amarelada exalava um forte odor químico, cujo teor irritava meu olfato e visão, ainda que não estivesse em contato direto com o mesmo – Nós costumamos usá-lo pra jogar os ossos e restos mortais dos humanos que entram em nosso caminho...

— Desgraçados!

— Você tem sorte, pois deixarei que você mesmo escolha como prefere morrer – ele sorriu cínico – Quer que eu te mate no próximo golpe ou prefere se jogar no ácido por conta própria?

Observei de soslaio o youkai mais velho parado a alguns metros de distância de nós. Preocupado, eu sabia que por mais que conseguisse derrotar o perito em barreiras, ainda teria que lutar contra esse outro. Mas será que daria conta depois de gastar tanto as minhas energias inutilmente? Provavelmente não! Como eu poderia escapar dessa situação?! Obviamente eles não sossegarão enquanto não me virem morrer com os seus próprios olhos...

"Mesmo que eu não queira, minha energia demoníaca me cerca como uma barreira"

A lembrança da fala do youkai surgiu de repente iluminando minha mente numa ideia insana e arriscada. Convencido de que era a minha única escapatória, ainda que estivesse apreensivo, me apaguei a ela de corpo e alma.

Seria ou tudo ou nada.

— E então, como vai ser? Decidiu o que vai querer? – o demônio perguntou impaciente.

— Vai pro inferno! Não pretendo me matar e nem deixar que um otário como você me mate!

Irritado, ele fechou os punhos com força e semicerrou os olhos.

— Então vou fazer as coisas do meu jeito!

Em seguida, o youkai disparou em minha direção com o intuito de me atingir com sua força máxima. Me concentrei ao fechar os olhos, focando-me apenas em sentir seu youki no instante em que encostasse em mim. Assim, no momento exato em que seu punho me atingiu e sua barreira passou a me envolver, materializei a lâmina dimensional cortando-lhe o antebraço. Seus olhos me encaravam arregalados no momento em que o arranquei de seu corpo, espirrando sangue para todos os lados. Porém, inevitavelmente fui impulsionado pra trás após ser atingido pelo forte impacto de seu golpe, sendo arremessado em seguida para dentro daquele imenso volume de ácido atrás de mim.

Antes de submergir por completo naquele tanque, pude ver pela última vez o semblante furioso e surpreso do demônio ao olhar para seu próprio corpo jorrando sangue de maneira incessante.

A ponto de ser engolido pelo ácido, prendi a respiração e, em seguida, tudo ficou escuro.

KUWABARA POF

Incrédulo, o demônio de magreza excessiva caiu de joelhos no chão agarrado ao seu braço, cujo uma parte fora arrancada por completo de seu corpo e levada para o tanque de ácido junto àquele garoto humano.

— D-desgraçado...– Bakugo murmurou irritado, enquanto pressionava o ferimento na tentativa de estancar a hemorragia – ...como ele conseguiu perceber?!

— Isso é pra você aprender a não se meter com quem é mais forte que você. Não é porque seu youki funciona como uma barreira que ninguém poderá atingí-lo – Shinzou retrucou aproximando-se do youkai ferido – Mas isso não importa. Ele percebeu tarde demais e acabou perdendo a vida. Agora nós podemos nos aproveitar disso.

— Como assim? – horrorizada com todo o sangue que se espalhava pelo chão, Chiharu perguntou ao youkai mais velho, confusa.

— Os amigos dele não sabem que está morto. Sendo assim, a partir de agora ele será o nosso mais novo refém.


(1) No Japão o sepultamento não é uma prática comum, porque a maior parte da população é segue o budismo ou o xenotoísmo, que não aceitam a ideia de deixar o corpo humano entrar em decomposição. Então, a cremação é a prática mais comum no Japão (em 99% dos casos), e a maioria dos cemitérios são feitos para deixar cinzas do falecido, diferente dos nossos.

(2) Apenas lembrando que, apesar de Yusuke ser chamado de "filho de Raizen", Raizen nunca foi o pai biológico do Yusuke. Essa denominação foi dada apenas pelo simples fato do Yusuke ter herdado o gene youkai ancestral de Raizen.


"Sua autora maluca, que história é essa de refém?"

Calma calma! Ficou confuso no final? As explicações estão por vir nos próximos capítulos! De qualquer forma, podem perguntar o que quiserem, pois sanarei todas as dúvidas na medida do possível xD

Esse capítulo é importantíssimo pra mim por motivos de: POV do Kuwabara! Até o momento não tinha feito nenhum dele, não por achar ele menos legal que o resto, mas sim por estar esperando o momento adequado. E sinceramente? Gostei muito de trabalhar com o Kuwabara. O trabalho fluiu com muita facilidade pra mim, talvez porque ele seja o personagem que mais se assemelha comigo.

ps: tadinho, logo no seu primeiro POV eu já esculacho com ele hahahaha sacanagem né?

Curiosidade sobre esse capítulo: eu tive que modificá-lo várias vezes, censurando cenas do rascunho original, porque o que eu tinha escrito estava pesado demais. Ainda que a história esteja com a classificação de 18 anos, eu achei melhor pegar mais leve :P