YUSUKE POV

— Antigamente, quando o Mundo estava longe de ter a mesma divisão que tem hoje, somente Deuses e uma série de criaturas místicas habitavam o nosso planeta — Koenma disse ao tomar fôlego, dando indícios de que aquela seria uma longa história.

Apesar de ansioso para ouvir o que o líder espiritual iria nos contar, o cansaço me atingiu em cheio quando a sua voz chegou aos meus ouvidos num tom monótono e vagaroso. Mal havia conseguido descansar na noite anterior e precisei desenterrar todas as minhas forças para conter a minha vontade de adormecer ali mesmo.

— Cada Deus tinha sua própria habilidade, e eles brigavam entre si usando seus poderes — ele continuou — O planeta era um verdadeiro caos. Não existia nenhum tipo de organização ou liderança. Era tudo uma grande bagunça, e cada divindade usava seu poder da maneira que mais lhe convinha para o seu próprio benefício. Demorou muito até que eles se dessem conta de como estavam usando suas habilidades da maneira errada e decidissem "consertar" as coisas, colocando ordem em toda a zona que eles mesmos haviam criado. Após muita discussão, chegaram ao consenso de que deveriam unir forças para tornar o nosso mundo um local habitável e harmonioso. Aquele parecia ser o início de uma era promissora, porém os Deuses não conseguiram ignorar os conflitos e divergências existentes entre eles. Foi então que guerrearam para decidir quem seria o líder entre todas as divindades e, portanto, quem comandaria a formação desse novo mundo que estavam propondo. Os protagonistas dessa guerra foram os Deuses Kenzo e Raikou que competiram arduamente pela domínio do planeta. Essa luta violenta resultou na vitória de Kenzo, que, naquela altura do campeonato, era chamado de "o Deus da Guerra e do Poder", considerado o mais forte entre os todos os Deuses.

Ao ouvir aquelas palavras, a sonolência repentinamente se dissipou quando, instantaneamente, me lembrei de que Raizen também havia sido apelidado de "Deus da Guerra" no Makai. Intrigado com a coincidência, encarei Koenma e, como se pudesse adivinhar o que eu estava pensando, o líder espiritual retribuiu o olhar numa expressão dura de quem não queria ser interrompido.

— Embora nem todos os Deuses concordassem com a liderança de Kenzo, todos o aceitaram, porque ele havia vencido a guerra justamente. Sob comando de Kenzo, os Deuses decidiram criar um novo mundo, sendo que a primeira coisa que a ser estabelecida por eles foi a divisão do planeta em duas camadas: o Mundo dos Deuses, habitado pelas divindades e demais criaturas míticas, e o Ningenkai, local a ser povoado por todos os seres vivos inferiores. O plano deles parecia promissor, no entanto, a vida como eles haviam idealizado não conseguiu progredir nesse novo mundo. O problema é que os Deuses, mesmo com os poderes que tinham, não conseguiam propiciar a evolução dos seres vivos, porque nenhum deles tinha a energia suficiente para permitir a sobrevivência de diversas espécies diferentes simultaneamente. Faltava alguma coisa.

— Como assim? — perguntei.

— O que é um corpo humano sem energia vital, Yusuke? O que permitiu que você ressuscitasse depois de ter sido atropelado?

— O beijo da Keiko — respondi sem pestanejar, fazendo com que o rosto dela ruborizasse de imediato.

— Exatamente. Naquele dia, Keiko compartilhou parte de sua energia vital com você. Sem ela, o seu corpo era apenas uma casca vazia. Seus órgãos poderiam até estar intactos, mas não funcionavam. Todas as criaturas, desde as mais simples até as mais complexas, precisam de energia vital para de manterem vivos. Por mais que os Deuses pudessem fornecer o ambiente adequado para a criação da vida, com todas os compostos e moléculas químicas necessários para a criação e sobrevivência dos seres vivos, ainda assim, sem a energia vital nada é possível.

— Como foi que eles conseguiram, então? — Kuwabara questionou.

— Eles recorreram aos anjos, seres puríssimos e com uma energia impressionante, chamada de Seikouki (1).

— Espera aí Koenma. Essa não era a energia que Sensui possuía?! — surpreso, perguntei a ele.

— Exatamente, Yusuke. Sensui dominava uma forma mais simples da Seikouki. É claro que ele não tinha exatamente a mesma energia de um anjo.

— Agora eu me lembro...— Kuwabara me encarou boquiaberto —...Sensui comentou algo sobre os anjos serem os mensageiros de Deus, e sobre o fato de no passado dominarem esse tipo de força (2). Na época achei que ele tava mal da cabeça, mas agora...

— É verdade. Anjos são os servos e mensageiros dos Deuses. São seres poderosos e muito justos. Além disso, por possuírem energia quase ilimitada, eles são capazes de transferirem a sua força para qualquer outro ser sem que sejam prejudicados com a perda da mesma. Justamente por isso, os Deuses decidiriam planejar uma seleção entre os anjos para decidir qual deles seria promovido ao status de Deus. Dessa forma, essa nova divindade doaria sua energia vital para todos os seres do planeta, sem precisar sacrificar a sua própria vida.

— Incrível! — impressionada, os olhos de Botan brilharam com a revelação.

— No entanto, anjos não nascem sendo anjos — Koenma continuou — Para que um candidato possa se tornar um anjo, é necessário que passem por um intenso processo de purificação para que possam obter de fato obter essa Energia Celestial. Tais rituais não são nada agradáveis. Inclusive, e muitos candidatos morriam no processo. Entre os inúmeros sacrifícios que precisavam fazer para se tornarem anjos, o principal deles era o de abandonar a visão. Uma vez na forna um anjo, a criatura não pode mais enxergar. Por isso, eles estão sempre com os olhos vendados, caso contrário, serão corrompidos pelas malezas do mundo.

— Como assim "corrompidos"? — Keiko perguntou.

— Existem dois destinos possíveis para um anjo que tente voltar a enxergar: caso eles tirem a venda por vontade própria tornam-se anjos decaídos, seres de natureza perversa, traiçoeira e malígna, que possuem energia oposta a Seikouki. Mas caso a venda seja retirada de um anjo à força, ele simplesmente morrerá.

— Credo! Que horror! — indignada, ela levou as mãos a boca ao arregalar os olhos.

— A questão é que, como eu disse, os Deuses planejaram uma seleção entre os anjos para decidir qual deles poderia atingir o status de Deus. Entre os concorrentes estavam Liora e Valarie. Sabe-se que elas costumavam ser companheiras, mas quando os Deuses anunciaram a seleção de um anjo a Deus, Valarie se demonstrou disposta a fazer de tudo para conseguir vencer a disputa. Esse foi o início do fim da relação amistosa das duas, pois se tornaram rivais, ainda que Liora nunca tenha alimentado esse sentimento de rivalidade contra Valarie. Ao final da competição, Liora ganhou a seleção e recebeu o título de "Deusa da Luz", capaz de doar parte de sua Seikouki para todas as criaturas que nasceriam no Ningenkai. Essa é a chamada "energia espiritual" que conhecemos hoje. Conseguem adivinhar o que aconteceu em seguida?

— Valarie não aceitou o resultado? — Kurama sugeriu.

Touché. Como Deusa, Liora tinha privilégios que os anjos não tinham, podendo viver uma vida muito diferente da que estava acostumada. A única coisa que ela precisava manter de seu status de anjo era a venda que cobria seus olhos. Inconformada com a decisão dos Deuses, e convencida de que seu sacrifício para se tornar um anjo foi completamente em vão, Valarie se auto-destruiu. Por vontade própria, ela tirou a venda de seus olhos e se corrompeu, tornando-se um anjo decaído. A verdade é que ela já estava há muito tempo consumida pela inveja, ódio e rancor de Liora, sentimentos incompatíveis com a natureza de um anjo. Foi então que, unindo-se aos demais anjos decaídos que existiam, Valarie decidiu destruir o mundo que os Deuses planejaram construir.

— Que loucura! — Kuwabara exclamou — E o que aconteceu depois?

— Irritados, os Deuses decidiram banir os anjos decaídos de seu mundo, criando aquilo que chamamos ainda hoje de Inferno para aprisioná-los. Naquele lugar inóspito, Valarie organizou uma rebelião comandando os seus semelhantes, ao elevar ao máximo a sua Seikouki invertida. Ali ela se auto-proclamou Delevit, a "Deusa das Trevas". Os anjos decaídos agora tinham sua própria líder, e juntos, conseguiram fugir em massa do Inferno. Em seguida, sob comando de Delevit, foram capazes de se unir para criar o seu próprio mundo: o Makai. Da mesma forma que Liora, a Deusa das Trevas decidiu doar sua energia para todos os seres vivos que ali nasceriam. Essa foi a chamada "energia demoníaca".

— Isso certamente gerou outra guerra, não é? — Kiara então perguntou.

— Sim. Como podem imaginar, os Deuses não gostaram da intromissão de Delevit na criação do planeta, pois o Makai não estava em seus planos originais. Foi então que uma nova guerra se iniciou. Porém, com o tempo, a própria Deusa Liora passou a questionar o objetivo daquela guerra. Em um dado momento, ao comparar as criaturas criadas com a energia demoníaca de Delevit com aquelas criadas graças à sua própria força, não conseguiu encontrar nenhuma diferença. Ambos eram seres vivos que lutavam pela sua sobrevivência. Assim, diante da injusta intolerância para com as criaturas de energia demoníaca, Liora resolveu interromper a guerra ao anunciar que todos os seres mereciam ter direito à vida, independente do tipo de força vital que possuíam. Segundo ela, tanto o Makai, quanto o Ningenkai poderiam coexistir.

— Mas com certeza Delevit se opôs a isso — Kuwabara se apressou a concluir.

— Muito pelo contrário. Na verdade, os outros Deuses decidiram continuar a guerra, no entanto, surpreendentemente Delevit cedeu, desistindo de dar continuidade àquele conflito. Aparentemente, a garantia de que ela teria a sua própria marca naquele mundo foi o suficiente para satisfazer o seu ego. Assim, depois de tanto discutirem, influenciados por Liora, os demais Deuses concordaram em permitir que ambas as energias existissem. Dessa forma, o Makai passou a ser aceito como mais uma camada daquele novo mundo. Surpreendendo a todos, a fim de selar aquele pacto de paz, as Deusas Liora e Delevit se fundiram em uma só. Foi então que Kana, a "Deusa da Justiça", nasceu. Ela foi capaz de dominar ambos os tipos de energia e doá-las à todos os seres vivos, sejam eles nascidos no Ningenkai ou no Makai. Assim, o mundo idealizado pelos Deuses pôde ser enfim criado. Depois disso, eles decidiram que, após ofertarem as condições necessárias para a vida pudesse avançar, não se intrometeriam mais. Desde então, o planeta evoluiu até chegar na condição que conhecemos hoje. Somente com a ascensão da racionalidade das espécies, os Deuses introduziram duas novas camada em nosso mundo: o Reikai, local onde as almas dos seres humanos seriam julgadas e enviadas ao Inferno caso não tivessem sido bons em vida, e o Meikai, que sucumbiu anos depois, quando Yakumo travou uma guerra com o meu pai (3). Originalmente o Meikai tinha a mesma função de controle que o Reikai, só que sobre o Mundo dos demônios.

— Uau... — Botan bufou, massageando as têmporas — Eu até que já tinha escutado alguns fragmentos da história, mas na realidade ela é bem mais complexa do que imaginava. Quanta informação!

— Isso aí é uma bagunça, isso sim! Não passam de um bando de Deuses birrentos brigando por motivos duvidosos — Kuwabara retrucou furioso.

— Assim como em qualquer guerra, não é? — Keiko o respondeu — Ou por acaso você conhece alguma que tenha sido travada por um bom motivo?

— Quantos Deuses existem ao todo, Koenma? — Kurama perguntou retomando o foco da discussão.

— Muitos! No entanto, podemos dizer que o mundo como conhecemos hoje é obra de dois grupos específicos, constituídos pelas divindades mais poderosas que existem. O primeiro grupo é formado por Kenzo, o "Deus do Poder" e vencedor da primeira guerra, encarregado de manter estável qualquer forma de poder ou força no planeta Terra; a "Deusa da sabedoria", capaz de conferir capacidade intelectual aos seres vivos; o "Deus do tempo" determinante do processo de senescência natural de todos os seres vivos; a "Deusa da afetividade", capaz de atribuir-lhes as mais variadas emoções; e a "Deusa da Justiça", capaz de conferir a energia vital que permite cada ser vivo ter, de fato, vida. O outro grupo é liderado por Raikou, perdedor da guerra contra pela liderança do Mundo dos Deuses, chamado também de "O Deus dos Trovões". Nesse grupo estão também a "Deusa das Águas", a "Deusa da Terra", o "Deus do Fogo", o "Deus do Ar" e a "Deusa das Plantas". Todos eles são responsáveis pelo fornecimento das condições necessárias para a criação da vida.

— Ué, mas por que os dividiu em dois grupos distintos? Não tinha dito que eles atuaram em conjunto na formação do planeta? — Keiko perguntou.

— Sim, atuaram em conjunto a mando de Kenzo. Como eu disse, ele venceu a guerra e lidera todos os outros Deuses. No entanto, nem todos gostam dele. Eu os dividi em dois grupos, porque foi isso que eles mesmos fizeram. A rivalidade entre Raikou e Kenzo nunca deixou de existir e cada Deus escolheu um lado para seguir, sendo fiel a um ou ao outro. Pelo que sei, as desavenças entre os dois grupos existem até hoje.

— Nossa! Bem temperamentais esses Deuses, não? — Botan zombou.

— É bem por aí. Não é à toa que existe tanta coisa errada no Mundo dos Deuses.

— O que quer dizer? — perguntei.

— Eles vivem falhando com as suas próprias regras. Como eu disse, uma vez criado o mundo, Kenzo determinou que eles não poderiam mais interferir na ordem do planeta. A vida deveria evoluir naturalmente, mas a própria Kiara aqui presente é uma amostra de que a lei foi quebrada.

— C-como assim? — assustada, ela retrucou na defensiva, como se tivesse sido acusada de cometer um crime.

— A Deusa Kana tinha que doar ou energia espiritual ou energia demoníaca para os seres vivos, mas escolheu um grupo específico de humanos para doar ambos os tipos de energia. Ela quebrou a regra e não foi a única. Kurama e Hiei também são exemplos — os dois encaram Koenma — O youki de vocês não é comum. O fato de poderem manipular plantas ou fogo também indica interferência externa de outros Deuses.

— E Jin conseguir manipular os ventos também significa...? — Kuwabara respondeu.

— Exato. Deus do Ar — Koenma o interrompeu — A função desses Deuses foi criar o planeta e só, não deveriam influenciar a vida dos seres que o passaram a habitá-lo. Cada Deus deu um jeito de intervir no nosso mundo de algum jeito.

— E por que Kenzo, o líder, não repreendeu os outros? — Kazuma retrucou confuso.

— Porque ele também quebrou as regras.

— Como é que é? Mas não foi ele que criou a droga da regra?! — perguntei — Que tipo de idiota se da ao trabalho de criar uma lei pra depois descumpri-la?! Isso não faz sentido nenhum.

— Yusuke, você não acha estranho que Raizen tenha sido apelidado de "Deus da Guerra" no Makai, o mesmo título de Kenzo no Mundo dos Deuses?

— Aonde quer chegar?

— Tamanho era o poder de Raizen, nunca se tinha visto nada igual. Sabe-se lá o que ele se tornaria se tivesse continuado a se alimentar. E de onde veio tanta força? Eu posso jurar que todo aquele poder havia sido concedido por Kenzo. Ou seja, Kenzo não poderia reeprender os outros Deuses, porque ele fez a mesma coisa.

Surpreso, arregalei os olhos no mesmo instante. Se Koenma estivesse certo, Raizen seria uma espécie de semi-deus...?

— Mas senhor Koenma...— Botan franziu o cenho antes de continuar — ...as pessoas que estão atrás de Kiara deixaram claro que estão querendo lutar contra os Deuses. Por que alguém faria isso? Quero dizer, quem iria ser louco o bastante pra tomar uma atitude dessa? Afinal, eles são invencíveis, não?

— Errado Botan. Deuses são muito poderosos e podem ter uma vida imortal, mas isso não significa que eles não possam ser mortos, embora matá-los seja bem difícil. Mas por que alguém atentaria contra a vida de um Deus? Não tenho ideia. Que eu saiba, isso só aconteceu uma vez.

— Como é que é? Tem mais história?! — Kuwabara arregalou os olhos.

— Após Delevit ter se fundido à Liora e a paz ser estabelecida entre os Deuses, Waru, outro anjo decaído, não ficou nada contente. Ele era o braço direito de Delevit e não se conformou com a desistência dela na guerra. Irritado, ele decidiu agir por conta própria para destruir qualquer forma de energia espiritual existente naquele mundo, planejando se livrar de Kana. No entanto, os seus planos foram descobertos antes que ele pudesse colocá-los em prática e, furiosos, os Deuses decidiram eliminá-lo. Mas Kana não permitiu. Para evitar mais problemas, ela simplesmente selou os poderes de Waru e o aprisionou na camada mais profunda do Makai.

— Mas então, já que está aprisionado, ele não pode ser o cara que tá atrás da Kiara — conclui sugerindo o óbvio.

— Até onde sei, ele continua preso no Makai e seria muito difícil se livrar de lá, já que a própria Deusa Kana está usando os seus poderes para garantir que continue preso. Ele só conseguiria fugir dali se, por algum motivo, ela morresse.

— O que não é o caso, porque se ela tivesse morrido todos os seres vivos teriam morrido junto, considerando que ela que alimenta a todos com energia vital — Kurama constatou.

— Exato. Podemos afirmar com certeza que nenhum Deus morreu até agora, se não já teríamos sentido as consequências. A homeostase do planeta depende deles.

— Então, podemos descartar esse cara como o nosso inimigo? — Kuwabara perguntou ao líder espiritual.

— Acho que não estamos em posição de descartar nenhuma possibilidade.

— Sabe dizer como os poderes desse cara foram selados? — esperançosa, Kiara então o questionou.

— Não. Dizem que ninguém além da própria Deusa Kana sabe, nem mesmo as demais divindades. É segredo absoluto. Quanto menos gente souber, melhor.

— É possível que eles tivessem sido selados em um objeto? É que esses caras estão procurando por alguma coisa e...— pensativa, ela hesitou antes de continuar —... o desgraçado que me atacou há meses atrás na aldeia Kimura, parecia meio instável.

— O que quer dizer? — perguntei.

— Tinha algo de errado com ele. Evidentemente era muito forte, mas ao mesmo tempo, frágil. Como se não estivesse sob total controle de seus próprios poderes.

Ao compreendermos o que Kiara sugeria, nos entreolhamos sem saber ao certo o que responder.

— Acha que o homem que atacou você e os seus companheiros era Waru?

— Não sei. Depois de ouvir a história dele, me pareceu coerente que fosse. É que ele era tão diferente de tudo que eu já vi, e tão...

Por algum motivo, ela interrompeu o pensamento, desistido de completar a sentença. No entanto, poderia jurar que pela expressão que fazia ao se lembrar do seu inimigo, teria dito algo como "aterrorizante".

— Que ideia estúpida — cansado de permanecer em silêncio, Hiei disse em tom de desprezo — Aprisionar o inimigo ao invés de matá-lo. Tem que ser muito imbecil.

— Talvez Kana não quisesse matá-lo, porque parte dela pertence a Delevit, antiga companheira de Waru. Eram amigos, afinal — Kurama retrucou, fazendo com que Hiei revirasse os olhos.

— Beleza. Vamos supor que a pessoa que está atrás de Kiara seja mesmo esse Waru, mas o que era aquela coisa que nos atacou depois?! — Kuwabara se voltou para Koenma — Aquilo sim era preocupante!

— Infelizmente não conheço nada parecido com a descrição que me deram. Não tenho a mínima ideia do que era. Vocês tem certeza de que não se tratava apenas um youkai?

— Nem ferrando. Aquilo nem sequer parecia ser racional. Agia por puro instinto! — ele retrucou apavorado com a lembrança.

— Muitos youkais agem dessa forma — o líder espiritual argumentou dando de ombros — Nem todos são racionais.

— Não Koenma, você não tá entendendo! — Kazuma se levantou, já perdendo a paciência — Aquilo era muito diferente. Ele mataria os próprios companheiros se pudesse. Não era instinto de sobrevivência, mas sim de assassinato!

— Fique calmo, Kuwabara. Prometo que tentarei descobrir algo sobre isso, mas até lá, tente não se desesperar tanto. Por hora já lhes contei tudo o que eu sabia.

— E o que faremos agora? Como saberemos se o inimigo é mesmo Waru? — perguntei ao líder espiritual.

— Temos que continuar investigando, tanto aqui no Ningenkai, quanto no Makai. Fiquem atentos a tudo que pareça suspeito. Precisamos encontrá-los antes que encontrem Kiara. Se estamos enfrentando Waru, em hipótese alguma não podemos deixá-lo atingir os seus objetivos. Anjos decaídos são muito poderosos e perigosos. Principalmente esse.

— Escuta Koenma, e os Deuses? Não deveriam estar de olho no que está acontecendo? Se por algum motivo esse cara escapou da prisão, por que não vieram prendê-lo?

— Não sabemos se Waru realmente está livre. Lembre-se de que apenas estamos supondo tudo isso, Kuwabara.

— Mesmo assim! Seja Waru ou qualquer outro, o desgraçado está causando problemas, não é? Por que não fazem nada a respeito disso?

— Como eu disse, eles entraram em um acordo para não interferirem nos acontecimentos do nosso planeta. Para isso que criaram o Reikai, para que nós ficássemos no comando, resolvendo quaisquer problemas que surgissem.

— Tá, mas isso é diferente. Uma coisa é nós resolvermos os nossos próprios problemas, e a outra é resolvermos algo que é de responsabilidade deles! Se tudo isso está acontecendo, é por culpa deles!

— Deixa de conversa fiada, Kuwabara! — o interrompi — Se os Deuses não querem fazer nada, nós damos um jeito. Seja lá quem for o nosso adversário, a gente vai descobrir e acabar com ele de uma vez por todas!

— Muita calma, Yusuke. Já disse que eles são bem poderosos, provavelmente num nível que vocês desconhecem e...

Sentindo o meu corpo inteiro formigar, ignorei Koenma por completo, fingindo que o escutava. Naquele momento, tudo o que eu menos precisava era de um sermão. Discretamente desviei o foco para Botan, que, imersa em seu próprio mundo, parecia estar falando sozinha, enquanto consultava a agenda do mundo espiritual que carregava consigo. Aguardaria a melhor oportunidade para abordá-la.

— Não se preocupem, eu não vou fugir daqui — a voz de Kiara me despertou do estupor. Ao me voltar para ela, confuso, me dei conta de que a garota respondia a algum questionamento de Kurama e Koenma — Antes, quando trabalhava pra Yamazaki, tinha a pista de Ryou, mas agora é diferente. Eu nem tenho ideia de onde devo ir. Além disso, preciso me recuperar. Eu estou esgotada.

Convencido de que Kiara dizia a verdade, e que ficaria segura no templo de Genkai, Koenma encerrou a reunião, dispersando-nos em seguida com o intuito de ir voltar para o Reikai. No entanto, deteve-se quando, de repente, a garota foi diretamente até ele, conversar em particular. Aproveitando a deixa, enquanto todos estavam ocupados, esperei Botan se aproximar de mim para, repentinamente, afastá-la para longe dali, empurrando-a bruscamente em direção ao cômodo ao lado.

— Ai, Yusuke! Qual o seu problema? Me machucou!

Ressentida, ela massageava o pulso torcido sem desviar os olhos de mim.

— Desculpa Botan. É que precisava falar com você.

— O que aconteceu?

— Quando a Kiara te perguntou o que tinha acontecido com o Koenma...— no mesmo instante ela empalideceu, compreendendo aonde aquela conversa iria chegar —...percebi que você desviou o assunto (4). O que não está querendo nos contar?

— Nada...— ela se afastou, olhando para o chão numa tentativa falha de me evitar.

— Não minta, Botan. Eu nunca tinha visto ele tão calado e apático. Ele não é desse jeito. E por que as mãos dele estão enfaixadas?! O que está acontecendo?

Botan olhou para trás a procura do líder espiritual, vislumbrando-o numa conversa agitada com Kiara. Somente ao confirmar que ele não podia nos ouvir, ela enfim decidiu responder.

— Ai Yusuke... — derramando-se em lágrimas, se apoiou na parede para não cair.

— O quê?!

— Eu não sei o que dizer. Ultimamente o senhor Koenma anda muito misterioso e reservado. Eu nem sei porque ele tá machucado desse jeito! Ele apareceu ferido sem mais nem menos e só tem piorado desde a viagem de vocês em busca da Kiara. Toda vez que eu pergunto ele simplesmente desvia do assunto. A única coisa que eu sei é que... — ela olhou para trás mais uma vez, com o intuito de garantir que ninguém a ouviria.

— O quê? Fala logo, Botan! — a sacudi pelos ombros, impaciente demais pra aguentar todo aquele suspense.

— Querem tirar o senhor Koenma do comando do Mundo Espiritual — ela sussurrou.

— Como assim?!

— Se lembra porque o senhor Koenma não acompanhou vocês até Kurushimi? Ele havia sido convocado pra uma reunião no Reikai — assenti em resposta — Os boatos que correm por lá são de que o Esquadrão Especial de Defesa do Mundo Espiritual teria pressionado o senhor Koenma para que ele reerguesse a barreira entre o Makai e o Ningenkai, alegando que isso resolveria os ataques aos seres humanos. Ao que parece, o senhor Koenma recusou, e disse que isso era só jogar a sujeira pra debaixo do tapete, mas ninguém deu ouvidos.

Botan crispou os lábios e voltou a procurar pelo líder espiritual, temendo que ele fosse nos encontrar a qualquer instante.

— Mas Botan, o Koenma tá certo. Fechar a barreira agora seria como aceitar que não existe relação amigável entre humanos e demônios e isso não resolveria nada, muito pelo contrário. O problema é muito maior! Youkais estão atacando humanos, pois estão atrás da Kiara a mando de alguém. Somente por isso!

— Eu sei, Yusuke! Eu sei! — ela emitiu um grunhido esganiçado, enquanto apertava os punhos apreensiva — O problema é que ninguém no Reikai está dando crédio pro senhor Koenma. Desde que o pai dele saiu do cargo as coisas pioraram consideravelmente e agora os humanos estão sofrendo uma série de ataques, e ninguém consegue encontrar o culpado! O senhor Koenma perdeu apoio no Reikai e quase ninguém mais acredita que ele seja capaz de ficar no comando do Mundo Espiritual. Ele tenta não aparentar, mas está muito abalado. Temos que ajudá-lo Yusuke.

Novamente Botan se encostou no batente da porta e, em seguida, colocou as mãos no rosto para abafar os soluços proveniente de seu choro.

— Fica calma, Botan. Vai dar tudo certo.

— Não sei não. Eu tenho muito medo. Sabe o que vai acontecer se outra pessoa assumir o comando do Reikai?

Pensativo, apenas balancei a cabeça positivamente, e Botan então compreendeu que não havia mais nada para ser dito. Caso outra pessoa assumisse o comando do Mundo Espiritual, os tempos sombrios de embate contra os youkais retornariam.

E essa seria apenas mais uma guerra para nos preocuparmos.


(1) e (2) - Energia da Luz celestial (em português), dominada por Sensui. No mangá, ele diz que antigamente os anjos é que dominavam a Seikouki.

(3) Fato explorado no primeiro OVA de Yu Yu Hakusho. Quem não assistiu ainda, pode conferir no YouTube.

(4) capitulo anterior.


E aí? Gostaram?

Vocês provavelmente já ouviram dizer por aí que a justiça é cega, certo? Pois bem, foi daí mesmo que tirei a inspiração para colocar os anjos da fic de olhos vendados, representando a imparcialidade deles xD

Enfim, montar esse capítulo foi algo bem complexo, pois tive que rever muitas informações do universo de Yu Yu Hakusho, complementando direitinho com a mitologia que eu estava criando. Aliás, eu fui influenciada por muitos elementos de diversos lugares diferentes, até mesmo da mitologia grega. A Deusa da sabedoria, por exemplo, por mais que eu tentasse, não conseguia me desvincular da imagem de Atena hehe.

Espero que tenham gostado! Até o próximo!