KIARA POV
Sentada na poltrona de um dos quartos no alto da torre do reino de Raizen, me remexia compulsivamente, observando pela janela as paisagens retorcidas do Makai, cujas planícies no horizonte se mesclavam com os tons de magenta avermelhado do céu. Não pude deixar de imaginar o que os outros komorebi me diriam se estivessem vivos. Esse lugar estava bem longe de ser igual ao que um dia imaginamos. Infelizmente, nenhum deles jamais saberia disso.
Eu estava com os nervos à flor da pele. Os batimentos cardíacos acelerados e a respiração sutilmente irregular. Poderia facilmente ter um colapso a qualquer momento. Desde que Kurama sugeriu me trazer pra cá, tudo virou de cabeça pra baixo. Manter a compostura estava se tornando uma tarefa cada vez mais complicada, mas o que podia fazer? Visitar outro mundo jamais esteve nos meus planos, ainda mais tratando-se do Mundo dos Demônios. Mesmo assim, tentei reprimir os meus receios e, torcendo pra que aquilo funcionasse como o planejado, aceitei a proposta.
Ansiosa, em algum momento, pensei que conseguiria segurar as rédeas da situação, porém, desde a nossa chegada, um misto de sensações bizarras começaram a se debater dentro de mim.
Primeiro veio o fascínio. Apesar da toxicidade da atmosfera local, ao chegarmos, senti a minha energia fluir com mais facilidade, como se o meu corpo reagisse positivamente a esse lugar. Não quis admitir, mas a sensação era ótima. Sem saber o real significado disso, fingi pra mim mesma que não havia importância. No fundo eu estava preocupada, mas, ao mesmo tempo, radiante.
Mas então veio o desespero. Eu estava com medo. Muito medo. Após passar a vida inteira enfrentando youkais, era impossível imaginar que tais demônios me tratassem como uma aliada. Pelo que fiquei sabendo, Yomi seria o pior de todos. Por ele, a caça aos humanos seria liberada. Demônios do tipo dele eram os que eu mais abominava. Eram os que eu tentava eliminar do planeta. Como eles reagirão quando souberem disso?
Meu estômago se revirou com as possibilidades.
Debruçada na janela, observei os convidados chegarem das mais variadas maneiras. Alguns vieram a pé, enquanto outros se utilizavam de excêntricos meios de transportes. De repente, me lembrei de Koenma. Considerando que Mukuro e Yomi eram rivais há séculos, ele acreditava que o encontro terminaria em um derramamento de sangue. Porém, a movimentação na entrada da torre já tinha acabado há uma hora, indicando que todos já haviam chegado. O fato de eu não ter escutado nenhuma briga até agora, significava que as regras de Enki realmente eram respeitadas por todos, como Kurama tinha garantido que seria.
Sobre o que todos estariam conversando? Será que Yusuke já teria lhes explicado o porquê foram chamados aqui?
Batidas na porta do quarto me sobressaltaram. Desajeitada, me levantei de onde estava e inspirei fundo antes de abri-la.
— Pronta? — Yusuke perguntou diretamente. Ao seu lado, Koenma parecia ansioso.
— Já estão todos aqui?
— Sem exceções. Yomi, Enki, Mukuro e todo o resto. Aliás, Mukuro trouxe a fortaleza inteira. Suponho que a tenha visto — ele apontou pra janela, referindo-se ao enorme inseto ambulante que há pouco havia bloqueado a minha visão.
— Eu vi. Bem discreta ela, né?
Yusuke franziu o cenho numa expressão endurecida, arregalando os olhos alarmado.
— Kiara... — sussurrou ao se aproximar, colocando o indicador nos lábios para gesticular em silêncio — Cuidado com o que diz por aqui. Youkais tem a audição muito superior a de humanos, especialmente esses youkais. Não vai querer provocá-los, né?
Prendi a respiração e empalideci, sentindo meu rosto gelar de nervoso. Recriminei a mim mesma pela piadinha idiota e, ao ver o espanto nas minhas feições, Yusuke gargalhou incapaz de segurar o riso.
— Deveria ver a sua cara, tá impagável! Pra quem bancava a durona, toda metida a assassina de youkais autossuficiente, você tá se mostrando bem medrosa. Eu sempre soube que o seu jeito casca-grossa era só fachada.
— Para de brincar com isso, idiota! Não tem nenhuma graça!
— É mesmo? Eu tô achando engraçado.
— Argh! Seu imbecil...
— Chega disso — ao perceber que me preparava para esbofetea-lo, Koenma se colocou entre nós antes que eu pudesse atingir o meu objetivo — Vamos logo com isso. Todos estão nos esperando. Se quiserem se matar, façam isso depois!
Ignorei o sorriso bobo de Yusuke, e saí apressada do quarto, para segui-los em silêncio. Ao chegarmos no corredor de acesso ao que seria a sala de estar, Koenma se virou em direção. Com a mão na maçaneta, ele ameaçava abrir a porta, mas, compenetrado em mim, seus olhos se estreitaram perscrutadores.
— Lembre-se, Kiara: tente cooperar e não seja tão rude com ninguém.
— Por que eu faria isso?
— E não é óbvio? Porque você é você. E nem adianta negar — ele se adiantou ao ver o esboço do protesto se formar em meu rosto — Já esqueceu de como se comportou com a gente no início? Precisa se controlar se quiser que isso dê certo.
— Aquela era outra situação, eu estava passando por muita coisa. Sei como devo agir agora.
Ele arqueou as sobrancelhas descrente, empurrando em seguida a porta pesada que nos separava de todos os youkais ali reunidos.
— Veremos.
A repentina luminosidade do cômodo me atingiu nos olhos com força, fazendo com que a minha visão se perdesse por alguns instantes. Nervosa, me preocupei em seguir o vulto de Yusuke, e rapidamente me sentei na primeira cadeira que identifiquei como vazia. Somente depois de estar perfeitamente acomodada, elevei o olhar aos demais ali presentes.
Os youkais, sentados ao redor de uma enorme mesa retangular, dividiam-se em grupos. Em uma extremidade, dois demônios semelhantes, apesar da visível diferença de idade, permaneciam em silêncio. Um deles, mantinha-se com os olhos sempre fechados, enquanto o mais jovem me examinava com uma certa veemência. Por detrás deles, em guarda, alguns subordinados exibiam uma carranca severa. Mais ao centro, um grupo de demônios falantes e joviais se divertiam sozinhos, alheios à tudo ao seu redor. Ao lado deles, da mesma forma, outro grupo composto por youkais mais velhos ignoravam a todos, imersos no seu próprio mundo. Pelas características que Yusuke havia me dado, rapidamente identifiquei Enki entre eles. Por fim, na outra extremidade, Hiei havia se colocado ao lado de uma mulher, cuja metade de seu rosto encontrava-se coberta. Ao menos tinha certeza de que aquela era Mukuro. Ao meu lado, Kurama, Kuwabara, Koenma e Yusuke se acomodaram, junto a Hokushin — o youkai-monge que nos recebeu quando chegamos aqui — e alguns de seus companheiros.
De repente, aquele lugar parecia pequeno demais para comportar tanta gente.
Disfarcei o nervosismo quando Yusuke falou pela primeira vez, chamando a atenção dos youkais naquela desordem generalizada. Todos se calaram e inúmeros olhares se voltaram em nossa direção. Imediatamente me esquivei de um contato direto com qualquer um deles.
— Eu não vou ficar aqui enrolando no assunto, até porque Hiei e Kurama já colocaram vocês à par da situação. Como já dissemos, os chamamos aqui porque alguns demônios estão quebrando as regras impostas por Enki. Eles estão atacando humanos inocentes e tentando capturar Kiara — Yusuke gesticulou em minha direção, fazendo meu rosto ferver — Quer se apresentar?
— Pode fazer essa parte — devolvi a responsabilidade sem muito pensar.
Estática, o assisti me apresentar para cada um dos demônios que estavam ali, desde Yomi e seu clone, até Enki, Mukuro e outros colegas, como Jin, cujo nome eu já havia ouvido falar em outra ocasião. Nervosa, me preocupei em memorizar os rostos mais importantes, sabendo que esqueceria a maioria dos nomes em questão de segundos. Em seguida, brevemente Kurama relatou a eles a minha história, contando-lhes a nossas suspeitas com relação a identidade de nosso adversário e as possíveis consequências disso para o planeta.
— Um inimigo dos Deuses aqui no Makai? Quem imaginaria? Isso explica tanta coisa — Enki constatou pensativo — Assim que percebi a revolta de diversos grupos de youkais em todo o Makai, avisei aos líderes das maiores metrópoles para que ficassem alertas a qualquer movimentação suspeita. Até ofereci recompensas para aqueles que soubessem de possíveis rebeliões e as reportassem para mim de imediato. Mas ninguém veio.
— A velha estratégia de reforço positivo — um outro desdenhou — Isso já não funciona há muito tempo, Enki. Você é muito ingênuo.
— É, foi mesmo ingenuidade minha, Souketsu. Mas afinal, quando foi que esses youkais deixaram de ser burros?
— De burros eles não tem nada. Não faz muito tempo que Kujou e eu soubemos que um grupo de demônios inferiores estavam criando passagens clandestinas para o Ningenkai, para que não precisassem se submeter ao controle da patrulha feito na passagem oficial — a mulher próxima a ele respondeu. Não me lembrava se seu nome era Narumi ou Natsumi — Mesmo sob tortura, relutaram em nos contar as suas verdadeiras intenções. Era como se houvesse algo que os impedisse de falar a verdade.
— Talvez estivessem sendo controlados? — Jin a respondeu — Tiyu e eu também encontramos uma galera meio enlouquecida. Um pessoal que antes era normal, ficou doido de repente. Até aconteceu com um amigo nosso. Não faz sentido, sabe? Era como se estivessem sem consciência. Alguém deve ter feito uma lavagem cerebral nesse povo todo. A gente tem que é dar um jeito de arrancar a verdade deles.
— Não seria assim tão fácil. Hiei já tem vasculhado a mente de muitos demônios e nem mesmo assim conseguiu informações úteis — Koenma rebateu — Justamente esse é o nosso problema. Até agora não conseguimos avançar na investigação, nem tampouco descobrir quem realmente está por trás disso. Tudo o que temos não passa de especulação. Por isso viemos pedir a ajuda.
— Então quer dizer que vocês do Reikai, mesmo sendo tão poderosos, não conseguiram resolver absolutamente nada até agora? Não são vocês que controlam tudo que acontece no planeta? Não se supõe que você saiba de tudo? — o chamado Souketsu ironizou em tom depreciativo, deixando transparecer os conflitos pendentes entre os demônios e o Mundo Espiritual.
Alguns risinhos de deboche reverberaram na sala, mostrando que a opinião era compartilhado por boa parte dos youkais ali presentes. Ao meu lado, Koenma endureceu como pedra.
— Não é assim que funciona o trabalho do Reikai. Sabemos muita coisa, mas não tudo, principalmente se tratando do Makai. Esse lugar é muito vasto.
— Mas vocês sabem o suficiente para nos punir pelo simples fato de sermos youkais, não é? Pelo menos sempre foi assim. O que aconteceu? Não está conseguindo acompanhar os passos de seu pai, Enma Daioh Junior? — outro demônio, cujo corpo reluzia metálico, rebateu.
— Não pretendo acompanhar os passos dele, é diferente. Ele era um criminoso, Shu. O que aconteceu no passado, ficou no passado. Entendo a desconfiança e vocês em mim, mas não tenho relação alguma com o que o meu pai fez um dia.
— Então, você simplesmente espera que te ajudemos depois de todos esses anos em que os demônios foram infernizados pelo Mundo Espiritual? Não nos faça rir!
— É mesmo muita prepotência — num tom agressivo, Souketsu voltou a dizer — Vocês do Reikai sempre acham que podem mandar nos outros. O que pretende fazer se não te ajudarmos? Vai nos prender? Vai fazer com que todos pensem que nós é que somos os vilões da história? É disso que vocês gostam, não é?
O ar pesava cada vez mais e, acuado, Koenma praticamente se encolhia no mesmo lugar, completamente menosprezado e diminuído. Uma gota de suor escorreu pelo seu pescoço.
— Entenderei se não quiserem colaborar. Não tenho intenção alguma de obrigá-los a isso.
— Já chega! — a esposa de Enki, Kokou, interrompeu a discussão. Mostrando-se imponente ao lado do companheiro, foi fácil de decorar o seu nome — Ele já disse que isso era coisa do pai dele. Todos aqui sabemos que as relações entre Makai, Ningenkai e Reikai estão mudando. O rompimento da barreira dimensional é prova disso. Se quiserem resolver questões inacabadas, é com Enma Daioh que devem falar, não com o panaca do filho dele!
Em silêncio, todos a encaravam sem ousar arriscar uma resposta. Já Kokou, firme em suas palavras, manteve a postura ereta, engrandecendo-se diante de nós de forma totalmente invejável.
— Sei que, pra alguns de vocês, se unir ao Reikai está fora de cogitação, mas garanto que Koenma é muito diferente de seu pai. Reconsiderem — Kurama decidiu se pronunciar — Ressalto que, se as nossas suspeitas estiverem corretas, cedo ou tarde todos vocês estarão envolvidos nessa batalha, independente da resposta que nos derem hoje. Cada vez mais youkais estarão se rebelando e não vai demorar pra que o Makai vire uma zona de guerra. Em seguida, o Reikai e o Ningenkai serão atingidos com o efeito secundário desse embate. E não preciso nem dizer o que irá acontecer se os Deuses intervirem. O caos e a confusão serão generalizados, e todos os lados serão atingidos. Apesar dos conflitos que temos uns com os outros, esse cenário não seria interessante pra ninguém. Nosso objetivo é estar um passo à frente disso. Se tudo der certo, é possível que consigamos impedir uma catástrofe.
— Eu não tenho muito o que pensar. Sei o que Raizen faria se estivesse aqui — Hokushin foi o primeiro a responder, olhando para os outros youkais-monge em busca de apoio — Estamos dentro.
— Também sabemos o que fazer — Enki disse ao lançar um olhar carinhoso para Kokou. Os seus amigos endossavam as suas palavras, meneando a cabeça em concordância — Contem conosco.
— Até mesmo vocês, Shu e Souketsu? — Koenma perguntou surpreso.
— Podemos deixar as pendências com o Reikai de lado, por enquanto — Shu respondeu — Não somos idiotas de ignorar um conflito dessa dimensão por puro orgulho. Sabemos separar as coisas. Mas não pense que isso muda a percepção que temos sobre o Mundo Espiritual. Sobre vocês.
— De maneira alguma — Koenma rebateu.
— Também podem contar com a gente — o amigo de Jin, que portava uma espada incomum e tinha os longos cabelos amarrados, disse.
— Muito bem. Yomi? Mukuro? — Kurama arriscou — Só faltam vocês.
Ansiosa pelo que diria enfim, me fixei em Yomi. Porém, Mukuro foi quem tomou a iniciativa, direta e decidida.
— Não tenho motivos para não colaborar. Aliás, o meu exército e eu já estamos fazendo as nossas próprias investigações. Posso dizer que até encontramos algo bem interessante. Mas preciso deixar algo claro, pois vejo que temos prioridades distintas — de repente, ela se virou para mim — Salvar o seu irmão é a sua prioridade?
— Sim — respondi sem titubear, embora tenha sido pega desprevenida.
— Mas não é a minha, nem de ninguém aqui. Salvar a vida de seu irmão não nos interessa nem um pouco.
Mordi o lábio, controlando o ímpeto de responder como não deveria. Ao meu lado, Yusuke decidiu se manifestar.
— Mas Mukuro, você não...
— Me deixe terminar — ela o interrompeu — Eu já compreendi que a situação vai além desta humana. O irmão dela não passa de uma isca a ser usada nas mãos do inimigo. Eles o descartarão assim que o garoto não lhes servir mais. É quase certo que é um caso perdido. Se participarei dessa aliança, será porque vejo potencial para impedir que os planos dos nossos adversários avancem. Esse é o interesse comum a todos aqui, não? Se sacrifícios tiverem que ser feitos no meio do caminho, não tem problema. Guerras são assim, afinal.
Prendi a respiração. Trêmula, não sabia exatamente o que responder, embora acreditasse que minha expressão de descontentamento era mais do que suficiente para que Mukuro soubesse como aquilo me desagradava. Fechei os olhos, tentando clarear as ideias para lhe dar uma resposta minimamente decente.
— Sacrifícios não estão nos meus planos. Eu ja sacrifiquei muitas coisas.
— Não foi só você, pode ter certeza. Além do mais, o que disse nem faz sentido. Sacrifícios nunca são planejados, eles simplesmente acontecem. Melhor se acostumar.
— É muito fácil falar, né?
Por debaixo da mesa, Koenma me atingiu com o pé, repreendendo a atitude. Em resposta, o encarei possessa. Ainda assim, tentei me controlar, voltando ao assunto com mais cautela.
— O que eu quero dizer é que é fácil resolvermos isso. Se o que você pretende é encontrar os youkais responsáveis por toda essa confusão, tudo bem. Porque quando você encontrá-los, automaticamente encontraremos o meu irmão também. Não precisa se preocupar em salvá-lo. Pode deixar que eu resolvo isso.
— Se você acha que conseguirá recuperá-lo com vida, não tentarei te convencer do contrário, embora, ao meu ver, isso não passe de uma triste ilusão.
Minha cabeça pulsava de tanta dor, o que fez com que eu desistisse de argumentar. Meus punhos, fechados com força, tremiam sobre minhas pernas, enquanto eu tentava confinar toda a raiva dentro de mim.
— E o que vocês encontraram, Mukuro? — Kurama perguntou, atento a esse detalhe.
Antes de responder, ela relanceou Hiei, que ignorava completamente aquela reunião como se nem ao menos estivesse ali.
— Contarei quando todos nós estivermos de acordo sobre a situação.
Automaticamente, olhamos para Yomi, sabendo que Mukuro se referia ao fato do youkai ainda não ter se manifestado. Pelo visto, apesar de tolerarem a presença um do outro, nunca de fato seriam parceiros. Compartilhar informações estava fora de cogitação.
— Acho tudo isso me muito estranho. Essa história. Antes de tomar a minha decisão, gostaria que ela me explicasse melhor alguns pontos que deixaram dúvidas — a sua voz, suave e monótona demais, me surpreendeu. Era bem diferente do que pensei que seria — Se importa?
Mesmo de olhos fechados, Yomi parecia capaz de me enxergar mais do que todos os outros ali presentes. Intimidada pelo seu jeito, meus batimentos se descompassaram. Meus polegares nervosos brincavam um com o outro por debaixo da mesa, enquanto sacudia a minha perna inquieta. Inspirei fundo, esperando que o ar inalado se convergisse em uma boa dose de coragem.
— O que quer saber?
— Por que estão atrás de você?
Ninguém merece! Se Kurama já tinha contado a todos o que sabíamos, pra que me perguntar isso agora?! Ou ele era burro, ou só estava fingindo que era. Obviamente descartei a primeira opção, sem entender quais eram as suas intenções ao tocar no assunto.
— Não. Isso eu não sei.
— Tem certeza?
Foi como se uma faca perfurasse o meu peito. Uma pontada aguda e abrasadora. Apesar de sua voz continuar no mesmo tom, a insistência soou um tanto desafiadora. A forma invasiva como ele me sondava, me fez perder completamente o chão. Suando frio, engoli em seco e o respondi com um simples balançar de cabeça.
— Me parece muito estranho que uma simples humana esteja causando tanto alvoroço, principalmente entre os youkais.
Ele estava certo, então permaneci calada diante daquela colocação. Em resposta, Yomi franziu o cenho, confuso.
— O que você tem de especial?
— Nada — dei de ombros.
— Isso obviamente não é verdade, senão não estariam atrás de você.
— A única particularidade que tenho em relação aos demais humanos é o fato de conseguir manipular as duas energias existentes — retruquei, omitindo o fato de não conseguir dominar o próprio reiki. Disso ele não precisava saber. Na verdade, nenhum deles precisava — Mas isso era algo comum entre todos os indivíduos do meu clã. Portanto, não me torna especial.
— Então não tem ideia do porquê estão atrás de você? Nem mesmo conhece nenhum desses youkais? Kurama disse que vocês eram caçadores. Humanos que matam demônios, não é isso? — assenti em silêncio, esperando receber uma repressão por aquilo, mas ela não veio — Sendo assim, poderiam estar atrás de você por simples uma vingança. Afinal, o seu povo deve ser odiado no Makai. Se for esse o caso, seria ridículo eu me envolver em algo tão estúpido.
Meus músculos travaram. Ele não estava certo, mas também não estava errado. Na realidade, a análise foi tão precisa e plausível que a lembrança da morte de minha mãe foi imediatamente evocada pela possibilidade. Não seria a primeira vez que nos atacariam por vingança, afinal. No entanto, eu tinha certeza que, dessa vez, não se tratava disso.
— Se fosse vingança, teriam me matado quando tiveram a chance. Koenma e Kurama já disseram que é algo maior.
— Como pode ter certeza?
— E não é óbvio? — com uma cotovelada nada sútil, Koenma chamou a minha atenção, tentando repreender a resposta rude. O amaldiçoei mentalmente, já cansada da forma como fiscalizava todas as minhas ações. A contragosto, endireitei a minha postura, tentando recuperar a pouca paciência que ainda me restava — Quer dizer...se fosse por vingança, eles ficariam satisfeitos com o extermínio do meu clã. Mas isso não aconteceu.
Ele ficou em silêncio, analisando a resposta. Tempo suficiente para Mukuro retomar a palavra.
— Poderíamos submetê-la a alguns exames — ela propôs a Yomi, indiferente à minha presença — O que você acha?
— De fato, uma ótima ideia — ele respondeu, sorrindo pelo canto dos lábios — Isso resolveria todo o problema.
— Perdão? — indaguei, achando ter escutado mal. A youkai se moveu em minha direção e, confusa, elevei o tom de voz — Exames?
— Sim. Se existe algo de especial em você, podemos tentar descobrir. Nossa tecnologia é muito mais avançada que a dos humanos e certamente conseguiremos extrair o máximo de informações que o seu corpo nos permitir. A estudaremos minuciosamente.
Boquiaberta, paralisei momentaneamente ao ver a simplicidade com que eles tratava aquele assunto. Como se a decisão não coubesse a mim. Recusei a oferta em seguida, muito mais ríspida do que deveria.
— Não sou um espécime raro que vocês podem usar como cobaia em seus experimentos, sabiam?!
Koenma me cutucou com um chute, mas dessa vez o ignorei, terminando por retribuir a investida. Indignado, ele gemeu baixo pela dor em sua canela, antes de se impor de forma explosiva.
— Qual é o seu problema, Kiara?! Eu não falei pra se comportar? Sabia que não ia conseguir!
— Meu problema?! Você por acaso ouviu o que eles disseram? Se acha que eu vou me submeter a isso, está muito enganado!
— Finalmente mostrou uma reação mais natural — Mukuro nos interrompeu, divertindo-se com a discussão que havia provocado — Pelas suas atitudes ensaiadas, achei que estivéssemos conversando com um robô. Com esse aí o tempo inteiro querendo te controlar...— ele relanceou Koenma — Se não quer ser um rato de laboratório, cujas ações são planejadas por todos a sua volta, não aja como um.
Após compreender as reais intenções daquela provocação, engoli em seco antes de encarar Koenma uma última vez. Ele rapidamente desviou o foco de mim, tão amargurado que chegou a dar pena. Já Mukuro e Yomi permaneciam impassíveis. Pelo visto, apesar de todas as diferenças, ambos ainda se permitiam a fazer um complô contra quem os irritasse. Estavam, na realidade, em perfeita sintonia.
— Pode deixar — a respondi por fim.
Ao menos aquilo havia tirado um peso de minhas costas. Pelo menos agora estava livre para agir como quisesse. Para ser eu mesma. Invadida pela momentânea sensação de liberdade, quase me esqueci da tensão deixada no ar. No entanto, aquela ilusão de felicidade rapidamente se deteriorou quando o filho de Yomi decidiu se manifestar, sem ao menos ter a sua opinião solicitada.
— Eu não consigo acreditar no que ouvi. Humanos usando youki? Isso é quase um insulto. Só pode ser uma piada de mau gosto.
Por detrás deles, os súditos de Yomi concordaram, debochando. Com raiva, fechei os punhos, deixando que as minhas unhas cravassem em minha própria pele com força.
— Mas é real — Yusuke rebateu — Eu mesmo vi. O clã dela não é comum. Estão num nível intermediário entre youkais e humanos.
Shura revirou os olhos.
— Que seja. Não é o mesmo que nós. Nunca será!
— Shura, isso não está em pauta. Suas colocações são dispensáveis nessa discussão — Yomi revidou, fazendo com que o próprio filho transformasse a sua expressão, torcendo os lábios irônico e enraivecido.
— Não são! Você sabe que ela está escondendo alguma coisa, então por que não damos um fim a esse teatro? Pra que continuar dar ouvidos a isso?!
Minha pressão subiu. Rangi os dentes sem saber se ele se referia a mim ou à situação em si. Alguns cochichos indistinguíveis chegaram aos meus ouvidos. Meu coração acelerava como se quisesse pular para fora do corpo, e senti o jorro de sangue subir à minha cabeça, fervendo de tanta raiva. Minhas bochechas esquentaram com a acusação, e captei uma rápida troca de olhares preocupados entre Koenma e Kurama. Muita informação de uma vez só.
— De fato, nisso você está correto, mas eu já ia chegar lá. Não precisava ser um intrometido sem educação — Yomi o repreendeu antes de mais uma vez se voltar a mim — Por que está tão nervosa menina?
— Não estou.
— Não minta.
— Eu não sei do que estão falando.
— Sabe sim. Há algo que está nos escondendo. Não me subestime. Já deveria saber que pode me enganar tão facilmente. Eu não gosto dessa tentativa de me fazer de idiota. Eu pareço idiota pra você?
Congelei. Pálida como um fantasma, tentava entender como soube que eu escondia algo. Sua mudança de humor me afetou mais do que poderia esperar, e não fui capaz de responder, embora, por dentro, minha consciência estivesse berrando comigo mesma.
— É muito ingenuidade — Shura voltou a dizer — Ou seria falta de inteligência? Ela nem sequer consegue perceber que você a está testando.
— Testando? — indaguei confusa e forcei uma pausa, relanceando Yusuke e Kuwabara em busca de ajuda. No entanto, ela não veio. Yusuke estava paralisado, enquanto Kuwabara parecia se fingir de morto, tanto quanto eu gostaria de estar nesse momento.
— Conseguimos detectar uma mentira com muita facilidade. Sei tudo o que está sentido, com base na sua temperatura corporal, pressão sanguínea e sinais fisiológicos.
— C-como disse?
— O que quero dizer é que posso detectar quando alguém está dizendo uma verdade ou uma mentira, de acordo com todos os sinais que o seu próprio corpo me indica. Mas é lógico que você já sabe disso — a sua voz soou um tanto irônica, mas, ao ver a confusão estampada em meu rosto, a sua abordagem mudou — Ah, então os seus amigos não lhe contaram?
Não, eles não contaram. Por que não contaram?! Atônita, neguei com a cabeça ao ver um sorriso triunfante no rosto de Shura. O sorriso maldoso e cruel de alguém que sabe como se divertir com a desgraça alheia.
— Que estranho. A menos que quisessem...— Yomi olhou para Kurama, interrompendo a fala. Todos nós já havíamos entendido o que queria dizer — Bem, não importa. Vamos voltar ao assunto. O que você não quer nos contar?
A forma como ele ignorou todos os sinais do caos que se expandia dentro de mim fez com que um nó fechasse a minha garganta de tanto nervoso. Ninguém precisou dispor das habilidades de Yomi para saber o que eu estava sentindo.
— Então, isso você não consegue saber?
— Não leio, nem adivinho pensamentos — ele retrucou, ignorando o meu tom hostil.
Aproveitei para xingá-lo mentalmente.
— Não consigo controlar o meu reiki — respondi, por fim, sem me importar com mais nada — A não ser que seja pra me curar ou curar os outros. Eu era a única que tinha esse problema no meu clã.
Mais relaxado, ele se recostou na cadeira analisando a veracidade da informação.
— Entendo. Era só isso que não queria nos dizer?
— Sim. E você já deve ter notado que estou dizendo a verdade, certo?
— Sim.
— Ótimo. Então eu vou me retirar. Tenho certeza que podem continuar essa reunião sem mim — me levantei bruscamente, cedendo à vontade de desaparecer daquele lugar. Naquele momento, cavaria um buraco e me enfiaria nele, se fosse necessário. Yusuke esticou o braço, ameaçando tentar me impedir, mas logo o cortei ao me afastar — O que vocês decidirem fazer, por mim está perfeito.
Ligada no modo automático, virei as costas e saí apressada dali, caminhando a esmo pela torre, enquanto tentava me distanciar o máximo possível de todos. Somente quando já estava longe o suficiente, me dei a oportunidade de enfim desabar, cedendo ao peso dos meus próprios sentimentos. Encostei na parede fria de pedra, e abracei a mim mesma, desacreditada pelo o que havia acabado de acontecer. Óbvio que não me contaram sobre Yomi, aquilo foi proposital. Não era Yomi quem estava me testando, eram eles. Yusuke, Kurama, Hiei, Koenma e até o inocente Kuwabara. Já não podia confiar em ninguém.
Aquela dor sufocante novamente pressionou o meu peito. A traição realmente me pegou de surpresa, e sabia que perdoar aquilo seria muito difícil. Eu precisava ir embora. Fugir para longe dali, onde nenhum deles pudesse me encontrar. Sabia que seria idiotice, mas não havia melhor opção. Centrada em buscar a saída da torre, perdi a noção do tempo percorrendo tantos corredores, porém, estanquei no lugar quando um vulto surgiu por trás de mim.
— Aonde pensa que vai? — Hiei se aproximou de um luminária fixada na parede, iluminando a si próprio naquela escuridão.
Estava tão preocupada com os demais youkais na reunião, que somente agora pude notar algumas escoriações em seus braços, assim como alguns arranhões presentes em seu rosto.
— Eu sabia que vocês viriam atrás de mim, mas não imaginei que mandariam logo você.
— Que ridículo. Como se pudessem mandar em mim! — ele pareceu realmente ofendido — Eu vim porque quis.
— É mesmo? Isso sim é esquisito, mas desisti de entender as atitudes de vocês. Já vi que dá pra esperar qualquer coisa.
Tentei seguir pelo corredor, mas, ainda mais rápido, ele interpolou novamente o meu caminho, dessa vez materializando-se na minha frente para impedir que eu avançasse.
— Me deixa em paz. Não quero conversar!
— Não vim pra conversar.
— E o que pretende fazer, então? Usar a força pra me levar de volta? Vai em frente. O que poder ser pior do que vocês já fizeram?
— Dispenso esse drama — ele revirou os olhos — Não tive nada a ver com aquilo.
— Não acredito em você.
— Isso é problema seu. Não vim aqui pra te convencer de nada, então guarde os seus surtos pra si mesma. Pretende fugir? Faça como quiser, mas você não tem pra onde ir, nem no Mundo dos humanos, nem no Makai. Aliás, você morreria antes mesmo de conseguir voltar pro Ningenkai. E nem sequer sabe onde o seu irmão pode estar. Você está completamente perdida.
— Eu posso iniciar a minha investigação do zero. Já fiz isso uma vez. E caso não se lembre, vocês também não sabem onde Kazuki está. Então não fale como se pudessem solucionar os meus problemas, porque vocês não podem!
— É mesmo tão idiota pra acreditar que conseguiria resolver tudo isso sozinha?
— Não. Eu sou idiota por ter confiado em vocês e principalmente por continuar aqui discutindo, sendo que você obviamente nem se importa. Pode sair do meu caminho?
Ele me analisou com calma e então se colocou de canto, abrindo espaço para liberar a passagem. Dispensei a cortesia, prosseguindo ao deixá-lo pra trás. Quando voltou a falar, porém, me virei em sua direção, totalmente surpresa.
— Está enganada sobre não podermos solucionar o seu problema. Encontrei uma forma de achar o seu irmão — ele cruzou os braços ao encostar na parede — Você não esperou Mukuro contar o que descobrimos.
— Do que está falando?
— Eu já disse. Uma forma de encontrar o seu irmão.
Descrente, logo imaginei que aquilo era um blefe. Uma jogada estúpida pra me fazer desistir de ir embora.
— Está mentindo, é claro.
— Por que eu perderia meu tempo fazendo isso? — sua expressão endureceu — Enquanto vocês estavam no Ningenkai, eu estive rastreando os demônios que enfrentamos no outro dia.
— E então? O que encontrou? Se isso é mesmo verdade, conta de uma vez!
— Pensei que estava decidida a ir embora.
Estremeci de raiva, segurando o impulso de não atacá-lo ali mesmo.
— Para de brincar comigo! Você vai me contar ou não?
— Não.
— O quê?! Então realmente veio atrás de mim só pra me irritar? Não é possível...
— Eu não vou te contar, porque você não acreditaria. Vou te mostrar — ele passou por mim como se me convidasse a acompanhá-lo. Ao perceber que não o seguia, porém, se virou impaciente — Vai ficar aí parada até quando?
Ainda desconfiada, o segui. No entanto, ao perceber que me levava a saída, o contestei, estranhando a atitude.
— Pra onde estamos indo, afinal?
— Pra fortaleza de Mukuro.
— Mas Mukuro pode não gostar disso. Você não deveria pedir permissão?
— Óbvio que não. E ela mesma teria te levado, se você não tivesse abandonado a reunião daquele jeito. Enquanto estamos aqui, eles continuam conversando. Mukuro vai deixar todos à par da situação.
— Que situação? Então foi ela que mandou vir atrás de mim?
— É tão difícil entender? Ninguém me mandou vir aqui — ele negou furioso, encerrando o assunto.
Permanecemos em silêncio pelo resto do percurso, e cada vez mais perdida conforme nos embrenhávamos naquela fortaleza, me vi preocupada ao perceber que jamais conseguiria encontrar o caminho de volta sozinha. Torci pra que isso não fosse necessário, enquanto descíamos os diversos lances de escadas até chegar ao que parecia à camada mais inferior do lugar. Por fim, Hiei abriu uma das inúmeras portas ali existentes, me conduzindo a um novo espaço.
O cômodo, muito mais amplo do que eu havia imaginado que seria, possuía diversas máquinas. Enormes painéis e equipamentos estavam organizados em fileiras, e o ar era refrigerado artificialmente, fazendo a sala mais parecer um freezer.
— O que é esse lugar? — estremeci de frio.
— O laboratório da Mukuro.
— Laboratório?!
Paralisei ao me lembrar do que ela tinha dito sobre me examinar. Então, Mukuro estava falando sério? Ao perceber a minha linha de raciocínio, Hiei também parou e, indignado, se virou pra mim.
— Não seja estúpida. Não farei nada com você.
— Então pra que me trouxe aqui? Por que não diz logo o que quer mostrar?
Vencido pela minha desconfiança, ele arquejou, farto de tanta insistência.
— Como eu disse, enquanto vocês estavam no Ningenkai, eu estive seguindo o rastro daqueles youkais. Demorou dias, porque o Makai é muito vasto — ele voltou a andar, me obrigando a seguí-lo para conseguir acompanhar o que dizia — As camadas mais profundas do Mundo das Trevas nunca foram exploradas, e ninguém sabe se existe alguém vivendo por lá.
— E você foi verificar? Então é por isso está machucado. O rastro vinha de lá?
Ele me relanceou irritado antes de responder, como se desaprovasse a observação.
— Sim, vinha de lá. Lembra do que Koenma contou sobre os Deuses? Eles aprisionaram aquele tal de Waru nas profundezas do Makai. Se ele é quem está por trás de tudo isso, é lá que o seu irmão deve estar.
Ele parou de repente, mas manteve o olhar distante. Confusa, o imitei, permanecendo exatamente ao seu lado.
— Isso não explica o porquê me trouxe aqui.
— Essas camadas profundas são completamente desconhecidas para nós. Não será tão fácil invadi-las. Eu não explorei nem em 5% daquele território e já encontrei obstáculos no meio do caminho. Além disso, se eles estiverem lá, não podemos arriscar que fujam novamente. Um passo em falso, e eles escapam. Precisamos saber exatamente onde estamos indo. O ideal seria termos um guia.
— Guia? Se ninguém conhece o lugar, quem vai ser o guia? Não faz sentido nenhum.
Contemplando a minha confusão, ele me encarou triunfante, antes de erguer o braço ao apontar para a nossa diagonal.
— Ela.
Me virei na direção indicada, deparando-me com tanques gigantes, cujo interior era preenchido por algum fluido borbulhante. Em um deles, um corpo flutuava inerte. Enrolado em um emaranhado de fios, tinha uma máscara de oxigênio presa ao rosto, impossibilitando que a reconhecesse de imediato. Mas ao me aproximar para ver melhor, arregalei os olhos e levei as mãos à boca para abafar um grito de espanto.
— Não pode ser...é aquela menina!
O seu nome me veio em mente, assim como a imagem vívida de seus cabelos prateados esvoaçando ao vento, enquanto a perseguíamos em Nozomi.
Chiharu.
