KIARA POV
Perplexa, perdi a noção do tempo, enquanto observava o tanque que continha Chiharu submersa. Tremendo discretamente, senti minhas pernas perderem a força com o impacto daquela surpresa, ao passo que inúmeras dúvidas brotavam frenéticas na minha mente, se embaralhando umas nas outras como um novelo de lã. Confusa, me voltei então para Hiei, tentando me recompor.
— O que isso significa? — apesar de todo o esforço para formular uma sentença minimamente descente, aquilo foi o melhor que consegui fazer. Patético, mas compreensível tendo em vista o meu estado de nervos.
— Eu a encontrei.
— Mas por que ela está assim? Olha só esses ferimentos. Meu Deus...você fez isso com ela?!
— Já estava morta quando a achei.
— Morta? Eu não entendo. Ela estava bem quando fugiu daquela ilha. Isso faz o quê? Uns três dias? O que aconteceu?!
— Não tem como saber. O cadáver estava prestes a ser devorado por inugamis quando o resgatei, mas não foram eles que a mataram.
— Inugamis?
— Sim. É uma espécie de demônio-cão. A questão é que ela tinha um ferimento enorme no peito, muito diferente do que esses cães costumam fazer. Eles retaliam as suas vítimas até sobrar somente ossos. Foi outro youkai que a atacou, embora o golpe não tenha a matado de imediato. Provavelmente ficou agonizando por muito tempo antes de ser descartada como lixo.
— Que horror. Mas se ela está morta, então...
— Não ouviu Mukuro dizer que a nossa tecnologia é muito mais avançada que a dos humanos? — ele me interrompeu, antecipando o que eu diria.
— Claro que ouvi, mas ressuscitar alguém? Isso é impossível!
— Não é. Tudo depende do estado do corpo. Enquanto houver células ativas, a regeneração pode ser possível. É óbvio que, quanto antes o tratamento começar, melhor. No caso dela, o processo vai ser lento. Já estava morta há muitas horas. Nem ao menos sabemos se vai funcionar.
— Quais são as chances?
— Nobu estimou em quarenta por cento, talvez um pouco menos, mas isso não importa.
— Quem?
— O pesquisador contratado por Mukuro. Ele gerencia tudo nesse laboratório. Sempre calcula probabilidades em casos como esse. De qualquer forma, números não significam nada. Não é possível mensurar a força de vontade que alguém possui para permanecer vivo. Tudo pode acontecer. E se der certo...
— Se der certo, ela pode me levar até o Kazuki! Ela pode me contar o que fizeram com ele e como eu faço pra ele voltar ao normal. É perfeito! Isso tem que funcionar.
Ele não respondeu, deixando que as a ilusão tomasse conta de mim, enquanto fantasiava o cenário mais favorável possível. Quase podia me imaginar abraçando Kazuki novamente quando, de repente, um único pensamento fez com que aquela momentânea felicidade se estilhaçasse em mil pedaços. Frágil como vidro.
A euforia extasiante durou bem menos do que eu gostaria.
— Preciso ir até lá — murmurei, quando as palavras escaparam da minha boca.
— O quê disse? — ele me observava de braços cruzados.
— Eu não posso esperar. Se eles fizeram algo com essa menina, que era aliada deles, podem ter feito com Kazuki também. Preciso encontrá-lo, urgente!
— Não ouviu nada do que eu disse? Não será fácil invadir aquele lugar, por isso precisamos da garota. Não me faça repetir tudo de novo.
— Se você não contar aonde fica, eu descubro sozinha.
Ele me olhou desacreditado, certamente julgando a minha capacidade de discernimento, mas nem me importei. Sabia que o meu argumento era válido.
— Você é o que eles querem. Vai se entregar tão facilmente?
— Óbvio que não. Eu vou ter cuidado.
— Não se trata de ter cuidado. Quando se é mais fraco que o seu adversário, nem toda a cautela do mundo vai salvar a sua vida.
— Você não entende? Enquanto estamos discutindo aqui, o meu irmão está sofrendo sabe-se lá aonde. E se ainda não percebeu, eu estou desesperada pra trazê-lo de volta! Eu preciso ir atrás dele.
Ele arqueou as sobrancelhas e, apesar de não sorrir, soava como se achasse graça.
— Então é bom que saiba de uma vez que Mukuro vai propor a todos que a investigação prossiga sem você.
— O quê? Por quê?!
— Porque ela acha que o seu envolvimento emocional só vai nos atrapalhar.
— Isso não faz sentido algum! E desde quando ela decide como as coisas tem que ser? Ninguém aqui tem o poder de mandar em mim.
— Koenma acha que tem. Se ela o convencer, você ficará de fora.
— Não! Isso não! Eu preciso estar lá. Mukuro estava certa quando disse que temos prioridades diferentes. Quem prioriza o meu irmão, além de mim mesma? Se eu não estiver lá pra salvá-lo, ninguém vai fazer isso! Apesar de Yusuke ter me garantido que me ajudaria, não é a mesma coisa. O que você faria se estivesse no meu lugar? O que qualquer um de vocês faria? Duvido que deixariam a vida de quem mais lhes importa nas mãos de outra pessoa. Não dá pra simplesmente ficar de braços cruzados. É a minha responsabilidade.
Ele se calou, me analisando como uma incógnita. Remoendo o meu próprio monólogo, senti como se estivesse falando com as paredes. Uma conversa completamente inútil e vazia, que não nos levaria a lugar algum.
— Ah, quer saber? Esquece! Não sei pra quê eu continuo tentando te explicar. Óbvio que você não consegue se colocar no meu lugar, e muito menos entender o meu ponto de vista.
— Cala a boca — ele retrucou apressado e ríspido. Um tom levemente mais agressivo do que o normal — É claro que entendo, e nem sequer estou tirando a sua razão. Por mim você faz o que quiser. Eu não estou tentando te impedir.
— Então por que está me falando tudo isso?
— Não é óbvio? Apenas te alertei sobre o que vai acontecer. Se não quiser que seja assim, é bom começar a pensar num jeito de driblar o idiota controlador do Koenma.
Arrependida por ter interpretado errado e me colocado na defensiva desnecessariamente, abaixei a cabeça envergonhada, ainda estranhando aquela atitude. Antes que tivesse a chance de responder, porém, as portas do laboratório se abriram de repente. Acompanhada de Yusuke, Kurama, Koenma, Kuwabara e um de seus subordinados, Mukuro caminhava lentamente até nós. Seu rosto era de pura tranquilidade. Muito diferente do que eu tinha imaginado que seria.
— Pelo sua cara, já está a par de tudo — ela disse, aproximando-se um pouco mais— Imagino que esteja mais calma agora.
Definitivamente eu não estava, mas ignorei a sondagem nada sútil, desviando o assunto.
— Onde estão os outros? Yomi e todo o resto.
— Já contei a eles tudo o que precisavam saber, mas Yomi não entra aqui. Não pretendo criar problemas com o meu exército.
— Isso é inacreditável — Koenma se aproximou do tanque de Chiharu, fazendo com que automaticamente eu me afastasse dali. A raiva ainda reverberava como fagulhas dentro de mim — Por que será que a atacaram?
Pelo canto dos olhos, observei Kuwabara lacrimar, embora suas feições endurecidas não demonstrassem nada além de fúria. No fundo, ele não passava de um gigante gentil.
— Quando acho que eles não podem mais nos surpreender...— ele disse então, completamente chocado — Apesar de tudo, era só uma criança. Como tiveram coragem?
— E depois de tudo que já fizeram com todo o clã da Kiara, você ainda esperava um ato de compaixão? — Yusuke retrucou — Quantas crianças eles já não mataram ali?
O comentário indiscreto abriu um rombo no meu peito, mas não deixei que transparecesse.
— Como ela está hoje, Nobu? — Mukuro perguntou ao youkai que há pouco Hiei me contou ser o pesquisador local. De porte pequeno e aparência frágil, ele realmente não parecia exercer uma função no exército que envolvesse usar a força física — Alguma evolução?
Apertando os botões do painel mais próximo, ele examinava as informações trazidas pelo monitoramento da máquina, já que os eletrodos, em conjunto a tubulação em presa na veia da garota, ofereciam constantes informações sobre o seu estado.
— Boa notícia. Parece estar progredindo. A hipóstase já diminuiu consideravelmente e o sangue dela está acumulando açúcar rapidamente. As funções dos órgãos ainda não foram restabelecidas, mas o núcleo já mostra sinais de fortalecimento. Além disso, detectamos uma mínima atividade neural. A oxigenação do corpo está boa, então não precisaremos aumentar a dosagem.
— Excelente. Eu realmente duvidei que reagiria ao tratamento, mas ela deve vir de uma linhagem bem resistente.
— E o que decidiram na reunião? Suponho que não vamos ficar aqui esperando ela acordar. Agora que Hiei conhece o caminho, poderíamos ir até lá — arrisquei. Ao meu lado, Hiei revirou os olhos.
— Hiei não conhece o caminho. Ele não te explicou como as coisas aconteceram?
— Lógico que expliquei, mas uma porta teria me dado mais atenção.
Abstraí a crítica, focando apenas em permanecer racional. Sabia que precisava me controlar para conseguir o que queria.
— Eu já entendi que é perigoso e que não conhecemos o lugar, mas se Hiei conseguiu encontrar Chiharu seguindo o rastro de youki, podemos continuar de onde ele parou. Não faz sentido ficar aqui esperando.
— Você quer mesmo jogar fora a única vantagem que conseguiu obter sobre esses youkais? De que adiantará salvar a vida dessa menina, se ela não servir pra absolutamente nada? Eles não sabem que estamos com ela, e é disso que devemos nos aproveitar. Um movimento em falso, e eles escapam. E aí, salva-la terá sido em vão. Pelo que tinham me dito, achei que fosse um pouco mais esperta.
A provocação não me atingiu. Do contrário, simplesmente entrou por um ouvido e saiu por outro.
— Tudo bem. E qual é o plano, então?
— Enki ficará monitorando as redondezas do abismo em que Hiei a encontrou, assim como alguns integrantes do meu exército. Se os suspeitos aparecerem por lá, eles serão capturados. Enquanto isso, Nobu ficará cuidando dessa criança, e fará o possível pra que ela sobreviva.
— É só isso? Ficaremos olhando, enquanto os outros fazem tudo?
— Calma Kiara, tem outra coisa que você não sabe — Koenma se dirigiu a mim pela primeira vez desde o nosso desentendimento. Evitei olhar diretamente em seus olhos, incapaz de esconder o ressentimento — Mukuro não era a única que tinha algo a nos contar. Yomi disse que há alguns dias surgiu um boato de que um humano foi visto nas redondezas de Gandara.
Ergui os ombros e o encarei, me esquecendo da raiva que sentia. Tão surpreso quanto eu, Hiei mudou a postura displicente, realmente interessado na conversa.
— Um humano? Kazuki?!
— As descrições não foram precisas, mas é o que tudo indica. Por isso, não podemos nos precipitar. Gandara fica bem longe de onde Chiharu foi encontrada. Entende o que isso significa? Que talvez o caminho que Hiei achou, não seja de fato o caminho certo. Ou, talvez, não seja o único caminho. Não temos certeza que o seu irmão estará lá. Não temos certeza de nada.
— Mas eles não deixariam o seu irmão vagar sozinho por aí. Outros integrantes do grupo devem estar junto com ele. Yomi e sua equipe começarão a procurar o quanto antes. Lógico que nós também vamos ajudar — Yusuke acrescentou aquela última observação ao perceber o pavor estampado em meu rosto só de pensar na possibilidade de Kazuki ser encontrado primeiro por Yomi.
Minha cabeça latejou numa dor que eu nem havia sequer percebido que já vinha crescendo há um tempo. Além disso, as minhas pálpebras pesaram, piorando ainda mais o meu estado. Aquele dia havia sido muito mais intenso do que eu imaginava que seria, e raciocinar já estava se tornando impossível. Ao perceber a minha condição, Kurama sutilmente sugeriu que voltássemos para a torre de Raizen, com o intuito de descansarmos para o dia seguinte que nos esperava. O dia que, aparentemente, seria tão ou mais longo do que esse.
Deixando Mukuro e Hiei para trás — com a promessa de que teria permissão pra entrar na fortaleza móvel quando quisesse para acompanhar a evolução de Chiharu — a contragosto me juntei a Yusuke, Kuwabara, Koenma e Kurama. A ideia de nos separarmos estava fora de cogitação. Ter a criança em nossas mãos anulava completamente as minhas possibilidades de conseguir encontrar novas pistas sozinha. Gostando ou não, eu precisaria continuar com eles, se quisesse realmente encontrar o meu irmão.
Com o clima tenso e pesado se sobrepondo a nós, ninguém ousou dizer uma só palavra até chegarmos ao quarto em que havia me hospedado. No entanto, embora o silêncio fosse revigorante, sabia que não duraria para sempre. Confirmando as minhas suspeitas, Koenma parou diante de mim, se aproximando ao forçar um contato visual.
— Você sabe que precisamos conversar. Assim posso te explicar o porquê fiz o que fiz.
Exausta demais pra relutar, assenti em resposta, deixando-os entrar no dormitório. Permiti então que Koenma tomasse a palavra, desabafando sobre a situação.
Antes de tudo, ele se desculpou pelo que havia feito e, em seguida, contou a sua versão da história, relatando desde o encontro com um anjo em frente ao portal para o Mundo dos Deuses, até o momento em que Kurama sugeriu vir para o Makai. Pacientemente o esperei terminar, antes de atacá-lo com quaisquer palavras que me viessem em mente.
— Você deveria ter me contado o que estava acontecendo. Não acredito que foi tão volúvel a ponto de ser influenciado por alguém que nem conhece.
— Eu sei — ele esfregou os olhos, martirizando a si próprio — Peço desculpas. Sei que foi estupidez.
— Muito fácil se desculpar agora que tem certeza que o errado foi você. Deve estar feliz, né? Conseguiu o que queria. Espero que pelo menos agora você tenha certeza que eu não estava escondendo nada — ele permaneceu calado, abrindo espaço para me virar em direção a Kurama. Inevitavelmente o fitei com desprezo — E você? Cresci ouvindo histórias sobre o quanto você era cruel, mas não imaginei que fosse desse jeito.
— Nunca duvidei de você — ele se defendeu, ignorando a dureza nas minhas palavras.
— Ele está falando a verdade. A ideia de Kurama era apenas conseguir aliados. Nem ele, nem Yusuke concordaram comigo. Se quiser descontar a raiva em alguém, desconta em mim — Koenma interveio.
— Isso não anula a responsabilidade deles — rebati, me voltando para Yusuke dessa vez — Se realmente discordou, por que não me contou a verdade?
Ele torceu os lábios, completamente sem resposta.
— Eu deveria ter feito isso — disparou por fim.
— Mas não fez!
Relanceei então Kuwabara que, assustado, tratou de se explicar apressadamente.
— Eu nem sequer sabia de nada.
— Eu sei.
— Jura?
— No começo achei que todos vocês estavam envolvidos nisso, mas pensando com mais calma, me lembrei de que você esteve comigo e com a Yukina o tempo todo. Não tem como você ou Hiei terem participado desse plano estúpido.
Aliviado, ele relaxou os músculos, contente por desfazer o mal-entendido. Pelo menos um ali ainda se salvava.
— Eu já disse que a culpa foi toda minha — Koenma voltou a dizer — Eu estava desesperado com tudo o que tem acontecido no Reikai e fui um completo idiota. Estou arrependido e não vai acontecer de novo. Eu confio em você.
— Como eu falei, é muito fácil dizer isso agora que você conseguiu me colocar a prova, né? Já eu, não sei se confio em você. Não mais.
Ele suspirou, visivelmente cansado e abatido.
— É justo. Mas se não quer confiar em mim, pelo menos confie nos outros. Eles sempre estiveram do seu lado.
— Pra mim, vocês três não passam de uns traidores.
— Ei, ei! Sossega o facho, criatura! — Yusuke rebateu — Reconheço que fiz mal, mas traidor? Não é pra tanto, né?
— Yusuke está certo — Kurama elevou o tom de voz — Eu entendo que esteja chateada e aceito ouvir tudo que quiser jogar na nossa cara. Não vou tentar me justificar com desculpas esfarrapadas, mas não se esqueça de que estamos aqui por você. Talvez as coisas tenham fugido do controle, mas desde que nos conhecemos, tudo que fizemos foi tentar te ajudar. Koenma tinha dúvidas, então resolvi o problema da maneira que deu. Lamento muito que isso tenha te prejudicado de alguma forma. Mas pelo menos agora temos importantes aliados ao nosso lado.
— Argh! Esse seu ar diplomático é muito irritante, sabia?
Petrificado como uma estátua, ele não pareceu nem um pouco ofendido, e por não conseguir arrancar a reação desejada, aquilo me deixou ainda mais chateada.
— Você vai me desculpar Kiara, mas está sendo injusta — Kuwabara interveio — Sou o primeiro a repudiar o que eles fizeram, mas realmente só estão tentando te ajudar. Não pode trata-los como se fossem inimigos.
— Me expressei mal, que seja! Mas nenhum de vocês tem o direito de reclamar. Talvez "traidores" não seja a palavra certa. Eles são apenas...idiotas. Melhorou assim?
Os três se entreolharam, conformados com o julgamento.
— Por mim, tá ótimo — Yusuke respondeu ao se aproximar — Está mais calma agora que ouviu a nossa versão da história?
— Mais calma? Eu tô furiosa! Acho que fiquei ainda mais irritada.
— Ah, qual é? Você tá sempre irritada — endureci a expressão, reprovando o comentário — Viu só? Já ficou nervosa de novo. Afinal, estamos em paz ou você vai fazer essa cara feia toda vez que se encontrar com a gente?
— Ok. Até posso dar outro voto de confiança pra vocês dois — o respondi, relanceando Kurama em seguida — Mas nem tentem fazer uma gracinha como essas de novo. Do contrário, acabo com todos vocês.
A ameaça pareceu se perdeu no ar, evaporando como água. O efeito que deveria ser impactante, mais parecia coisa de criança.
— Combinado — Yusuke respondeu.
— Espero um dia recuperar a sua confiança também — um tanto deprimido, Koenma me encarou com olhos esperançosos.
Ao lembrar do que Hiei havia contado, uma ideia martelou na minha mente. Aquela era a minha chance de ouro.
— Isso vai depender das suas atitudes daqui pra frente. Aliás, aproveitando o assunto, eu vou direto ao ponto. Por acaso Mukuro disse pra me deixar fora das buscas?
— O q-quê? Ah, que droga...— de repente, ele se fixou nos próprios pés, decidindo se me contaria a verdade ou não — Eu ia falar disso com você amanhã.
— Espero que não esteja pensando em acatar essa sugestão.
— Seria pro seu próprio bem. Pra que não corra perigo.
— Duvido que Mukuro esteja preocupada com a minha segurança.
— Ela não, mas eu estou. Não quero que te aconteça nada. Seria melhor se ficasse escondida aqui. Poderia ir acompanhando a evolução de Chiharu.
— Você não vai me deixar de lado. Eu quero participar das buscas pelo meu irmão. Se tentar me impedir, juro que eu vou sumir daqui e voltar a agir sozinha. Nem que eu mesma tenha que ir até o lugar onde Hiei encontrou a menina!
— Por favor, não dificulte as coisas. Você nem sabe onde fica esse lugar.
— Mas é claro que sei. Ele me contou — arrisquei, torcendo para que ele se cedesse ao blefe.
— Mentira. Hiei não faria isso. Eu o conheço.
— Pelo visto não o suficiente. Aposto que pensou que ele não diria nada sobre os planos de Mukuro também — o semblante de Koenma mudou, quase totalmente convencido — Eu sei de tudo, e posso muito bem dar um jeito de ir pra lá. Vai por mim, eu sei ser convincente quando quero e posso fazer com que alguém me ajude. Não foi à toa que enganei aquele idiota do Yamazaki por tanto tempo.
— Meu Deus...isso seria tão inconsequente. Você sabe disso.
— Não me importa. Se não quiser que seja assim, faça com que as coisas aconteçam do meu jeito.
Ele não respondeu. Cansado, desviou o olhar para cima, procurando por uma solução que jamais cairia do céu.
— Achei que estivesse disposto a tudo pra reconquistar a minha confiança. Parece que me enganei.
— Ok, eu já entendi. Farei o que me pedir.
— Sério? — surpresa com o resultado positivo, me senti eufórica por finalmente conseguir assumir o controle de alguma coisa — Então quero que amanhã mesmo recuse o pedido de Mukuro e deixe bem claro que eu vou participar. E não é só isso. Quero que me prometa que nunca mais me esconder nada. De agora em diante, transparência total. Senão, você já sabe.
— Tudo bem, eu prometo. Só não faça nenhuma imprudência.
— Se você não fizer, eu também não farei.
Ele balançou a cabeça em concordância, assimilando a advertência.
— Amanhã discutimos por onde começaremos — Koenma se dirigiu para a porta, prestes a ir embora. — Tenha uma boa noite.
Kurama e Kuwabara o acompanharam, ao passo que Yusuke se aproximou lentamente de mim, com a cautela de quem estava prestes a contar o mais obscuro dos seus segredos.
— Você é uma manipuladorazinha, hein? — ele então sussurrou antes de se afastar.
A sua expressão, porém, não era de reprovação. Um discreto sorriso nos lábios estampava o seu rosto. Satisfeito e divertido.
Deixando-o sem resposta, um por um, os observei sair do quarto. Yusuke, sendo o último a ir, fechou a porta, me deixando completamente sozinha. Cansada, me lancei sobre a cama e fechei os olhos. Meus pensamentos divagavam entre Chiharu dentro do tanque, Yomi atrás de Kazuki e Koenma sentindo-se culpado pelo desfecho desastroso da reunião. Alguns outros detalhes daquele dia ainda vagavam perdidos pela minha memória, no entanto, estava tão exausta que nem sequer tinha forças para me focar em cada um deles. Peguei a corrente que se escondia por debaixo da minha roupa e encarei a Hiruiseki que carregava comigo pra todos os lados. Yukina estava certa. Aquela pedra era mesmo capaz de trazer uma sensação ótima de tranquilidade. Ao menos, tinha dado um fim aos pesadelos que há meses me atormentavam. Foi a minha salvação nos últimos dias!
Cada vez mais calma, relaxei esperando o sono chegar, deixando todas as angústias, medos e decepções para trás. Fechei então os olhos, carregada pelo embalo do sono mais sereno que tive em muito tempo.
xxxx
— Ela está no reino de Raizen? — perturbado, Shinzou perguntou ao demônio que se curvava diante dele, completamente submisso.
— Exatamente — o outro o respondeu — E a criança que vocês descartaram foi recuperada por Mukuro. Estão tentando salvá-la da morte nesse exato momento.
— Se refere a Chiharu? Não é possível! Tem certeza do que está falando?
— Eu sou apenas um mensageiro, senhor. Essa foi a informação passada para mim, vinda de um dos seus homens de confiança, se entendi bem.
Shinzou crispou os lábios, num misto de preocupação e indignação. A fonte era confiável, mas, ainda assim, ele não queria acreditar.
— Malditos. Como conseguiram encontrar Chiharu?
Ele se lembrou do momento em que a menina foi atacada diante de seus olhos. Ela pagou um preço caro por fracassarem em Nozomi.
— Disso eu não sei. Somente posso garantir que a garota que procuram está agora no reino de Raizen, protegida por aliados como Mukuro e Yomi, além de tantos outros. Eles se reuniram há pouco. Deseja que eu leve alguma informação de volta?
Shinzou refletiu por alguns instantes. Precisava contar a todos o que havia acabado de descobrir. Ele sabia que seria difícil capturar Kiara diante de tantos youkais poderosos, mas teria que tentar mesmo assim. Da mesma forma, deveria impedir que Chiharu acordasse, ou mesmo que fosse usada pelos seus adversários. Embora a lealdade da menina para com ele fosse inquestionável, preferiria não correr o risco de que a forçassem de alguma forma.
No entanto, tudo deveria ser minimamente planejado. Se quisesse que isso desse certo, primeiro ele precisaria se livrar do filho de Raizen e dos demais obstáculos em seu caminho.
— Sim — respondeu por fim — Quero que continue nos servindo de intermediário. Só assim saberei o momento ideal para agir. O momento em que estarão tão vulneráveis que nem sequer saberão dizer de onde veio o ataque.
— Tudo bem, mas o meu preço é elevado. Espero que isso não seja um problema.
— Desde que não nos traia, será recompensado como merece.
— Nunca traio os meus clientes.
— Acho bom mesmo, Rito — Shinzou se aproximou do mensageiro, se inclinando em sua direção a fim de encara-lo diretamente nos olhos. A ameaça se concretizou em seguida — Caso contrário, o seu destino não será nada agradável.
Rito não se intimidou. Acostumado a ser amaçado pelos mais poderosos demônios durante durante toda a sua vida, simplesmente cobriu a cabeça com o capuz de suas vestes, tentando se proteger do vento frio que cortava a sua pele fina e enrugada pela velhice.
— Não há com o que se preocupar — respondeu então, tranquilamente — O que quer exatamente que eu faça?
— Quero que volte e diga a ele que o nosso exército já está quase pronto. Preciso que me diga o melhor momento para atacarmos a garota. De preferência, que ele tire os outros do nosso caminho. Enfrentá-los só nos atrasará.
Shinzou desviou o olhar do mensageiro, dirigindo-se a horda de youkais que se aglomerava em frente ao local em que estavam. Ele observou alguns demônios digladiando entre si em busca da melhor posição na fila que ali se formava e, somente ao ver um ogro arrancar um braço de outro, decidiu então intervir. Manipulando os demônios à distância com a sua telecinese, ele os paralisou, forçando um girar do pescoço de ambos até o total rompimento dos ossos e desligamento do restante do corpo. Assustados, os demais youkais automaticamente pararam de brigar, deixando que a ordem e a disciplina tomassem conta.
— Vou dizer a ele o que me pediu. Voltarei com novas informações assim que possível.
— Estarei esperando.
Shinzou observou Rito se afastar até sumir por completo dentro da escuridão infinita daquele fim de mundo em que os seus superiores habitavam. Somente então se voltou novamente para os milhares de demônios ali presentes. Precisava avaliar quais deles seriam úteis, nem que fossem apenas para servir de distração.
O seu foco, porém, mudou de repente. Saindo do covil, uma figura medonha roubava a atenção de todos. Apesar de discreto, a sua energia era devastadora demais para passar despercebida.
Waru não costumava se expor daquela forma, e inclusive preferia deixar que os demais anjos decaídos cuidassem de tudo, mas Shinzou sabia que sua paciência já estava perto do limite. Se ele não fossem rápidos, Waru tomaria a frente da situação, mesmo que isso significasse arriscar a sua própria vida outra vez.
Os seus olhares se cruzaram por um instante e Shinzou engoliu em seco. Havia algo de tenebroso naquele olhar, algo que ele nunca tinha sentido antes. Mais uma vez ele se lembrou de Chiharu, pensando dessa vez em sua própria incompetência. Até quando o tolerariam sem que ele tivesse que sofrer com o mesmo destino que ela?
Definitivamente, o seu tempo também estava se esgotando. Ele precisava agir, antes que fosse tarde demais.
