KURAMA POV
— Corram! — o grito de alerta ecoou à distância.
Os suspeitos saíram em disparada, espalhando-se por diferentes direções. Apressados, alguns generais de Yomi os seguiram, sem se importar com o campo minado ali presente. O contato de cada um deles com o solo inimigo reverberou em múltiplas explosões já programadas para destruí-los.
O Makai tinha virado um verdadeiro campo de guerra. Ninguém sabia dizer ao certo o que estava acontecendo. O fato era que uma força desconhecida assombrava a todos, causando pânico em cada canto do mundo dos demônios. Aliado a isso, boatos e teorias da conspiração tornavam o cenário ainda pior. Por isso, inúmeros grupos de youkais estavam se formando, unidos por um interesse comum. Alguns queriam apenas se proteger do que estava por vir, já outros — bandidos ou sobreviventes — planejavam saquear grandes cidades, aproveitando-se da crise que se aproximava.
Gandara, com todas as suas riquezas, foi alvo de algumas tentativas, é claro. Mas Yomi e seu povo eram poderosos demais pra se deixarem simplesmente invadir tão facilmente. A proteção deles era grandiosa.
Há dias estávamos nas redondezas do seu reino, procurando pelo humano que tinha sido avistado por ali. Em geral, eu acompanhava os subordinados de Yomi, junto a Jin, Suzaku e Shishiwakamaru. Houkushin, Yusuke, Kiara, Kuwabara, e os outros seguiam pelo caminho oposto, vigiando a outra extremidade. O exército de Mukuro continuava averiguando o local em que Chiharu foi encontrada, à espreita de um novo sinal. Hiei, Enki e outros colegas de Raizen alternavam as rotas. Ora estavam por aqui, ora por lá.
Apesar de todos os esforços, até agora não tínhamos saído do lugar. Perdi a conta de quantos grupos criminosos encontramos pelo caminho, roubando e matando sem motivo. Uma verdadeira desordem. Nem todos os youkais eram realmente ruins ou mal-intencionado, mas a atual situação de calamidade estava enlouquecendo todos.
Eu achava que hoje não seria diferente. Conforme perseguíamos uma horda de suspeitos que se reuniam em meio a ruínas abandonadas, desviei das bombas que tinham sido deixadas abaixo do solo. Passei por elas a tempo de ouvir alguns gritos agonizantes que se perderam no ar, distantes de mim. Ignorei os demônios que se dispersaram, focado em apanhar o que estava paralisado no mesmo lugar, tremendo amedrontado. O simples fato de não ter fugido como os demais já me mostrava a sua vulnerabilidade. Um alvo resistente era tudo que eu não queria. Precisava conseguir arrancar informações minimamente úteis.
Ele nem sequer piscou quando me aproximei. Estava em pânico. Tentei tranquilizá-lo, arrastando-o para fora do perigo, numa área florestada em frente àqueles destroços.
— Não se preocupe, não quero te fazer mal.
Ele se mostrou desorientado, sem saber as minhas intenções. Ainda estava desconfiado.
— O que vocês faziam aqui? — perguntei, direto ao ponto — Planejavam saquear algum lugar?
Ele recuou, negando em seguida.
— Eu só obedecia ordens! Estamos todos desesperados. Nossos lares foram destruídos!
— Eu sei. Está tudo complicado, não é? — tentei ser compreensível para conquistar a sua confiança — Eu quero ajudar, entender o que está acontecendo. Estão fugindo de quem?
— Não somos fugitivos! Nosso grupo era formado por youkais perdidos. Deve saber dos diversos roubos e ataques que estão deixando o Makai em colapso, não? Cidades inteiras foram devastados. Só estávamos nos ajudando a sobreviver.
— Sim, eu estou sabendo. Quem destruiu o lugar que você morava?
— Não sei. Tive sorte de escapar vivo. Mas pelo que soube, não é só um grupo específico. São diversos demônios que estão gerando revoltas por todos os lados. Alguns surtaram completamente. Raças inteiras estão sendo dizimadas.
— É um ciclo, percebeu? Cidades são destruídas por um grupo de youkais, gerando um novo grupo de demônios perdidos que partem para novos ataques e saqueamentos. E por aí vai.
— Já disse que não queríamos roubar nada. Só queremos sobreviver! Estávamos buscando acordos. Comida e abrigo em troca de trabalho.
— Estavam fazendo acordo com alguém por aqui? Não era o que parecia. Um lugar remoto como esse. Por que estão fugindo?
— Um lugar discreto, você quis dizer. Era o que o cliente queria. Só fugimos porque vocês nos atacaram sem motivo! Chegaram aqui matando todo mundo, sem explicação!
Tinha que reconhecer que ele estava certo. O exército de Yomi não perguntava antes de atacar. Agiam sem piedade ou cerimônia.
— E as bombas? Se não estavam fazendo nada de errado, por que as programaram?
Ele engoliu em seco, sentindo-se pressionado.
— Era só por precaução. Não sabemos com que tipo de gente vamos lidar — o suor escorria pelo seu rosto coberto de fuligem — Por que tenho que responder tantas perguntas?!
— Não precisa responder — ele arregalou os olhos, desconcertado — Eu só queria a sua colaboração. Já disse que não te machucarei. Quero falar com o seu líder. Tenho certeza que não o vi por ali, junto dos outros. Onde ele está?
— Eu não sei. Quer dizer, ele entrou na mata com aquele humano.
Pego de surpresa, demorei alguns segundos para assimilar a última palavra. Ele tinha mesmo dito humano?
— Como é? Tinha um humano aqui?
— Sim. Foram pra floresta conversar em particular. Não sei quem ele era ou o que queria. O chefe disse que seria um possível cliente. Está tudo tão confuso...
Nem sequer terminei de ouvir as suas lamentações. Rápido, adentrei à floresta, torcendo para que os encontrasse a tempo. Porém, a decepção veio no instante em que me deparei com um cadáver estirado no chão. O líder daquele bando, estava morto.
Confuso, examinei o corpo, avaliando os ferimentos que tiraram a sua vida. A situação era clara: uma lâmina, vários golpes e ninguém por perto. O embate foi violento e o corpo estava perfurado em todos os seus órgãos vitais. O assassino não teve clemência durante a execução e provavelmente continuou apunhalando o seu adversário mesmo depois de morto.
Num primeiro momento, imaginei que demônio nem sequer teve chance de revidar, mas mudei de ideia ao reparar que suas mãos também estavam sujas de sangue. Qualquer um que não tivesse experiência, diria que se tratava de seu próprio fluido, mas eu sabia que não era o caso. As diferenças eram sutis, mas ainda assim era possível distinguir sangue humano de youkai. A viscosidade não era a mesma. Então, o demônio revidou e conseguiu atingir o alvo. Ambos se feriram, um deles estava morto, mas e o outro? As feridas eram recentes, então o humano não podia estar muito longe.
Tentei me desvencilhar de toda aquela confusão à minha volta. Buscar uma aura específica é difícil quando se está em meio a uma multidão. Como são muitas energias presentes ao mesmo tempo, a técnica exige muita concentração. Por sorte, eu tinha bastante experiência nesse quesito. Assim, fechei os olhos, apagando tudo ao meu redor. Na escuridão da minha mente, eliminei qualquer traço de youki existente, deixando me guiar pela energia espiritual do humano que causou tudo aquilo. Quando captei um reiki, fraco e próximo de mim, me surpreendi. Tinha algo de estranho...algo peculiar. Semelhante ao de Kiara.
Kazuki.
Não entendi o que ele estava fazendo ali, tampouco sabia que tipo de negócios pretendia fazer com aquele youkai. Mas obviamente os seus planos deram muito errado.
Me aproximei devagar, tentando não dar na cara o fato de ter descoberto o seu esconderijo. O sinal se amplificou quando adentrei ainda mais à mata fechada. Eu estava perto, muito perto. Talvez ele até estivesse me observando de algum lugar, esperando o melhor momento para tentar fugir. Antes que eu pudesse encontrá-lo, porém, o rastro sumiu. Havia uma interferência de energia demoníaca na mesma intensidade. O reiki ia e voltava constantemente, até que simplesmente desaparecer por completo. Paralisei no mesmo lugar, antes de entender o que estava acontecendo. Ele estava alternando entre youki e reiki, tentando me confundir? Mas é claro. Ele já tinha percebido que eu o seguia dessa forma.
Muito esperto.
De repente, a energia espiritual se restabeleceu, já se afastando rapidamente de onde eu estava. Olhei para trás a tempo de vislumbrar apenas um vulto correndo na direção oposta, desaparecendo dentre a escuridão das árvores da floresta. Com tantos obstáculos no caminho, eu sabia que ele queria me despistar. A sua ingenuidade era tanta que nem sequer cogitava a possibilidade de ter entrado no território que me era mais favorável.
Apressado, ele seguia para o manguezal que existia em meio ao terreno. Uma região arenosa e úmida, difícil de se embrenhar. Parecia desconhecer o lugar, pra minha sorte. Preparei as sementes parasitas que trazia comigo, decidido a usar as plantas a meu favor para alcançá-lo. Se estava realmente ferido, não seria difícil obter sucesso.
Assim que as joguei, as sementes se infiltraram no solo e germinaram em seguida. A floresta inteira reagiu ao meu comando. Galhos, troncos e raízes se moveram na direção dele conforme avançava cada vez mais. Ao passo que as plantas dificultavam a sua passagem, liberavam a minha, abrindo o caminho para que eu pudesse prosseguir. No entanto, ainda sem enxergá-lo em meio àquele matagal, ouvi um baque surdo, acompanhado por um grunhir distante e irritado.
Ele tinha sido pego.
Eufórico, continuei me guiando pela sua energia, cada vez mais perto. Quando sentia que o ápice do encontro chegava, porém, o reiki desapareceu. Frustrado e confuso, cheguei tarde demais.
Facilmente identifiquei o local em que Kazuki caiu no chão. Marcas antropomórficas estavam presentes no lodo do solo. As plantas que o capturaram, no entanto, estavam mortas. Sulcos profundos retaliaram as raízes, e pelo que parece, algo as enfraqueceu. Pareciam...dissolvidas?
Me concentrei novamente, buscando rastreá-lo mais uma vez. Desaparecer sem explicação não fazia sentido. Ele tinha que estar ali. Perdi a noção do tempo, paralisado no mesmo lugar, até me dar conta de que aquilo era inútil. Ele sumiu sem deixar rastros. Escapou bem diante dos meus olhos. Era como se tentasse segurar água com as mãos. Uma sensação escorregadia e fugaz.
Eu estava perdido, sem saber o que fazer. Por mais que me esforçasse, não conseguia entender como aquilo tinha acontecido. Estava decepcionado comigo mesmo. Cabisbaixo, me surpreendi então ao avistar uma marca que antes tinha passado despercebida em meio àquela bagunça: uma meia pegada cravada na terra úmida. A analisei com cuidado e, seguindo a direção em que o pé apontava, encontrei outras em seguida, feitas às pressas durante a fuga. Algumas estavam quase intactas, mas a maioria tinha sido deixada pela metade. Acompanhando-as, novamente me vi parado em frente ao nada, quando, simplesmente elas deixaram de existir. Como se a partir daquele ponto, Kazuki tivesse evaporado.
Tentando entender o mistério, um estalo ecoou forte na minha mente. Seria possível uma fenda dimensional clandestina bem naquele ponto? Lembro de Natsume ter dito algo sobre isso na reunião que tivemos. Muitos youkais estavam criando passagens para o Ningenkai.
A minha linha de raciocínio, porém, foi interrompida quando meu olhar pousou sobre uma pegada completa e perfeitamente intacta, posicionada bem ao lado do meu pé. Arquejei surpreso com a inevitável comparação de tamanho.
Não restava dúvida que aquela marca não tinha sido feito por uma criança, mas sim por um adulto.
KURAMA POF
KIARA POV
Mais um dia perdido. Sem sinal de Kazuki, tínhamos acabado de voltar de Gandara, após uma longa e exaustiva viagem. Mas mesmo cansada, eu não conseguia relaxar a mente. Estava pilhada demais. Desesperada, na verdade. Nos últimos dias, a angústia estava me matando. Me corroía como ácido. A ideia de reunir aliados tinha sido boa e eu até me animei, achando que, com demônios nos ajudando pelos quatro cantos do Makai, progrediríamos bem mais rápido nas buscas. Pelo visto, me enganei. Até agora, nem Kazuki, nem nossos adversários foram avistados.
Essa falsa sensação de calmaria era frustrante. Por isso, visitar a fortaleza de Mukuro depois das rondas tinha se tornado um hábito. Eu precisava verificar o progresso de Chiharu.
Na maioria das vezes, eu apenas ficava calada a observando flutuar naquele tanque, serena como uma criança alheia a todas as desgraças existentes ao seu redor. Geralmente eu permanecia horas ali, e só quando sentia o peso do cansaço, decidia retornar para torre de Raizen.
Nobu, o pesquisador, muitas vezes tentava me convencer de que permanecer no laboratório seria inútil. Chiharu não iria acordar só porque eu a estava encarando, isso era óbvio. Mesmo assim, eu preferia ficar ali, agarrada ao único fio de esperança que ainda me restava. Já acostumado a ser contrariado, Nobu se dava por vencido, e trabalhava em silêncio na minha presença. Muitas vezes, eu achava até engraçado quando ele gentilmente demonstrava algum tipo preocupação, trazendo algo pra comer com a desculpa de que se serviria também. De certa forma, ele me lembrava o meu pai, bem vagamente. Talvez, por isso eu evitasse ficar bisbilhotando o que estava fazendo. Lá no fundo, olhar pra ele me causava um ligeiro traço de dor.
Justamente por isso, até me senti aliviada por ficar a sós hoje. Nobu foi embora mais cedo, porque tinha um serviço pra fazer em algum outro lugar. Exausta, então me debrucei sobre uma mesa, esperando o tempo passar. Estava quase adormecendo quando um som me despertou. Era o rangido da velha porta do laboratório se abrindo. Me levantei para conferir quem entrava, mas não encontrei ninguém. A porta, de fato estava entreaberta, mas eu continuava sozinha.
Me aproximei sorrateira, espreitando pela fresta. A surpresa veio em seguida. Ao fim do corredor, um par de olhos me observavam à distância, sem a mínima discrição. A mulher me encarava séria e calada, mas ao mesmo tempo, convidativa, como se esperasse por mim. Talvez eu apenas estivesse em negação, mas demorei pra processar o fato de que era humana. Como era possível?
— Quem é você? — controlei o tom de voz, tentando não assustá-la, muito embora, talvez, eu é quem devesse estar assustada.
Ela não me respondeu. Do contrário, se virou, caminhando de costas para mim rumo às escadas.
— Espere! — a seguir, apressando os passos.
Ao olhar para trás e ver que a estava seguindo, a mulher disparou, intensificando seus movimentos. Quando me dei conta, já estava correndo em direção aos andares superiores.
Obrigada a segui-la, também acelerei o ritmo. Os músculos das minhas pernas protestavam a cada degrau subido, queimando de dor, enquanto que os meus pulmões não conseguiam suprir a demanda de oxigênio exigida pelo meu corpo. Apesar de ter certeza que estava perseguindo uma simples humana, as suas condições físicas pareciam infinitamente superiores às minhas. Correndo pelas escadarias acima sem se deixar afetar pelas suas limitações, ela aumentava cada vez mais a distância entre nós. Quando pensei que a perderia de vista, porém, ela parou de subir, seguindo reto por um dos andares da fortaleza.
Completamente perdida e sem saber aonde estava, senti o suor se formar em meu rosto, vencida pela exaustão. Mas não havia tempo de recuperar o fôlego. Antes que a deixasse escapar, saltei por cima do corrimão, saindo das escadas até o saguão principal daquele piso. Ali, o vulto da mulher já desaparecia do outro lado da sala, avançando até uma passagem desconhecida. Meu trato respiratório ardia em chamas com a necessidade de interromper a corrida, mas, mesmo assim, continuei determinada a não deixá-la escapar.
Avancei por mais dois corredores, alternando os caminhos conforme ela me guiava nas bifurcações daquela imensa fortaleza. Ao chegar num espaço repleto de portas idênticas, a vi parada frente a um cômodo específico. Antes de entrar, no entanto, a mulher me encarou uma última vez e, em seguida, desapareceu quando a porta se fechou atrás de si.
Me aproximei devagar, decidida a ir até o fim, porém, ao colocar a mão sobre a maçaneta, hesitei desconfiada. Precisava ser mais racional, ao invés de agir por impulso. Afinal, e se fosse uma armadilha? O que aquela mulher fazia ali? A situação era toda muito estranha. Indecisa, nem sequer notei que um grupo de youkais curiosos se aproximava de mim pelas costas.
— Olhem só o que temos aqui. Uma humana?
Me virei assustada, encarando o demônio que me observava com um interesse fora do comum. Alto e de porte atlético, ele carregava um facão enferrujado que, aparentemente, estava sujo de sangue fresco. Com certeza, tinha acabado de fatiar alguém. Ao seu lado, outros quatro youkais também me lançavam olhares furtivos. Não me lembrava de ter visto nenhum deles na reunião com Mukuro. Provavelmente estavam na base da hierarquia de seu exército.
Aonde diabos fui me meter?
— Quem é essa? — um outro perguntou, gerando uma discussão entre o grupo.
Eu nem sequer prestei atenção no que diziam. Me coloquei em posição de alerta, esperando a melhor chance para tentar uma fuga ou, caso fosse necessário, um ataque. Que azar tê-los encontrado justo agora! Achei que, a essa hora, todo o exército de Mukuro estaria trabalhando nas buscas que haviam programado. Ou será que perdi a noção de tempo? Espiei uma janela fosca na outra extremidade do corredor, confirmando a minha suspeita. Estava um breu lá fora. Com certeza já era tarde. Eu costumava guiar os meus horários pelo cronograma de Nobu. Como hoje fiquei sozinha, esqueci totalmente de verificar o relógio.
— Calem a boca, idiotas! Senão ela nunca vai me responder! — o youkai atlético que usava uma espécie de bandana voltou a dizer, brincando com a empunhadura de sua arma — Então, quem é você?
— Eu que pergunto, quem são vocês? — tentando ganhar tempo pra decidir o que faria em seguida, disparei sem muito pensar no quão imprudente era a minha pergunta.
— Viram isso? Ela acha que lhe devemos satisfação — ele se dirigiu aos companheiros, que riram em resposta. Em seguida, se curvou na minha direção, aproximando os nossos rostos — Nós é que fazemos o interrogatório. Essa é a nossa casa. O que você faz aqui?
— Ei, espera aí, Yamori — um de seus amigos colocou o braço na frente dele, forçando-o a recuar — Acho que essa é a garota da qual Mukuro falou. Aquela que está ajudando. Melhor não mexer com ela.
Quase respirei aliviada.
— Não seja ridículo. Mukuro não disse que não podíamos sequer conversar com a garota. Sem contar que estamos sozinhos agora. Mukuro não está aqui pra dar ordens e essa mulher invadiu o nosso espaço. Esqueceu das regras?
— Não faça isso, Yamori.
— Ou o quê, Akai? Acha que pode me ameaçar caso eu não te obedeça?
— Parem com isso, estão assustando ela! — ao fundo, um menor ordenou, dando fim àquela discussão.
Eles se voltaram a mim e eu engoli em seco. Relanceei mais uma vez o facão nas mãos do que agia como líder, temendo que o usasse a qualquer momento. O gesto, ainda que discreto, não passou despercebido por ninguém.
— Pode ficar tranquila, não vou fazer nada. Ainda.
— Seu nome é Kiara, não é? Ouvimos falar bastante dele nos últimos dias — um outro, que tinha o rosto quase todo coberto por uma máscara, perguntou.
Assenti em silêncio.
— Então decidiu sair do esconderijo daqueles monges esquisitos e se apresentar a nós formalmente? Quanta gentileza a sua. Você está perdida?
— Não — respondi apressada.
— Veio até o andar dos dormitórios porque quis? — o chamado Yamori provocou — Interessante.
— Eu já estava voltando pro laboratório — arrisquei, mudando o assunto — Se puderem sair do meu caminho, eu agradeço.
Exceto pelo que se chamava Akai, eles se reorganizaram, formando uma barreira para eliminar qualquer rota de fuga. Eu estava completamente encurralada.
— O laboratório fica no subsolo. Ainda não entendemos que você está fazendo no vigésimo andar. Eu não queria ser agressivo, mas se não disser a verdade, teremos que arrancá-la de você.
Como assim eu tinha subido correndo até o vigésimo andar? Não era pra menos que agora as minhas pernas tremulavam de fraqueza.
— Eu não tenho obrigação de te dizer nada — retruquei irritada, sem medir as consequências.
— Acho que ainda não percebeu a sorte que teve ao ser pega justamente por nós, não é? Mukuro odeia que pessoas entrem na fortaleza sem convite, e duvido muito que ela tenha te dado passe livre pra andar por aqui. Vai nos dizer a verdade ou prefere que a gente conte pra ela?
Engoli em seco. Ele estava certo, afinal. Eu não tinha permissão pra estar ali.
— Não vou falar nada pra vocês! Se Mukuro quiser uma explicação, eu digo pessoalmente a ela. Você não manda em nada por aqui.
— Já me cansei disso, sua arrogantezinha de merda! Acha que pode vir aqui no nosso território e ditar as regras?
Num movimento violento, ele agarrou o meu braço, com tanta força que quase me ergueu do chão.
— Me solta! — Com a mão livre, tentei afastá-lo, mas, em resposta, ele me segurou ainda mais forte, esmagando a minha pele e músculos.
— Não é uma boa ideia, Yamori. Já disse que ela…
— Não me importa quem ela seja! — ele interrompeu Akai, irritado com a intromissão — Ela se acha muito intocável, não é? Com todos a protegendo. Eu começo a pensar que os youkais que a estão procurando devem ter bons motivos pra isso. E se a entregássemos a eles? Aposto que pagariam uma grana preta, mesmo que estivesse um pouco machucada ou mesmo inconsciente.
Eu já me preparava pra revidar quando uma ordem o obrigou a parar o que estava fazendo, num tom autoritário.
— Solta ela.
Com o demônio bloqueando completamente a minha visão, não fui capaz de enxergar o que estava acontecendo por trás dele. Mas aquilo era desnecessário. Já familiarizada com aquela a voz, soube de imediato que era Hiei quem se aproximava. Yamori afrouxou o toque, permitindo que me desvencilhasse dele sem dificuldade.
Os demais demônios abriram caminho para que Hiei se aproximasse, enquanto que Yamori o encarava raivoso. Hiei, porém, nem sequer o fitava de volta. Seus olhos se fixavam em mim com um ar de reprovação. Ardiam em brasa, furioso, fazendo com que a culpa me atingisse em cheio pela desobediência de subir até aqui.
— O que pensam que estavam fazendo? — ao parar ao meu lado, enfim se direcionou aos outros demônios presentes.
— Nada! — o mascarado respondeu apressado — Ela parecia perdida. Somente estávamos tentando ajudá-la.
Semicerrei os olhos, o amaldiçoando mentalmente. Mentiroso infeliz.
— Não era o que parecia — Hiei rebateu — Me diga você, Yamori. O que acha que estava fazendo?
— Pro inferno o que parecia. Ela invadiu a fortaleza e nem sequer quis nos dar explicações sobre o que fazia aqui. Ao invés de protegê-la, deveria puni-la por isso! Ela não tem permissão pra fazer o que bem entende.
— E você tem? Você não tem sequer permissão pra pensar em fazer o que estava prestes a fazer, imbecil.
— Sei que você se considera muito importante por aqui Hiei, mas eu não sou como esses covardes — ele gesticulou em direção aos companheiros — Não tenho medo de você. Posso fazer com que você deixe de ser o braço direito de Mukuro num piscar de olhos.
Hiei sorriu, irônico e provocante.
— Se esse dia chegar, será pela minha própria vontade, não pela sua capacidade em me superar.
A atmosfera pesou entre os dois, se alastrando por todos os lados. O meu mundo simplesmente parou. Enquanto eles se encaravam numa tensão infinita de ódio e rivalidade, eu esperava que a qualquer segundo tentassem se matar. Aparentemente, os demais youkais ali presentes temiam o mesmo, porque cada um deles já se colocava na defensiva, prevendo o pior. A briga, porém, não veio e, tomando coragem, um dos demônios decidiu se manifestar, tentando desfazer o clima.
— De qualquer forma, Hiei, regras são regras. Invasores são proibidos na fortaleza, independente de quem sejam.
— É verdade. Não estávamos fazendo nada de errado — o mascarado se defendeu — Só estávamos cumprindo as ordens da própria Mukuro. Ninguém de fora pode perambular por aqui sem acompanhamento.
— E quem disse que ela estava sem acompanhamento? Por acaso não está me vendo?
— B-bom, mas é que...
— "Mas" nada. O problema é que vocês são incapazes de raciocinar. Ela estava me esperando. Estamos indo ao laboratório.
— Foi o que eu disse pra eles — disparei, tentando sair por cima.
De soslaio, Hiei me relanceou. Um olhar em fagulhas que, ao mesmo tempo em que me mandava calar a boca, me condenava. Em seguida, me ignorou, se voltando aos demais.
— Sugiro que procurem algo de útil pra fazer, ao invés de se meterem no que não é da conta de vocês.
Eles emudeceram, evitando o confronto direto. Hiei estão começou a andar, me obrigando a segui-lo apressada, antes de olhar uma última vez para trás. Porém, eu não estava preocupada com aqueles youkais que ainda me olhavam ressentidos, mas sim na porta que nem sequer tive coragem de abrir. Na mulher que nem sequer eu sabia quem era.
Seguindo por uma nova rota, chegamos ao que parecia um elevador, cuja existência eu desconhecia. Hiei apertou o botão do subsolo e permaneceu calado. Sabia que ele estava irritado, mas não tive forças pra tentar me explicar. Divagando em meus próprios pensamentos, só reparei que a porta já tinha se aberto no andar correto quando ele me puxou pra sair dali, praticamente me arrastando contra a minha vontade. Protestei de dor, ao perceber que ele me segurava no mesmo lugar em que Yamori tinha me agarrado.
— Será que dá me soltar?! Tá me machucando!
O apelo surtiu efeito. No mesmo instante ele me largou, embora, na realidade, só estivesse se preparando para a discussão que estava por vir. Massageei o braço, reparando enfim no hematoma que tinha ficado ali, resultante da ameaça daquele youkai imbecil.
— Qual parte de "você está proibida de ir pros andares superiores" não ficou suficientemente clara na sua cabeça? — impaciente, Hiei andava de um lado para o outro — Eu disse que você poderia entrar na fortaleza somente pra vir ao laboratório. Você só tinha uma única maldita ordem pra obedecer e nem isso conseguiu fazer direito? Sinceramente, agindo com tanta estupidez, me admira que tenha sobrevivido até hoje.
— Eu sei que fiz besteira, mas não tive outra escolha.
Ele deve ter ficado chocado por eu assumir o erro, porque ficou se calou na mesma hora. Em seguida, inspirou fundo, tentando se acalmar.
— Se sabia que não podia fazer aquilo, então por que fez mesmo assim? Percebe como isso só te faz parecer ainda mais burra?
— Por que não disse que tinha outra mulher vivendo aqui?
A pergunta inesperada o confundiu, fazendo-o mudar a postura.
— O quê disse?
— Eu a vi. Aquela humana.
Ele piscou atordoado, como se fosse incapaz de compreender a minha língua.
— Do que você tá falando? Que humana?
— A que estava aqui, caramba! Eu corri atrás dela. Dessa mulher. Ela apareceu aqui no corredor e, quando tentei falar com ela, ela saiu correndo pelas escadas. Nem pensei duas vezes antes de ir atrás. Ela parou naquele andar e aqueles caras me encontraram. Bom...o resto você já sabe. Quem é ela?
— Não tenho a mínima ideia do que você está falando. Mukuro é a única mulher que vive aqui.
— Mas então, quem era ela?
— Disse que era uma humana? Não me faça rir. É a coisa mais ridícula que já ouvi — o seu tom era de desdém, desacreditado — Uma humana jamais conseguiria driblar a nossa segurança e entrar aqui sem ajuda. Se está inventando isso pra se livrar da sua culpa, precisa aprender a criar histórias mais convincentes. Uma que ao menos faça sentido. Ou por acaso acha que sou idiota?
— Está agindo como se fosse! Eu tô falando sério! Ela estava aqui e eu tenho certeza que era humana. E estava sozinha. Você deve ter sentido a presença, não?
Ele negou, meio atordoado ao perceber que aquilo não era uma piada de mal gosto.
— A única presença humana aqui é a sua.
— Vai ver ela soube se camuflar muito bem — sugeri.
— Tem certeza do que está me dizendo? — ele perguntou, dessa vez com uma expressão séria.
— Mas é obvio que sim! O que vamos fazer?
— Como ela era?
— Ah, não sei….Nem consegui chegar perto. Era jovem, bonita, acho que tinha olhos castanhos e...sei lá! Não reparei nos detalhes. Mas talvez um daqueles youkais que estavam me importunando tenha visto. Ela entrou num dos quartos.
Ele fez torceu os lábios, ainda mais confuso.
— Qual quarto?
— E eu é que sei?! Todas as portas eram iguais e nenhuma delas tinha número. Era uma das que estavam perto de mim quando me encontrou.
Ele suspirou, revirando os olhos cansado de fazer perguntas infrutíferas.
— Quero que volte pra torre de Raizen.
— O que vai fazer?
— Encontrá-la.
