— Tem certeza que não precisa de mais nada, senhor Koenma?

— Tenho. Pode ir embora, Botan. Você precisa descansar.

O líder espiritual evitava encará-la diretamente, enquanto folheava um documento qualquer. Apreensiva, Botan levou as mãos ao peito sabendo que ele mentia. No entanto, ela não tinha ideia de como fazê-lo dizer a verdade. Chateada pela situação, por vezes discutia com outros funcionários do Reikai que insistiam em falar crucificá-lo pelas costas.

"Vocês estão enganados! O senhor Koenma está fazendo tudo o que pode!", ela dizia a eles, magoada pela forma como desdenhavam e duvidavam da competência de seu chefe. Ela sabia, porém, que aquelas discussões não resolveriam nada. Se quisesse realmente ajudá-lo, precisaria muito mais do que isso. Precisaria descobrir o que Koenma estava escondendo.

Evitando gerar suspeitas, a contragosto, Botan então se despediu do líder espiritual, deixando-o completamente a sós em sua sala.

Já era muito tarde, e àquela hora quase todos os trabalhadores do Mundo Espiritual já haviam ido embora, com exceção dos vigias noturnos, posicionados estrategicamente em cada parte daquele palácio. Ultimamente todos estavam trabalhando arduamente a fim de resolver as inúmeras pendências que pareciam não ter fim. Como se não bastasse a lista habitual de afazeres, os ataques aos seres humanos continuavam acontecendo, alvoroçando a todos no Reikai. Tal fato mobilizou inúmeras reuniões para arquitetar as buscas pelos responsáveis, no entanto, mesmo depois de meses, o criminoso por trás de tudo aquilo ainda não havia sido capturado.

O Mundo Espiritual definitivamente já não era mais o mesmo desde que o Rei Enma foi deposto do cargo. Uma série de incertezas fazia com que muitos trabalhadores desconfiassem da capacidade de Koenma em dar conta de todas as responsabilidades de seu pai. Desconfiança essa que começava a assombrar até mesmo a mente do próprio líder espiritual. A falta de credibilidade a si próprio o assustava, mas era inevitável tendo em vista os últimos acontecimentos.

Debruçado sobre a mesa de seu escritório, o rosto de Koenma estava encoberto pela papelada que havia se acumulado sobre o móvel. Mal tinha forças para se levantar, mas lentamente ergueu a coluna ao exibir o semblante cansado. Olhou para as suas mãos enfaixadas e decidiu remover as ataduras, examinando os ferimentos que ainda não haviam cicatrizado.

Koenma não queria fazer aquilo de novo, mas sabia que não tinha outra alternativa a não ser tentar mais uma vez.

Apressado e ansioso, ele saiu de sua sala. Sentindo o peso de todo o fardo que carregava em suas costas, com dificuldade subiu as extensas escadarias que davam acesso a ala leste do edifício. Após perambular os corredores vazios daquele setor, chegou em frente a um enorme portão de prata, elegantemente decorado com inúmeros detalhes em ouro. Cansado, Koenma inspirou fundo e adentrou ao local sem nem ao menos se dar o trabalho de acender a luz do cômodo. Analisou então o gigante e ovalado portal brilhante ali presente: a entrada para o Mundo dos Deuses. Com excessão das almas dos mortos que haviam sido julgadas e enviadas ao chamado Paraíso, somente um Deus ou alguma outra criatura dita celestial poderia fazer a travessia por aquela passagem, o que, para a infelicidade do líder espiritual, não era o seu caso.

Era verdade que no passado o Rei Enma havia sido escolhido pelos próprios Deuses para tomar conta do Reikai, o que o tornava uma espécie de divindade, porém isso não era o suficiente para permiti-lo entrar no Mundo dos Deuses. Na realidade, ninguém no Reikai tinha acesso àquele local. Somente os próprios moradores do Mundo dos Deuses poderiam transitar livremente de um lado para o outro. Todavia, o seu pai lhe contou que aqueles poderosos seres divinos haviam lhe garantido que a comunicação entre eles seria possível, caso fosse realmente necessária. Para isso, era preciso que uma autoridade do Reikai simplesmente solicitasse ajuda em frente ao portal. O Rei Emma havia explicado ao seu filho que, por diversas vezes, o fez, obtendo respostas quase que imediatas. Mas Koenma parecia não ter a mesma sorte.

O líder espiritual vinha implorando por ajuda há tempos, mas ninguém aparecia para atender o seu pedido. Era como se os Deuses também se recusassem em reconhecê-lo como comandante do Reikai. Mesmo assim, a sua persistência falava mais alto e, quase todos os dias ele tentava uma comunicação, ainda que já soubesse que aquilo seria em vão.

— Aqui é Enma Dai-Oh Junior, o líder do Reikai! Se alguém estiver me ouvindo, por favor, apareça!

Como esperado, ele não obteve uma resposta. A sala permaneceu imersa na escuridão e, irritado, Koenma fechou os punhos.

— Eu preciso de ajuda! Algo sério está pra acontecer nesse mundo!

Mais uma vez, ele ficou sem resposta, sentindo-se um completo palhaço.

Enfurecido, Koenma não entendia o porquê os Deuses não apareciam. Sem hesitar, aproximou-se então do portal, perto o suficiente para ouvir o baixo zumbido que dele era emitido.

— Eu disse que preciso de ajuda!

Irritado, com o intuito de tentar atravessá-lo, Koenma encostou as duas mãos na passagem, provocando-lhe uma reação elétrica instantânea que fez com que ele fosse arremessado para longe ali. Ao se chocar de costas com a parede, caiu no chão de joelhos. Tentando se recompor, encarou as suas mãos trêmulas, que devido a descarga elétrica, agora sangravam incessantemente em carne viva. Os antigos cortes voltaram a se abrir e novas feridas haviam se formado. Koenma xingou a si mesmo, pensando que precisaria reforçar os próximos curativos.

Levantando-se com dificuldades, o líder espiritual decidiu não se dar por vencido e tentou atravessar o portal mais algumas vezes, porém, acabou sendo repelido em todas as tentativas. Somente quando todo o seu corpo tremeu, fraco e moribundo, desistiu por completo, cuspindo coágulos no piso. Prestes a enlouquecer, Koenma desabou no chão empoçado pelo seu próprio sangue, convicto de que era um verdadeiro fracasso. Chegou até a desejar não ter descoberto os crimes que fizeram com que Enma Dai-Oh fosse expulso do Reikai. Se não fosse por isso pelo menos agora ele não estaria enfrentando tudo aquilo sozinho. No verdade, ele sentia falta de ter a figura paterna o aconselhando. Havia falhado não somente como um líder, mas também como filho. Por que havia deixado que levassem o seu pai para a prisão?

Completamente envolvido pelos seus pensamentos mórbidos, Koenma levou um susto quando, de repente, o cômodo se iluminou. Erguendo o pescoço, sentiu um forte clarão lhe queimar as retinas, o cegando momentaneamente. Instintivamente colocou as mãos na frente dos olhos e, forçando a vista, vislumbrou alguém saindo do portal. Ignorando as dores de seu corpo, num único salto se colocou de pé e, em estado catatônico, analisou o visitante. A aparência humanoide não revelava muito sobre a sua identidade, mas a venda em seus olhos denunciava com que tipo de criatura ele estaria lidando.

— Você é um...anjo? — ele perguntou boquiaberto.

— Sim. O meu nome é Tenshi.

A confirmação o deixou eufórico. Finalmente alguém havia atendido o seu chamado. Finalmente ele teria respostas! O líder espiritual estava tão agitado que nem ao menos sabia como iniciar aquela conversa. Como deveria tratá-lo? O que deveria perguntar primeiro? Eram tantas dúvidas que Koenma sentia-se prestes a ter um colapso nervoso. Assim, sem pensar direito, perguntou a primeira coisa que lhe veio a cabeça.

— Eu estive tentando contactar vocês por tanto tempo. Por que não me retornavam?

— Sinto muito, mas não estou autorizado a responder suas perguntas.

A resposta veio seca e curta. Como se tivesse tomado um banho de água fria, Koenma então recuou confuso, indignado com o que acabara de ouvir.

— Não está autorizado? Como assim?

— As ordens que recebi foram claras. Não estou aqui para responder os seus questionamentos.

— Eu não entendo. Pra que está aqui, então? Se veio atender o meu chamado, o mínimo que deveria fazer é responder minhas perguntas!

— Está enganado. O meu mestre, Kenzo, não me mandou aqui para atender o seu chamado.

— Como é que é?!

— Apenas vim coletar informações. Suponho que você, como líder do Reikai possa me fornecer um relatório de todos os últimos acontecimentos envolvendo o Makai.

— Eu...eu...o quê?!

— Quero saber se você está a par de algum problema fora do comum no Makai ou no Ningenkai.

Koenma permaneceu boquiaberto, enquanto sentia o ódio subir-lhe à cabeça. Por dentro, um vazio inexplicável violava todo o seu ser. Indignado pela forma como a situação havia se invertido, o líder espiritual estava perdendo completamente a pouca sanidade que ainda lhe restava, deixando de lado todo o respeito que pretendia demonstrar por Tenshi.

— Mas era exatamente pra isso que eu estava chamando vocês! Justamente pelas coisas que estão acontecendo!

— Muito bem. Então me diga tudo que sabe.

— Espera aí...me diz você o porquê precisam saber disso! O que está acontecendo no Mundo dos Deuses?

— Com todo o respeito, Enma Dai-oh Junior, mas isso é um assunto que diz respeito apenas ao Mundo dos Deuses.

— Como pode dizer isso? Alguma coisa muito grave está acontecendo e não envolve só o Mundo dos Deuses! O Ningenkai, o Makai e até o Reikai estão no meio disso! Então como você acha que eu posso ficar sem nenhuma explicação?! Acha que pode vir aqui coletar informações e depois cair fora como se nada tivesse acontecido? Eu exijo saber o que está acontecendo!

— Eu recebo apenas ordens superiores, vinda diretamente dos Deuses. Não posso obedecê-lo.

— Você não está entendendo! O que eu tenho pra contar é muito grave. Pode até resultar numa guerra!

— Você é que não está entendendo, Enma Dai-oh Junior. A guerra já começou.

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KURAMA POV

— Não acredito! Como você conseguiu salvá-lo? — Impressionada, Maya examinou o bonsai que enfeitava a mesa de recepção do escritório — Achei que dessa vez ele não ia sobreviver.

— Você colocou água demais. Precisa dosar corretamente as medidas, senão pode sobrecarregar as raizes e desequilibrar a concentração dos nutrientes que está dando a ele.

— Caramba, Shuuichi. Já te disse que você escolheu a profissão errada. Deveria ser botânico!

— Não. Isso é só um hobby.

— Bom, mas você podia me ensinar um pouco do que você sabe. Assim, pelo menos eu não vou correr o risco de assassinar o coitado toda vez que for cuidar dele!

— Na verdade, é bem simples. Mas acho que posso te ensinar o básico — respondi, mesmo sabendo que aquilo não passava de uma desculpa para ficarmos mais tempo juntos.

— Sério?! — ela abriu um sorriso radiante — Que tal hoje? Você me ensina de tarde e depois podemos ver um filme. Faz uns dias que não saímos pra nos divertir.

O quê de chateação em seu olhar pedinte era evidente e, sabendo que estava certa, deixei transparecer a culpa em minha expressão. Desde que Koenma havia nos reunido para ajudá-lo a encontrar Kiara, Maya ficou em segundo plano. Por uma coincidência, nossos caminhos voltaram se cruzar quando o meu padrasto a contratou como secretaria da empresa. Desde então, nos aproximamos novamente, sem ela se lembrar de que um dia já havíamos sido amigos. Com a memória alterada, Maya realmente acreditava que havia me conhecido somente há alguns meses atrás, e não demorou para que novamente revelasse estar apaixonada por mim.

Aparentemente algumas coisas simplesmente não podiam ser alteradas, e eu desisti de lutar contra o meu próprio destino.

— Combinado — respondi por fim, iluminando ainda mais o seu rosto.

— Podemos assistir aquele filme novo sobre alienígenas que está em cartaz! Você viu? Dizem que é baseado em fatos reais! — ela respondeu animada.

— Isso é a sua cara, Maya.

Ela hesitou, crispando os lábios sem saber se aquilo havia sido uma ofensa.

— Também podemos assistir outra coisa, se você preferir.

— Não. Alienígenas está perfeito. Eu gosto dessa ideia, embora a companhia seja mais atrativa do que o filme em si.

O seu rosto corou forte, fazendo-a aparentar ser mais jovem do que realmente era. Ao checar se não havia ninguém por perto, Maya então se aproximou, envolvendo-me pelo pescoço com os braços, ao mesmo tempo em que se colocava na ponta dos pés. Porém, quando o celular em meu bolso ressoou estridente, ela se afastou assustada, e, desapontada por não conseguir atingir o seu objetivo, me observou atender o chamado de Yusuke.

— Oi Kurama! Foi mal te incomodar assim logo cedo, mas é que eu preciso falar com você — sua voz soou um tanto cautelosa.

— Não tem problema, mas está tudo bem? — perguntei, afastando-me ainda mais de Maya com o intuito de garantir que ela não nos escutasse — Aconteceu alguma coisa com a Kiara?

— Não. Com ela está tudo bem, mas...— ele hesitou —...você está muito ocupado?

— Acabei de chegar no trabalho. Estou fingindo ter uma vida normal — sussurrei — Por quê?

— Koenma quer falar com você. Será que consegue me encontrar para irmos ao Reikai?

Do outro lado da linha, ouvi o que parecia ser um soluçar, acompanhado de um baixo choramingo.

— Acho que sim — relanceei Maya, que continuava a me observar com curiosidade — Mas o que aconteceu? É algo grave?

— Pra ser sincero, não sei dizer. Botan está aqui comigo. Ela veio me avisar que Koenma está hospitalizado, ou algo do tipo.

— O quê?! O que aconteceu com ele?

— Ainda não sei. Mas parece que ele quer nos ver. Só você e eu. Como Kuwabara está no templo da Genkai com Kiara e Yukina, ele pediu pra não chamá-lo.

— Ok. Estarei aí em uns 15 minutos.

Me livrar do compromisso no trabalho havia sido relativamente fácil. Ao contar a todos que um amigo tinha sofrido um grave acidente, consegui a permissão para ir embora com o intuito de ajudá-lo. Do contrário, reagendar o compromisso com Maya não foi nada agradável. Sabia que a havia deixado decepcionada e, para ser sincero comigo mesmo, também não estava contente. Viver aquela vida dupla estava se tornando algo inviável, me fazendo questionar a decisão de tentar retomar a antiga relação que nós dois um dia possuímos. O risco de envolvê-la em um eventual problema não valia a pena. Se algo acontecesse a Maya, eu jamais me perdoaria.

Após me encontrar com Yusuke e Botan, rapidamente seguimos até o Mundo Espiritual. E, apesar da guia espiritual ter nos contado em poucas palavras o que havia acontecido com Koenma, preferimos poupá-la de tantas perguntas, uma vez que se encontrava muito abalada e sem condições de dar grandes explicações.

Koenma de fato estava hospitalizado. Quando chegamos, deitado sobre uma maca, ele estava sendo medicado. Imobilizado por um suporte médico, protegia uma costela fraturada, e inúmeras ataduras lhe cobriam as mãos, subindo pelos braços que, aparentemente, estavam em carne viva. Ao nos aproximarmos, ele não esboçou reação alguma. Sua expressão era impassível e indecifrável.

— Meu Deus, Koenma. Você tá péssimo — Yusuke disse espantado — Nunca imaginei que você sairia no mano a mano com alguém. Logo você, que é tão covarde. Mas pelo visto levou a pior, né?

— Eu não briguei com ninguém.

— E então? Não vai me dizer que caiu da escada? — ele desenhou tentando aliviar a tensão.

Irritado, Koenma bufou ao revirar os olhos.

— Preciso falar a sério com vocês. Botan, pare de chorar. Eu já disse que estou bem e ainda hoje vou sair daqui.

— D-desculpe — ela soluçou, limpando o rosto nas mangas de seu kimono.

— O que aconteceu? Ou melhor, o que está acontecendo com você? — perguntei — Se ninguém o feriu, então como ficou assim?

— Há algum tempo venho tentando contactar os Deuses, mas o portal de acesso pro mundo deles não permite a minha passagem. Na verdade, a de ninguém, exceto deles próprios. Fiquei irritado por não atenderem os meus chamados e não tive outra alternativa a não ser tentar atravessá-lo. Como podem ver, não consegui. O portal libera uma descarga elétrica muito potente e o resultado foi esse — ele gesticulou indicando a si mesmo — Antes eu parava na primeira tentativa, mas ontem...bom, digamos que perdi a conta.

— Em outras palavras, você surtou — constatou Yusuke.

— Sim — ele admitiu — Mas ontem eu obtive uma resposta.

— Um dos Deuses te respondeu? Qual?!

— Não foi um dos Deuses, mas sim um de seus mensageiros. Um anjo, como costumamos dizer. O seu nome é Tenshi, subordinado de Kenzo. O problema é que ele não veio atender o meu chamado, mas sim me cobrar um relatório.

— Como assim? Que tipo de relatório? — Yusuke questionou.

— Ele disse que o Mundo dos Deuses está um verdadeiro caos e queriam saber como está a nossa situação. Na realidade, eles já sabiam que algo está acontecendo por aqui, mas não vieram até nós, porque também estão ocupados no seu próprio mundo.

— Ocupados como? O que pode ser assim tão importante pra fazer com que eles te ignorassem por todo esse tempo?

— Eles estão no meio de uma guerra. Guerreando entre si novamente.

— Mas por qual motivo dessa vez? Pelo que você nos falou, apesar de sempre ter existido uma rixa entre Kenzo e Raikou, eles viviam em paz, ou não? — perguntei.

— Pois é. Também não sei o que aconteceu. O tal do Tenshi se recusou a me contar os detalhes. Disse que não estava autorizado a me dizer — Koenma esboçou uma careta de nojo — E já foi difícil fazer com que ele me explicasse o porquê Kenzo demorou tanto pra mandá-lo até mim. Mas ficou claro que o embate entre eles não foi retomado de ontem pra hoje. Parece que essa rivalidade voltou à tona já tem alguns anos. O fato é que eu não tive outra opção a não ser falar o que sabia sobre o massacre do clã de Kiara e tudo o que está acontecendo por aqui.

— E o que ele disse?

— Achou bem estranho, pra falar a verdade. Falei das nossas suspeitas sobre Waru possivelmente estar por trás de tudo, mas ele não disse nada. Só que eu não chamei vocês aqui só pra contar que o cara ficou fazendo corpo mole pra cima de mim.

— E então? — indaguei.

— Ele disse algo que me deixou muito preocupado. Ele ficou bem desconfiado quando eu contei sobre aqueles youkais estarem atrás de Kiara. Ele disse que... — pensativo, Koenma hesitou, deixando que a sua conclusão se perdesse em qualquer lugar dentro de sua própria mente.

— Desembucha! — Yusuke protestou.

— Ele disse pra tomarmos cuidado com ela. Com Kiara. Ele me disse que ela pode não ser o que parece. Eu não entendi bem o que ele quis dizer, e ele também não quis me explicar mais nada. A interpretação ficou por minha conta — ele deu de ombros — Depois, Tenshi me garantiu que faria o possível para se manter em contato comigo, caso Kenzo o autorizasse. Ele foi embora, mas prometeu retornar assim que possível. Quando Botan me encontrou caído em frente ao portal, ele já não estava mais lá, e eu estava desmaiado devido aos ferimentos.

Um silêncio descomunal pairou entre nós, fazendo com que a respiração irregular e melancólica da guia sobressaísse no ambiente.

— Agora entendi o porque pediu que viéssemos só nós dois. Não queria que Kiara soubesse disso.

— Exato. Por isso achei melhor nem falar com o Kuwabara. Ele é verdadeiro demais pra conseguir segurar a própria língua, e se o chamássemos, acabaria falando tudo. O fato é que Tenshi tem razão.

— Ah...por favor, Koenma! Você não pode estar falando sério. Esse cara sabe menos do que a gente. Por que você daria ouvidos a ele? Ele nem conhece a Kiara.

— Porque ele tem razão! — o líder espiritual repetiu, elevando o tom de voz — Vocês mesmos disseram que Asuka afirmou que Kiara os ajudaria. Se ela disse isso, é porque sabia de algo que não sabemos. Temos que ser cautelosos, porque isso abre um leque de possibilidades. É possível que Kiara esteja até mesmo escondendo algo! Pensem bem! Tenshi pode não conhecê-la, mas sabe muito mais desse mundo do que qualquer um de nós.

— Senhor Koenma! — Botan, que até então permanecia em silêncio, exclamou ao se aproximar furiosa — Como pode dizer isso?! É o cúmulo que desconfie dela depois de tudo que ela passou! Ela perdeu a família inteira! Você viu. Você teve que lidar com a morte deles aqui no Reikai!

— Botan está certa, me recuso a acreditar que você esteja falando sério. Perdeu completamente o juízo, Koenma? — furioso, Yusuke a apoiou.

— Não perdi. A verdade é que a conhecemos há pouco tempo, e ela pode não estar sendo totalmente transparente conosco. Não estou dizendo que ela é nossa inimiga, mas pode estar ocultando algo. Mesmo que não seja por maldade.

Sem acreditar no que ouviam, Botan e Yusuke o encaravam visivelmente decepcionados.

— Não me olhem desse jeito. Ela também não confia em nós.

— Mas é diferente. Na situação dela eu também não confiaria — Yusuke retrucou — Além do mais, ela está mudando e já tem se mostrado muito mais amigável. Agora você pretende estragar tudo só porque decidiu dar ouvidos a um cara que acabou de conhecer? Francamente...é estupidez demais! Todos esses choques que você tomou, certamente afetaram o seu cérebro!

— No fundo vocês sabem que estou certo — Koenma respondeu.

— Não, você está paranóico. Isso é loucura! Não é, Kurama?

Com a expectativa de que eu concordasse com eles, Yusuke e Botan se voltaram para mim ao mesmo tempo, lançando-me um olhar ameaçador, para o caso de a resposta não ser a esperada.

— Sim e não. Eu entendo o lado do Koenma, mas também não acredito que Kiara esteja escondendo algo. Interpreto o que Asuka disse como ela ser obrigada a ajudá-los, contra a própria vontade. Não se esqueçam de que capturaram o irmão dela. Esse é o trunfo deles, e com certeza eles vão usá-lo contra todos nós.

— Então temos duas hipóteses e ambas podem estar certas. Você sabe disso, Kurama — Koenma respondeu.

— Sim, é verdade. Mas teremos que apostar em apenas uma, e eu já tenho a minha. Pra confirmar a sua, você teria que confrontar Kiara. É o que pretende fazer? Se estiver pensando nisso, esqueça. Só vai piorar as coisas.

— Não sou assim tão imprudente — ele respondeu — Mas pretendia que colocá-la a prova de alguma maneira. Testá-la sem que ela percebesse. Pra apostar em apenas uma hipótese, temos que eliminar as outras. Você também sabe disso.

— Não acredito no que estou ouvindo — revoltado, Yusuke rangeu os dentes — Ela não está escondendo nada! A troco de que faria isso?!

— Eu espero que vocês estejam certos, mas precisamos uma confirmação. Entendam de uma vez — Koenma respondeu em tom de súplica.

— Tudo bem. Eu concordo com Yusuke e Botan, mas se isso vai te deixar mais tranquilo, coloque-a prova, Koenma — eu disse por fim — O que tem em mente?

— Foi pra isso que chamei vocês, pra que pudéssemos pensar em algo.

— Nem vem. Não joga essa bomba pra mim. Sou completamente contra esse plano, seja lá qual for ele — revoltado, Yusuke fechou a cara recusando-se a ajudar — Você que se vire.

— Digo o mesmo — Botan concordou, nos dando as costas — Que absurdo.

Koenma inspirou fundo e se voltou em minha direção, esperançoso.

— Você tem noção de que não tem como nenhum de nós fazer o que você está pedindo sem que ela saiba, né? — perguntei.

— Pois é. Eu até tinha pensado em falar com Hiei pra usar o Jagan, mas não é uma boa ideia. Não tem como ele mexer nas memórias dela sem que ela perceba. Pra isso teríamos que primeiro dopá-la!

— Sem contar que ele também não concordaria em te ajudar — ponderei.

— Eu até conheço outras pessoas que poderiam fazer isso, mas novamente o problema é que ela saberia que estou desconfiado. Daria uma dor de cabeça...

— Bom, eu conheço alguém que pode ajudar. Alguém que consegue detectar uma mentira ou um segredo, sem que ninguém perceba.

— Quem? — animado, Koenma perguntou ao elevar o tronco em minha direção, sem nem ao menos se importar com os seus próprios ferimentos.

— Yomi.

Incrédulo, Yusuke arregalou os olhos, enquanto Botan se virava para mim boquiaberta. Koenma, por sua vez, recuou, desfazendo instantaneamente o sorriso em seu rosto.

— Tá falando sério? — Yusuke perguntou — Minha nossa, Kurama! O que aconteceu com a sua sensatez?

— Calma, Yusuke. Eu estava mesmo pensando que deveríamos conseguir aliados no Mundo dos Demônios. Se vamos travar uma grande batalha, precisamos estar preparados — retruquei — Youkais de grande influência no Makai podem nos ajudar a encontrar o irmão de Kiara e os seus sequestradores. Obviamente Mukuro e Yomi são extremamente valiosos e não podemos dispensá-los. Além de Enki e os antigos companheiros de Raizen. Yomi consegue fazer o que Koenma quer. Se levamos Kiara até ele, ele logo saberá se ela está nos dizendo toda a verdade ou não. Obviamente Yomi também não precisa saber que estará sendo usado pra testá-la.

— Você está certo sobre conseguirmos aliados, mas Yomi? Acho muito arriscado. Não se esqueça de que ele não gosta dos seres humanos — Koenma respondeu.

— É a única opção, Koenma. Na verdade, eu já pretendia recorrer aos reis de qualquer maneira. E como você está tão preocupado, pode aproveitar essa oportunidade pra sanar a sua dúvida. É pegar ou largar, porque também não pretendo te ajudar de outra forma. Estou com Yusuke e Botan. Não acredito que Tenshi esteja correto sobre Kiara.

Ele ponderou por alguns instantes, tomando a sua decisão em seguida.

— Se não tem outra alternativa, eu aceito. Mas precisamos tomar cuidado com o que faremos. Eu não confio em Yomi, nem um pouco. Se dependesse dele, a caça aos seres humanos seria liberada.

— Yomi pode ter suas particularidades, mas tenho certeza que ficará do nosso lado.

— Deixa eu ver se entendi. Vamos reunir todos os seres mais poderosos do Makai pra discutir o assunto? — Yusuke ironizou — Vai ser um desastre. Não imagino Mukuro e Yomi do mesmo lado. Todo mundo sabe que eles não se dão bem. E também duvido que os amigos do Raizen queiram se aliar a eles. Água e óleo não se misturam.

— Não custa tentar — respondi — Podemos fazer a reunião no reino de Raizen. Como você é o sucessor dele, pode se encarregar do convite. Até porque, de alguma forma, todos ali gostam de você, Yusuke. Tenho certeza que será capaz de convencê-los a te dar ouvidos.

— De fato — orgulhoso, ele deu de ombros — Não se pode lutar contra um carisma natural.

— Isso quer dizer que você aceita colaborar?

— Eu te conheço, Kurama. Você vai dar um jeito de reuni-los com ou sem a minha ajuda, não vai?

— Sim. Mas entendo perfeitamente se não quiser fazer parte disso. Não vou forçá-lo a nada.

— Você tá brincando?! — ele escancarou o sorriso, divertindo-se com a ideia — Mukuro e Yomi juntos? Não perco essa reunião por nada na vida! Não sei se o seu plano vai dar certo, mas tenho certeza que, no mínimo, isso vai ser muito interessante.