YUSUKE POV
— Isso não é possível...— Asuka vociferou perplexa, ainda pressionando o rosto de Kiara.
Tensos, Kurama, Hiei e eu permanecemos paralisados diante de tudo o que havia acontecido. Derrotada, Kiara não tinha como escapar daqueles youkais e, impotentes devido à barreira, não podíamos ajudá-la a sair daquela situação.
— O que foi?! O que você viu, Asuka? — o youkai chamado Hadog perguntou.
— As memórias dela...— ela hesitou — Achei que só estava se fazendo de idiota, mas pelo visto realmente não sabe de nada. Será que é mesmo a garota certa?
— Não há dúvidas de que é ela. Com ou sem memórias, precisamos levá-la embora daqui. Nós já perdemos muito tempo, Asuka! — o youkai mais velho a respondeu.
— Eu sei disso, Shinzou!
A contragosto, Asuka segurou Kiara nos braços, ainda exibindo uma expressão incerta no rosto. Desesperado, de repente voltei a mim, tentando mais uma vez derrubar a parede que nos impedia de agir.
— Larga ela! — gritei ao ver os meus golpes fracassarem novamente.
Asuka me ignorou, dando as costas para nós a fim de se juntar aos seus companheiros.
— Mandei largar ela! — fechei o punho ao socar a barreira com toda a energia que possuía. Ela ressoou, fazendo com que a youkai se voltasse em minha direção, preocupada.
— Não precisa temer, Asuka. Eles só poderiam fazer algo se estivessem dentro da redoma — Bakugou tentou tranquiliza-la.
— E quem disse que não estamos?!
Foi repentino, rápido e certeiro. Um lampejo de luz brilhante vindo detrás do conjurador o atingiu em cheio, fazendo com que o demônio caísse no chão no mesmo instante, tão desacreditado quanto o resto de nós. Inevitavelmente sorri ao ver a silhueta de Kuwabara segurando a espada dimensional, completamente aliviado por saber que ele estava vivo.
— M-mas como?! Você caiu no ácido...d-deveria estar m-morto! — ofegante, o youkai disse com dificuldade, incapaz de se levantar do chão.
— É verdade. Mas eu não caí porque você me jogou lá, e sim porque eu quis! Como você mesmo falou, todo o seu corpo produz uma barreira que nem você consegue controlar a existência. Quando você me atacou, me envolveu na sua proteção, então me agarrei firmemente a sua mão cortada antes de cair no ácido e fiquei envolto pela barreira tempo o suficiente para que vocês pensassem que morri. E agora, sem que você percebesse, eu pude observar que você também fica vulnerável quando projeta seu youki em algum lugar, exatamente como estava fazendo há pouco. Durante a nossa luta você não parou de me chamar de burro, e quer saber? Talvez eu seja burro mesmo! Mas antes burro vivo do que sábio morto!
Kuwabara terminou por fincar a espada dimensional nas costas do youkai, dando fim à sua vida de uma vez por todas.
Pisquei algumas vezes tentando ter certeza de que tudo aquilo era real. Em choque, Asuka ainda segurava Kiara nos braços e, amedrontada, mantinha-se com os olhos arregalados em minha direção. Avancei um passo, pisando exatamente no local onde a barreira deveria estar, e esbocei um sorriso ao perceber que ela já não existia mais.
— Cuidem deles! — no mesmo instante, a mulher ordenou para os demais youkais, abrindo as asas para alçar vôo e fugir dali com Kiara.
— Dessa vez você não vai escapar! — focado somente em Asuka, ignorei os demais demônios ali presentes.
Dominado pelo ódio, senti uma crescente onda de adrenalina tomar conta de mim, e desviando de todos, parti pra cima da youkai. Ao vê-la se afastar do solo, tomei impulso e saltei em sua direção, igualando nossas alturas.
Espantada, Asuka arregalou os olhos ao perceber que não havia escapatória.
— LEIGAN! — sem poupar energia, a atingi nas costas, garantindo que dessa vez não pudesse sobreviver ao golpe.
Ao receber toda a carga da explosão, Asuka inevitavelmente soltou Kiara num reflexo. Na sequência, antes que a garota atingisse o solo, Kuwabara a segurou. Me juntei a eles ao ver o corpo de Asuka se chocar violentamente com uma lápide do cemitério, moribundo e imóvel, me dando a certeza de que, dessa vez, ela estava completamente derrotada. Sua energia vital havia desaparecido completamente e a luz abandonado o seu olhar.
— Tá maluco, Urameshi? Podia ter ferido Kiara ainda mais!
— Foi mal Kuwabara, mas eu tava muito puto! Você tá bem?
— Mas é claro que sim! Acreditou mesmo que eu tinha morrido pra esse bando de imbecis? Está me subestimando muito, não acha?! — ele questionou em tom de reprovação.
— Nem tanto. Pelo que parece você levou uma surra, ou estou errado? — aprontei para os seus hematomas, arrancando-lhe um sorriso.
— Kazuki...— ainda desacordada, Kiara resmungou nos braços de Kuwabara, chamando a nossa atenção.
Atento ao nosso objetivo, procurei por Kazuki naquele cemitério, deparando-me com Hiei e Kurama enfrentando os demais youkais daquele grupo. Hiei lutava com o mais velho, enquanto Kurama desafiava o metamorfo da equipe. Já a criança chamada Chiharu, recuava cada vez mais pra longe dali, trêmula e amedrontada, arrastando consigo o irmão de Kiara.
Ao serem golpeados por Hiei e Kurama, Shinzou e Hodag foram repelidos para longe. Irritados, desistiram de contra-atacar ao perceberem que não tinham chances de nos vencer.
— Entreguem Kazuki e deixamos vocês vivos! — em busca de um acordo, sugeri antes que o ameaçassem.
— Fale por você, Yusuke — Hiei retrucou irritado — Deixá-los vivos não está nos meus planos.
— Para com isso, Hiei. Nós viemos aqui resgatar o garoto e...
— E o que te faz pensar que isso resolverá tudo? Por mais que o resgate agora, não nos deixarão em paz. Você não percebe?
— Hiei tem razão, Yusuke — Kurama interveio — Essa história não termina aqui. Estão agindo a mando de alguém. Não podemos deixá-los ir. Isso só nos traria problemas.
— Se não nos entregarem a garota, mataremos o irmão dela — Shinzou agarrou Kazuki pelas suas vestes, tal como Asuka havia feito anteriormente.
— Ah qual é?! Vocês estão em completa desvantagem! Somos quatro e vocês só dois, porque nem da pra considerar essa pirralha aí na contagem! — Kuwabara apontou para a garotinha que, amedrontada, se afastou ainda mais, tentando se esconder atrás de seus companheiros — Vai mesmo querer arrumar briga com a gente?
— Entreguem-na! — ele respondeu — Agora!
— Idiota...
— O idiota aqui é você por tentar argumentar com esse tipo de gente — Hiei retrucou dirigindo-se a Kuwabara — Numa situação como essa só existe uma maneira de resolver as coisas.
Ninguém precisou perguntar qual, pois naquele mesmo instante Hiei desapareceu de nosso campo de visão, indo de encontro ao inimigo.
— Cuidado! — sendo capaz de acompanhá-lo com os olhos, a criança tentou alertar Shinzou sobre o perigo. No entanto, era tarde demais.
A katana de Hiei lhe travessou o braço, fazendo com que o demônio soltasse Kazuki. Estando sob controle mental, o garoto tentou atacar Hiei por trás, mas com apenas um empurrão foi lançado pra longe dali, ainda que não expressasse dor alguma. Aproveitando-se da guarda baixa do youkai de fogo, o adversário parecia decidido a contra-atacar. Ao notarmos sua intenção, Kurama e eu avançamos para interceptar os seus movimentos.
No entanto, contrariando as nossas expectativas, Shinzou apenas estendeu o braço intacto em nossa direção, impulsionando de uma só vez nós três para trás, nos reunindo com Kuwabara e Kiara por consequência. Tentei novamente me mover em sua direção, porém os meus músculos não me obedeciam. O mesmo parecia acontecer com Hiei e Kurama. Enquanto tentávamos escapar daquele controle telecinético, o youkai percebeu que não conseguiria nos manter congelados por muito tempo. Assim, também se juntou aos seus companheiros.
— Traga-o Chiharu, agora! — ele ordenou para a menina.
Em resposta, ela arregalou os olhos espantada.
— M-mas...— ela gaguejou —...é muito perigoso!
— Mandei trazê-lo! — ele ordenou furioso.
Cedendo ao desejo do mais velho, envolvida por uma aura púrpura, Chiharu ergueu as mãos tremulas e hesitantes para cima. De repente, uma forte ventania invadiu o cemitério. As nuvens presentes no céu escuro agruparam-se formando um redemoinho. Ao centro dele, a mesma luz púrpura emanada por Chiharu cintilou.
Sem compreender o que estava acontecendo, nem ao menos notei que Shinzou havia nos libertado de seu controle telecinético. Completamente livre, fui incapaz de me mover, totalmente hipnotizado por aquele fenômeno.
De súbito, um grito forte, agudo e ensurdecedor ressoou de dentro do redemoinho. Em meio àquelas nuvens, uma silhueta humanoide surgiu. Batendo asas em nossa direção, aproximava-se em alta velocidade. Semicerrei os olhos na tentativa de enxergá-lo melhor e me espantei ao captar cada detalhe daquela criatura.
— O que diabos é aquilo?! — Kuwabara perguntou assustado.
Sem saber a resposta, permaneci calado e imóvel.
Por baixo de uma fina camada de pele que parecia prestes a arrebentar a qualquer instante, ela possuía a superfície do corpo irregular e viscosa. Sua cor escura a camuflava no céu noturno, e os ossos proeminentes em seu tronco a deixavam com um aspecto cadavérico. Os braços e pernas eram desproporcionais ao restante de seu corpo, a obrigando a se mover numa postura curvada. Possuía uma longa e pontiaguda cauda e um único par de asas saía de suas costas, eretas e longas. Por fim, olhos vermelhos, sem distinção entre esclera, íris ou pupila, lacrimejavam um líquido vermelho vinho, como se derramasse lágrimas de sangue.
Revelando seus inúmeros dentes afiados e irregulares, o monstro gritou mais uma vez, fazendo o meu corpo inteiro vibrar paralisado. Aquilo era...medo?! Senti o meu estômago afundar num vazio profundo. Engoli em seco ao vê-lo descer em nossa direção, voando rasante ao pavimento.
Inesperadamente, ele primeiro atacou Chiharu, Kazuki e os outros dois youkais do grupo, deixando claro que não eram aliados. Porém, antes que pudessem ser atingidos, desapareceram de repente, quando, agilmente, a garota conjurou uma espécie de portal capaz de retirá-los dali. Sem tempo para protestar pela fuga dos quatro, voltei a minha atenção para o monstro que contornava o céu a fim de redirecionar o seu ataque para nós. Ao ver a intenção hostil em seus movimentos, me adiantei, atacando-o a longa distância antes que pudesse nos alcançar.
— Leigan!
O golpe o atingiu em cheio. De longe, pude ver jorros de sangue extravasaram de seu corpo, retaliando a sua pele fina. Cego por alguns segundos instantes devido à enorme quantidade de poeira levantada pela explosão, me assustei ao ver, de repente, a sua silhueta ressurgir dentre as sombras. Meu golpe não surtiu nenhum efeito?!
Focado somente em mim, o monstro acelerou de repente. Num reflexo, cruzei os braços na frente do rosto com o intuito de me defender de sua investida. No entanto, antes que ele pudesse atingir seu objetivo, um vulto azul atravessou o meu caminho, interceptando o seu ataque. Piu, que antes estava escondido numa região afastada da ilha, pulou na minha frente, recebendo o impacto do golpe em meu lugar. O grito de dor que emitiu ao receber a fincada dos dentes daquele demônio sobre sua pele, fez o meu corpo estremecer da cabeça aos pés. Ainda assim, com sucesso, a ave espiritual foi capaz de empurra-lo para trás, o afastando de todos nós.
Aproveitando a deixa, Kurama e Hiei o atacaram simultaneamente com golpes à longa distância. Imobilizado pelo Rose Whip, o monstro foi atingido pelas chamas negras de Hiei, tingindo novamente o cemitério de vermelho. A princípio, o ataque em conjunto pareceu surtir efeito. Queimado e gravemente ferido, ele caiu ao cambalear para trás. No entanto, rapidamente se recompôs, colocando-se de pé antes de tentar uma nova investida.
— Que merda, essa coisa não para?! Precisamos tirar Kiara daqui, depressa! — Kuwabara me alertou, ainda a segurando em seus braços.
— Fácil falar! — vociferei irritado.
Não tinha ideia de como destruir aquele youkai, tampouco de como poderíamos escapar dele. Para o meu alívio, Kurama parecia ter um trunfo nas mangas.
— Não se mexam! — ele nos ordenou de repente.
Não foi fácil obedecê-lo, principalmente porque a criatura novamente disparava em nossa direção, deixando um enorme rastro de sangue por onde quer que passasse. Ao vê-la se aproximar, Kurama lançou diminutas sementes no solo, que instantaneamente foram absorvidas, desaparecendo nas profundezas daquela terra. Me esforcei para permanecer imóvel, enquanto o demônio avançava para cima de nós. Ele chegou tão perto que foi possível sentir o cheiro pútrido e azedo que exalava. Aquilo atingiu diretamente o meu estômago, o revirando em náuseas. Pensei que seríamos engolidos pelo monstro quando, de repente, ao sobrevoar a região em que as sementes haviam sido implantadas, raízes grossas começaram a emergir do chão, rompendo a resistente camada superior as encobria.
Rapidamente os ramos do vegetal o envolveram, agarrando cada membro de seu corpo. O demônio se contorcia, tentando se livrar das raízes que o prendiam, no entanto, por mais que conseguisse rompê-las, elas voltavam a crescer mais fortes e resistentes do que antes. Por fim, ele terminou sendo engolido para dentro de um casulo grosso e impenetrável, constituído de inúmeras e poderosas ramificações.
— Isso irá matá-lo? — perguntei esperançoso.
— Não sei! É uma planta estranguladora. Ela é atraída por movimentos. Quanto mais ele tentar escapar, mais ela se sentirá ameaçada e tentará sufocá-lo. Vamos aproveitar pra sair daqui enquanto ele ainda está preso. Mas tomem cuidado, porque essa planta não faz distinção entre suas presas, portanto, irá atacar qualquer um de nós. Subam no Piu depressa!
Num único salto, juntos conseguimos nos colocar sobre a ave espiritual. De fato, algumas raízes tentaram nos agarrar, mas Kurama rapidamente foi capaz de reprimi-las. Quando me dei conta, já estávamos levantando vôo, deixando para trás aquele monstro enclausurado, cujos gritos tornaram-se abafados pela prisão em que se encontrava.
Antes que pudesse suspirar aliviado, conforme nos afastávamos, me surpreendi ao vê-lo inesperadamente colocar as suas garras para fora do casulo. Aparentemente, a planta parecia estar perdendo força. Assumia uma coloração acizentada, enquanto que as grossas e robustas raízes murchavam gradativamente, dissolvendo-se num líquido enegrecido a sua volta. Aos poucos o demônio conseguiu libertar os seus braços e, em seguida, o tronco. Até que, por fim, estava completamente livre. Apesar da escuridão da noite, ele não demorou pra nos rastrear com os seus vívidos olhos escarlates sedentos por sangue. Alçando vôo em nossa direção, voltou a nos perseguir.
— Acelera Piu! — ordenei a ele, desesperado.
Piu aumentou a sua velocidade, de tal forma que em pouco tempo já não se enxergava mais a criatura, o cemitério ou a ilha. Absolutamente tudo havia ficado para trás.
Sobrevoando as nuvens no céu, a atmosfera que pairava entre nós era de pura tensão. Alertas a qualquer movimento suspeito, ninguém ousava dizer nada. O vento congelante cortava a minha pele violentamente e ressoava em meus ouvidos, fazendo vibrar os meus tímpanos. Minha respiração acelerada me obrigava a puxar o ar para os pulmões com uma força além da necessária, me causando uma sensação e desconforto.
— Está vindo dali — utilizando o Jagan, Hiei disparou de repente ao indicar uma direção.
Forcei a vista à procura do inimigo. Camuflado pelo céu noturno, somente pude enxerga-lo quando já estava muito próximo. Apesar de ferido, inacreditavelmente o medonho demônio parecia obstinado a nos alcançar, ignorando os ferimentos em carne viva em seu corpo dilacerado. Como conseguia continuar de pé, afinal?!
Ao meu lado, Hiei desenfaixava o braço, revelando o dragão negro sob sua pele. Pelo visto, estava disposto a dar tudo de si para matar o inimigo. Decidido a seguir pelo mesmo caminho, mais uma vez apontei o indicador em direção ao nosso adversário, sem intenção de economizar a minha energia. Na sequência disparei o Leigan, que unido ao dragão de fogo de Hiei, engoliu por completo o nosso alvo.
Ao ser atingido, o monstro grunhiu. Consumido pelo fogo e pela explosão, ele foi arrastado para longe dali pelo enorme dragão negro, de tal forma que novamente o perdêssemos de vista na escuridão. Naquele momento, senti que Piu havia acelerado ainda mais, seguindo em direção ao templo de Genkai em sua máxima velocidade.
Em dúvida se o havíamos despistado, Hiei sondava toda a área que nos circundava, observando qualquer sinal da presença da criatura. Após um longo período de tensão, decidi quebrar o silêncio, pressentindo que chegávamos ao nosso destino.
— Acha que ele morreu?
— Não sei. Não pude mais localiza-lo com o Jagan. Não dá pra saber se está morto ou vivo, mas pelo menos parece ter nos parado de seguir.
— Pode ter ficado incapacitado de voar — Kurama sugeriu.
— É possível. As asas devem ter queimado — Hiei observou.
Com dificuldade, Piu aterrissou de qualquer jeito nas terras da mestra Genkai, num movimento brusco e desajustado. Incapaz de continuar avançando devido aos ferimentos em seu corpo, eu sabia que todo aquele esforço só o havia prejudicado ainda mais. Ao pisarmos no solo, Kurama tratou de agilizar os cuidados com Kiara, que devido ao golpe de seu irmão, permanecia desacordada. Ele rasgou as suas roupas no local onde havia sido perfurada, expondo a pele cortada da garota. De prontidão, tratou de limpar a ferida para que pudesse examina-la cuidadosamente.
— Tome — ele estendeu a mão, me oferecendo um pequeno frasco cujo conteúdo viscoso eu desconhecia — Faça o mesmo com Piu, ele não está bem.
Assenti tomando o vidro de sua mão para, em seguida, dar a devida atenção a ave espiritual. O local em que o demônio havia afundado as suas presas estava enegrecido, e uma mistura de pus e sangue escorria da ferida. Ao sentir o toque de minha mão sobre seu machucado, Piu estremeceu.
— Aguenta firme, amigo. Você vai ficar bem...— o acariciei tentando amenizar a sua dor. Ele fechou os olhos, exausto — Sinto muito por te fazer voar tão rápido nessa condição. Não era pra nada disso ter acontecido! Se você não tivesse aparecido naquela hora, eu estaria em apuros agora...
Em resposta, ele tentou erguer o pescoço para me encarar, mas acabou desabando novamente sobre o chão. Ao terminar a limpeza, decidi deixá-lo descansar.
— Estranho...— ao meu lado, Kurama murmurou debruçado sobre o ferimento de Kiara.
— O que foi? Como ela está?
— O corte foi profundo, mas...— ele hesitou um tanto intrigado —...não está tão ruim. Quer dizer, obviamente está ruim, mas de alguma forma ela conseguiu minimizar os danos e conteve a hemorragia interna. Estou impressionado com a habilidade de cura que Kiara possui. Um ser humano comum provavelmente teria morrido.
— Mas eles não queriam matá-la.
— Não. Sabiam que ela não morreria, mesmo com a facada. Eles já tinham conhecimento sobre a sua capacidade de cura.
Kurama retirou das mangas uma porção de ervas de coloração amarela vibrante, improvisando um curativo em cima do ferimento de Kiara.
— São ervas medicinais do Makai — ele comentou ao perceber como eu me fixava em cada um de seus movimentos — São cicatrizantes e coagulantes. Com isso ela logo acordará, já que fez boa parte do serviço de recuperação. Também farei um curativo no Piu, porque está em estado grave. Diria que até mesmo pior que Kiara.
Concordei, me afastando a fim de lhe dar espaço para que pudesse cuidar de Piu. Num misto de alívio e preocupação, suspirei cansado, sem saber como agir em seguida.
— E o que vamos fazer quando Kiara acordar? O que deveríamos dizer a ela? Com que cara eu vou falar que não trouxemos o seu irmão de volta?! — cerrei os punhos, socando o chão de raiva.
— Yusuke a culpa não foi sua, você sabe disso. Não pudemos evitar a fuga deles.
— Eu sei Kurama, mas eu prometi que traria o garoto de volta e não consegui! Tudo que a fizemos foi em vão. Nunca me senti tão inútil!
— Cala a boca Urameshi! — repentinamente, Kuwabara me agarrou pela gola da camisa — Como se a situação não fosse ruim o suficiente, você ainda fica falando asneira! Nada disso foi em vão! Afinal, conseguimos vencer alguns deles, não é? Aos poucos eles estão se desfazendo e não vão poder ficar se escondendo pra sempre.
Ao perceber que eu não revidaria à sua fúria, ele me soltou para, em seguida, se afastar de mim.
— Eu nunca pensei que fosse dizer isso, mas Kuwabara tem razão — Hiei arqueava as sobrancelhas, surpreso com as suas próprias palavras — Se o nosso objetivo não foi cumprido, o deles muito menos, já que também não conseguiram capturar a garota.
— Exatamente — Kurama concordou — E quanto a Kazuki, apenas adiamos o retorno dele pra casa. Eles não vão matá-lo. Tenho certeza que continuarão o usando para atrair e chantagear Kiara.
— É...vocês estão certos. Mas mesmo assim vai ser difícil contar a ela.
— Covardes...— Kuwabara vociferou bufando de raiva —...todos eles são covardes! Preferem ficar se escondendo nas sombras de uma criança inocente. Isso é imperdoável! Por que o líder deles não mostra a cara, afinal?!
— Essa é uma boa pergunta, Kuwabara. Por quê? — Kurama o respondeu pensativo.
Exausto demais para questionar qual era a sua hipótese, decidi que deixaria esse assunto para uma outra hora.
— E afinal, o que era aquela coisa? — a voz de Kazuma saiu trêmula, evidenciando o medo que a lembrança lhe causava — Era diferente de todos os youkais que já conhecemos. Tem alguma ideia, Kurama?
— Não. Nunca vi algo como aquilo em toda a minha vida. Mas está claro que não era um youkai comum.
— Se é que aquilo era mesmo um youkai — Hiei retrucou.
Estremeci com a ideia. De onde mais aquela criatura poderia ter vindo, senão do Makai? Enquanto Kurama terminava de tratar os ferimentos de Piu, permanecemos em silêncio, inconformados com tudo o que havia acontecido.
— Pronto — ele anunciou após finalizar o trabalho medicinal — Precisamos voltar depressa. Os ferimentos de Piu são muito graves. Tenho certeza que ele receberá melhores cuidados no Mundo Espiritual. O que fiz apenas quebrará o galho. Além disso, temos que conversar com Koenma o quanto antes.
— Por quê? — o questionei sem entender a urgência.
— Acho que ele sabe muito mais sobre toda essa história do que nos contou.
Franzi o cenho intrigado. No entanto, antes que pudesse respondê-lo, um gemido de dor quase inaudível roubou a minha atenção. Ao olhar para trás, vi Kiara abrir os olhos lentamente, enquanto se apoiava no solo para tentar se levantar.
— Kiara! Você está bem?! — Kuwabara perguntou ao se aproximar — Não se mexa, está muito ferida!
Kazuma tentou impedi-la de se movimentar, mas a garota não lhe deu a mínima atenção. Pressionando o ferimento, esboçou uma expressão de dor, enquanto erguia o tronco do solo, até que, por fim, conseguisse se sentar.
— O curativo estancou o sangramento, mas se fizer muito esforço, voltará a sangrar. Tome cuidado, Kiara — Kurama a alertou.
— O que aconteceu com Kazuki? Onde estamos? — fraca, ela perguntou indo direto ao ponto, ignorando o próprio estado deplorável.
— Estamos nas terras da Genkai. Eu sinto muito, mas não conseguimos resgatar Kazuki... — respondi cabisbaixo, incapaz de encara-la diretamente nos olhos.
— Quer dizer que ele...?
— Não! — neguei veemente com a cabeça — Ele está vivo, mas aqueles outros youkais o levaram, de novo.
Adicionando os detalhes mais importantes, lhe explicamos tudo que houve desde o instante em que ela havia perdido a consciência. Paciente, ela esperou que terminássemos antes de voltar a falar.
— Entendo. Então vocês não tiveram chance alguma.
— Nós sentimentos muito, muito mesmo! — Kazuma disse.
— Você não precisa sentir, e nem pedir desculpa, Kuwabara. Nenhum de vocês precisa. Muito pelo contrário, vocês me ajudaram muito. Fui eu que falhei em resgatar Kazuki.
— Não. Nós todos falhamos — Kurama retrucou.
— Mas na próxima vez nós vamos conseguir! — Kuwabara tentou dizer em tom animador, embora a sua expressão excessivamente forçada não tenha sido convincente.
— Não. Vocês não precisam se meter nisso de novo. Acabaram se ferindo também. É melhor que vocês voltem sem mim e sigam o seu próprio caminho.
— Não começa com isso...— revirei os olhos irritado — Você não tem pra onde ir. Além disso, nós já estamos envolvidos nesse caso. Koenma nos pediu pra investigá-lo, esqueceu?
— Não quero mais ver ninguém se ferindo por minha causa.
— Entendemos que esteja chateada, mas não vamos te deixar aqui — Kurama respondeu — Juntos, podemos resgatar o seu irmão.
— Não podemos. Eu nem ao menos sei se Kazuki ainda tem salvação.
— Do que tá falando? É lógico que tem! — Kuwabara protestou raivoso.
— Como?! Tirar o amuleto não funcionou. Então, me diz como! — inevitavelmente os seus olhos se encheram água, ainda que nenhuma lágrima tivesse escorrido em seu rosto.
— Eu não sei, mas a gente vai dar um jeito de descobrir!
— Por favor...vão embora. Eu quero ficar sozinha.
Cansada, Kiara deu as costas pra nós, ainda pressionando a ferida em seu abdômen. Por fim, recostou-se numa árvore mais distante, com a esperança de que a obedeceríamos. Pensei em me aproximar, mas não o fiz. Certo de que toda a sua chateação tinha fundamento, não sabia a maneira certa de abordá-la. Levá-la à força para o templo seria fácil, mas nos traria ainda mais problemas. Então, o que deveríamos fazer?
— E pretende ficar aí se lamentando pelo resto da vida? — absorto em meus pensamentos, nem notei que Hiei se aproximava da garota. Por não ter reabsorvido o dragão, seu semblante cansado era evidente, embora tentasse disfarça-lo ao máximo.
Ela o ignorou, tentando permanecer de pé enquanto se apoiava naquele enorme tronco.
— Se acha que seu irmão não tem mais jeito, por que não acaba com a vida dele de uma vez por todas?
— Cala a boca — ela respondeu num impulso, mesmo sem encara-lo diretamente.
— Se for pra ser controlado pelo resto da vida, é melhor que morra de uma vez, não é? — Hiei continuou com a provocação, sem se importar com as eventuais consequências.
— Cala essa boca! — Kiara retrucou ainda desviando o olhar.
— Qual o problema? Não consegue aguentar a verdade? Se não tem coragem de matá-lo, pode deixar que eu mesmo mato. Vou estar fazendo um favor pra você, tirando esse peso das suas costas, e também pra ele, para que não seja mais usado pelos outros.
— Como é que é?! Se encostar nele, quem morre é você!
Bingo. No mesmo instante, Kiara se virou em sua direção.
— Não foi você mesma que disse que ele não tem salvação? Então pra que essa revolta?
Deixando de lado os seus ferimentos, ela tentou golpeá-lo. No entanto, Hiei facilmente bloqueou a investida, segurando o seu punho antes de ser atingido.
— Tem coragem de me atacar mesmo estando sem força alguma? — ele esboçou um sorriso de deboche — Ver a forma como age me faz pensar que o seu irmão está melhor agora do que quando vivia com você.
Irritada, ela tentou atacá-lo mais uma vez, porém novamente Hiei escapou. Mesmo assim, Kiara não desistiu. Tão obstinada quanto aquela fera que tentava nos capturar há alguns instantes atrás, ainda que estivesse enfraquecida, iniciou uma sequência de golpes para atingi-lo.
Senti um calafrio percorrer a minha espinha quando um traço diabólico atravessou o seu olhar.
— O que deu no Hiei?! — Kuwabara exclamou ao se levantar para apartar a briga — Ele enlouqueceu?!
— Aguenta aí Kuwabara — o impedi de intervir — Fica tranquilo, não vai acontecer nada. Hiei sabe o que tá fazendo.
— Tá maluco, Yusuke? Pra que ele foi falar aquelas coisas horríveis pra ela? É um completo inconsequente!
— Só sossega aí, cara! — ordenei, o fazendo se aquietar descontente ao meu lado.
Ela golpeava Hiei com tudo que lhe restava, mas nada era suficiente para alcançar o seu objetivo. Sem força, velocidade e ferida, Kiara estava em total desvantagem. Talvez por isso ele não revidasse nenhum de seus golpes, permanecendo apenas na defensiva.
— Qual o problema? — Hiei perguntou ao notar como a garota respirava ofegante após as inúmeras investidas fracassadas — Isso é o que você sabe fazer de melhor?
— Eu não aguento mais! Você é insuportável! — mais uma vez, Kiara tentou lhe desferir um soco no tórax, no entanto, tal como das outras vezes, ele facilmente bloqueou o golpe ao segurar o seu punho.
Aproveitando a proximidade, ela inesperadamente roubou a katana que estava presa no coldre de Hiei, uma vez que a sua havia se perdido no campo de batalha. Em seguida, agarrando-o pelo braço para que não pudesse fugir, tentou atingi-lo com o sabre, o obrigando a se defender com o punho livre. O youki de fogo o protegeu do ferimento que seria provocado pela lâmina afiada da espada. Em seguida, ao bloquear o golpe, Hiei a desarmou torcendo-lhe o pulso. A katana caiu ao chão no mesmo instante em que Kiara girava o corpo para lhe desferir um forte chute no rosto, o fazendo recuar alguns passos.
— Não é por nada não, mas ele mereceu — Kuwabara cochichou ao meu lado, arrancando um riso baixo de Kurama.
Ao se voltar em direção à adversária, Hiei massageava a região atingida, avaliando o estrago.
— Hum...assim está bem melhor, não é? — por fim, perguntou a ela ao recolher a arma caída no chão. Confusa, Kiara aliviou a postura de ataque, sem compreender o que ele queria dizer — É com essa vontade que você deveria enfrentar os imbecís que capturaram o seu irmão. Por que ao invés de ficar se lamentando pelo que aconteceu, não faz com eles o mesmo que acabou de fazer comigo?
— Não entendi nada — Kuwabara resmungou ao meu lado.
— Ele a irritou de propósito apenas para que ela reagisse. Hiei só estava tentando ajudar — Kurama lhe explicou dando de ombros.
— Bem, Hiei tem uma forma bem peculiar de tentar ajudar alguém, não é? — Kazuma retrucou ironicamente, ainda indignado com tudo aquilo.
Ele estava certo. Aquela era realmente uma maneira única de lidar com esse tipo de situação e, apesar de estranha, ainda assim era uma tática infalível. Hiei já a havia usado comigo uma vez, me fazendo reagir na marra quando estava tendo problemas semelhantes ao de Kiara (1).
— Você só falou tudo aquilo, porque não queria que eu desistisse de resgatar o meu irmão? — ao compreender o rumo que aquela conversa tomava, ela o respondeu visivelmente incomodada.
— Não. Falei porque você estava me irritando.
Surpresa, Kiara esboçou um sorriso antes de voltar a comprimir o ferimento em seu abdômen, que devido ao embate travado com Hiei, mais uma vez sangrava por debaixo do curativo. Antes que caísse no chão ao agonizar de dor, ele a segurou, impedindo a queda.
— Eu disse que voltaria a sangrar se você se esforçasse muito — Kurama a repreendeu, aproximando-se dos dois — Nos acompanhará até o templo, Hiei?
— Você sabe que não.
— É verdade... — ele o respondeu, tomando Kiara dos braços de Hiei, a fim de lhe dar apoio para que a garota pudesse caminhar de volta até a antiga residência de Genkai — Acha que consegue andar assim, Kiara? Quer dizer...imagino que vá continuar com a gente, não é?
Pensativa, ela o encarou por alguns instantes antes de responder.
— Sim...
Hiei deu as costas pra nós, sumindo dali num piscar de olhos. Juntos, Kuwabara, Kurama, Kiara e eu caminhamos pelo alvorecer, seguindo nosso caminho de volta ao templo, exaustos, fracassados e com mais dúvidas do que tínhamos quando saímos de lá.
Ainda assim, estávamos confiantes de que tudo aquilo era apenas o começo.
(1) episódio 80 do anime, caso alguém queira assistir de novo esse momento
Dessa vez peguei pesado com o pessoal, sobrou até pro Piu xD
Desculpem o capítulo enorme, mas não pude fragmenta-lo ainda mais. A partir daqui as coisas começarão a tomar um novo rumo. Os próximos capítulos reservam muitas explicações sobre o Mundo dos Deuses! :)
CURIOSIDADE: Fui conferir nos capítulos anteriores e percebi que ainda não coloquei o significado do nome da Kiara. Quem me conhece sabe que gosto de escolher nomes coerentes com os personagens (pelo menos na maioria das vezes). No caso da Kiara procurei muuuuito até achar o nome que me agradasse!
Kiara é um nome com uma interessante dubiedade, dependendo de sua origem. Um de seus significados é "clara/brilhante", vindo do italiano. Ao mesmo tempo pode significar "obscura", vindo do irlandês. Como a Kiara é uma personagem com dois tipos de energia diferentes (o que o povo dela chama de "luz" e "trevas"), achei esse nome perfeito! :)
