KIARA POV

Minha visão estava turva quando abri os olhos. Pisquei algumas vezes consecutivas, tentando me recompor. Estava deitada na cama do quarto, sob a luz fraca do abajur que o iluminava. Num impulso, tentei me levantar, mas, ao ser repreendida, me dei conta de que não estava sozinha.

— Ei, ei! Vai com calma — Yusuke tentou me impedir. A mão pousada em meu ombro interrompia os meus movimentos — Tudo o que não precisamos é que você desmaie de novo.

O obedeci, sentindo a cabeça latejar de dor. Me ergui então o mais devagar possível. Minha voz soou rouca ao tentar falar.

— O que aconteceu?

— Não se lembra? Você desmaiou ontem, quando Kuwabara foi te encontrar. O coitado ficou preocupadíssimo e saiu correndo desesperado atrás de mim. Mas parece que não foi nada grave, pelo menos foi o que Hokushin disse depois de te examinar. Nada além de falta de descanso e má alimentação. Um descuido extremamente idiota. Ele te medicou.

O olhar de Yusuke recaiu sobre um hematoma em meu braço, onde a agulha havia perfurado a pele, deixando todo o entorno arroxeado. Em seguida, ele me ofereceu um copo d'água, me permitindo aliviar a secura que praticamente arranhava a minha garganta.

Evitei encará-lo diretamente, adiando ao máximo as perguntas óbvias que viriam em seguida. No entanto, o silêncio durou menos do que eu gostaria.

— Pra chegar ao ponto de desmaiar, a coisa tá mesmo feia.

— Eu só estou cansada.

— Cansada? Exausta, isso sim! Olha pra você, caindo dura como um asmático depois de correr uma maratona.

O comentário me desestruturou. Quase engasguei com a água ao me lembrar de como persegui a humana na fortaleza de Mukuro. Correr vinte andares escadaria acima foi uma péssima ideia pra alguém completamente fora de forma, mas, naquela hora, eu nem pensei nas consequências. E como se não bastasse todo o cansaço físico acumulado por dias, também teve o estresse com os subordinados de Mukuro. Era tanta coisa acontecendo, tanta informação para processar, que simplesmente eu não estava mais dando conta.

— Você devia ter nos dito que não estava se sentindo bem. Não é bom ficar guardando tudo pra si mesma. Vai acabar explodindo, sabia? — ele voltou a dizer, tentando arrancar de mim alguma reação.

Permaneci calada, sem saber exatamente o que ele esperava ouvir. Descontente, Yusuke torceu os lábios, visivelmente irritado com a minha ausência de espírito.

— Que saco! Fala alguma coisa, Kiara!

Forçando a conversa a qualquer custo, senti que ele estava desconfiado. Será que já sabia de tudo? Será que Hiei tinha contado o que aconteceu? Hesitei um pouco, tentando despistá-lo em seguida com uma meia verdade.

— O que quer que eu diga? Eu não percebi que estava tão mal. Não até desmaiar. Mas eu não estou cuidando direito de mim mesma e isso não é nenhuma surpresa, ou é? Toda essa situação me deixa louca. Eu achei que com a ajuda que conseguimos as coisas seriam diferentes. Achei que a essa altura do campeonato já teríamos notícias do Kazuki, mas me enganei. Vir pra cá não serviu de nada. Eu só queria poder acabar com esse pesadelo de uma vez por todas!

Ele se afastou. Pensativo, parecia escolher cuidadosamente as melhores palavras antes de prosseguir.

— Sei que não está sendo fácil...

— Não, nem um pouco! É tudo muito frustrante.

— Eu sei, mas nós vamos conseguir achar o seu irmão. É só questão de tempo.

— Já cansei de ouvir isso, é o que todo mundo diz. E quer saber? Tá ficando cada vez mais difícil de acreditar.

— Então você quer desistir?

— Não! Esquece o que eu falei...eu não tô conseguindo pensar direito...

Yusuke suspirou.

— Acho que você tem feito muitas rondas ultimamente — dessa vez, eu que o encarei desconfiada. Até mesmo um pouco irritada por estar ouvindo aquilo mais uma vez. Não podia ser coincidência — Você não precisa fazer isso todos os dias. Se quer saber, você nem devia fazer parte de tudo isso. Essa situação está te matando.

— Por acaso o Hiei te disse algo?

Ele pareceu confuso, sem entender a relação de uma coisa com a outra.

— Não. Por quê? Ele deveria ter dito?

Ao notar que realmente não sabia de nada, neguei rapidamente. Yusuke obviamente não acreditou em mim, mas também não insistiu no assunto. Pelo visto, o meu segredo ainda estava seguro, embora a sua sugestão mostrasse que eu estava certa. Se contasse sobre a humana que tinha encontrado, ele me trataria como uma maluca tendo alucinações devido ao cansaço excessivo. Todos eles fariam isso. Inclusive, Hiei devia estar satisfeito, já que o meu desmaio só serviu para confirmar as suas suspeitas.

É melhor que mais ninguém saiba da verdade mesmo.

— Olha, Kiara, vou direto ao ponto. Você precisa descansar — Yusuke se aproximou, semicerrando os olhos num semblante intimidador. Bem diferente do que eu estava acostumada a ver — Eu não gosto de me meter na decisão dos outros, mas nesse caso você não me deixa outra escolha. Querendo ou não, de agora em diante vou desacelerar o seu ritmo, nem que eu tenha que te amarrar nessa cama e te obrigar a ficar quieta. Nem que eu mesmo tenha que enfiar a comida na sua goela pra você comer! E nem adianta reclamar, porque eu não tenho problema algum em usar a força, caso seja necessário. Se for preciso, pelo seu próprio bem, eu te faço ficar desmaiada por dias e dias seguidos. Entendeu?

Engoli em seco. Sabia que ele não estava blefando.

— Não precisa fazer isso. Acho que você tem razão.

Yusuke então mudou a postura, arqueando as sobrancelhas em surpresa.

— Qual o problema? — perguntei.

— Tá de brincadeira comigo?

— É claro que não.

— Quem te entende, garota?! Depois de tudo que fez de tudo pra conseguir nos acompanhar todos os dias, você simplesmente vai aceitar numa boa o que eu disse? Se eu soubesse que seria tão fácil te convencer, nem teria me dado ao trabalho de buscar reforço.

— Que reforço?

Ele não precisou responder, pois uma voz distante no corredor me fez compreender do que estava falando.

— Yukina está aqui? — perguntei. Sua fala parecia se misturar a de Kuwabara, não muito longe dali.

— Achei que ela me ajudaria a te convencer, só não entendo o porquê dessa sua mudança brusca de ideia. Não pensei que fosse concordar comigo.

— Achou que eu fosse fazer o quê? Espernear e dar na sua cara? Não sou burra. Sei que você tem poder suficiente pra cumprir a ameaça que acabou de me fazer. E eu não ganho nada te enfrentando. Além disso, verdade é que eu nem me reconheço mais, me sinto fraca e vulnerável. Me vendo assim deve ser difícil de acreditar, mas nunca fui desse jeito. Não gosto de ficar caindo por aí feito uma idiota, é lastimável. Finalmente cheguei ao meu limite.

— Não te acho fraca. Se quer saber, acho que é nos momentos difíceis que ficamos mais fortes. No seu lugar, eu já teria perdido o juízo há muito tempo.

— Não é a esse tipo de fraqueza que me refiro. É a minha condição física que está deteriorada. Não vou conseguir fazer nada nesse estado.

Ele me analisou em silêncio, assentindo em seguida.

— Não precisa ser tão dura consigo mesma. É verdade que você tá meio desnutrida, mas isso não é o fim do mundo. Come que passa — ele deu de ombros — E se fraqueza é o problema, pode tentar se fortalecer um pouco. Tem uma área de treino por aqui. Eu costumava usar quando Raizen ainda estava vivo. Quer dizer, ele já tava com o pé na cova, mas isso não importa. Você veio de uma linhagem de lutadores, então imagino que sinta falta de treinar. O que acha?

— Não é má ideia. Na verdade, preciso mesmo reverter essa situação. Se meu avô estivesse vivo, ele surtaria ao me ver desse jeito. Com ele, eu treinava horas e horas seguidas, se não o dia inteiro. Ele era muito exigente. Às vezes, eu achava que não ia aguentar.

— Sei como é. Com a Genkai não era diferente. Tinha dia que ela só faltava me matar. Qual o problema desses velhos, afinal? — ele se levantou e caminhou em direção a porta, voltando ao assunto na sequência — Então, se entendi bem, de agora em diante você não mais sair correndo todos os dias atrás do seu irmão feito uma maluca desesperada, certo?

Suspirei resignada.

— Certo.

— Tem certeza que não vou precisar te prender aqui nesse quarto?

Revirei os olhos antes de responder.

— Deixa de ser idiota! Eu já falei que não vai ser preciso.

— Acho bom mesmo. E fico feliz que essa conversa tenha terminado de um jeito bem mais amigável do que eu achei que terminaria — ele então abriu a porta, se virando em minha direção antes de sair — Yukina ficou de te trazer comida, mas pelo visto o Kuwabara alugou a companhia dela. Eu vou resolver isso.

— Esses últimos dias tem sido bem intensos. Foi legal da sua parte trazer a Yukina pra me distrair. Parece até que adivinhou que eu estava sentindo falta da companhia dela.

Ele sorriu, ignorando completamente o tom de agradecimento contido em minha voz.

— Na verdade, eu não tive escolha. Se não a trouxesse, ia sobrar pra mim cuidar de você.

KIARA POF

Dias depois, nas redondezas de Gandara

YUSUKE POV

— O que você tem aí?

O demônio encurralado não me respondeu. Encolhido em um canto da caverna, jogou em minha direção a mochila que carregava nas costas, disposto a fazer qualquer coisa pra sobreviver. Verifiquei o conteúdo rapidamente, só pela força do hábito. No fundo, eu já sabia do que se tratava. As pedras preciosas reluziam brilhantes, mas aquilo não me importava. As devolvi ao youkai, deixando-o totalmente confuso.

— N-não vai ficar com elas?

— Não. Isso não me interessa nem um pouco. Se são roubadas ou não, pode ficar. Tô nem aí pra isso.

— O que quer, então? Por que me perseguiu até aqui?

— De você, não quero nada. Sei que não passa de um morto de fome. Mas me diz uma coisa, por acaso você não conhece essa menina, né? — estendi a foto de Chiharu desacordada que carregava comigo pra todos os lados. Atordoado, ele a examinou, negando em seguida — Ela tem uns amigos bem encrenqueiros. Tô procurando por eles. Tá sabendo de algo?

— N-não. Não sei quem é ela, nem de quem você tá falando.

— Tem certeza? — quando o encarei mais de perto, invocando a expressão mais medonha que conseguia fazer, o suor escorreu pelo seu rosto apavorado — Não tá mentindo pra mim não, né? Porque se mentir, eu faço picadinho de você.

— Não! Eu juro!

Me afastei então, convencido de que aquele pobre coitado realmente não sabia de nada. Saí dali, cruzando com um dos youkais de Gandara pelo caminho. Suas mãos estrangulavam o pescoço de outro fugitivo, exaurindo todo o seu ar.

— Não precisa disso. Eles não sabem de nada — intervi ao me aproximar.

O imbecil me ignorou completamente. Irritado, o agarrei pelas costas, obrigando-o a soltar o demônio-cobra que, quase inconsciente, caiu ao chão.

— Não se meta! Acha que me importo com isso? Não passam de ladrões do mais baixo nível! Por que eu deveria ter clemência com esse tipo?

O youkai inferior aproveitou a distração, tentando escapar ao deslizar a sua pele gelatinosa pelo chão de pedra. Porém, o oficial de Gandara foi mais ágil. Antes que eu tivesse a chance de impedi-lo, a sola de seu pé afundou o crânio daquele débil demônio. O osso, agora espatifado em mil fragmentos no chão, misturava-se aos restos de seu encéfalo igualmente esmagado, formando uma massa irreconhecível do que havia sido a cabeça daquele youkai.

A raiva ferveu o meu sangue e apertei os punhos com força. Lidar com o pessoal de Yomi estava cada vez mais complicado. Não passavam de uns trogloditas sem caráter e arrogantes com mania de superioridade. Um bando de canalhas.

Não pensei duas vezes antes de agarrá-lo pela gola do casaco que usava. Quando dei por mim, já o tinha prensado na parede da caverna, enforcando-o da mesma forma que ele havia feito com aquele outro youkai. Fazendo-o provar do seu próprio veneno.

Ele tentou contra-atacar, mas o seu punho nem sequer chegou a me atingir. Ainda segurando-o pela roupa, a cabeçada o pegou desprevenido. Gemendo de dor, ele apertou os olhos com força, evitando o sangue que agora escorria de sua testa para o restante do rosto. O soltei então, finalizando o embate com um soco em seu maxilar, potencializado com a minha própria energia demoníaca.

Nocauteado, ele caiu no chão, embora apenas inconsciente. Pensei em golpeá-lo novamente, mas me detive ao perceber que estava sendo observado.

— Caramba, Yusuke! O que você está fazendo? — por trás de mim, Rinku encarava horrorizado o cadáver do youkai que havia sido assassinado há pouco pelo imbecil desmaiado aos meus pés. Ao seu lado, Touya parecia preocupado.

— O que já deveria ter feito há muito tempo com esse imprestável. Ele vive querendo me tirar do sério de propósito. Agora conseguiu!

— Já deu pra ver que os guerreiros de Gandara possuem um comportamento inaceitável, mas você não deveria ficar arranjando briga com eles, Yusuke — Touya se aproximou com cautela, sussurrando em seguida — Isso pode acabar com a aliança que conseguiu, além de prejudicar toda a nossa operação.

— E você acha que não sei disso? Mas me recuso a ficar quieto quando a minha vontade é surrar cada um desses idiotas!

— Só acho melhor tomar cuidado com quem você anda enfrentando por aí. Nem todos vão deixar por isso mesmo.

— Ele tem razão, Yusuke — junto a Shishiwakamaru e Suzuki, Kurama veio de encontro a nós — Mas não te culpo por fazer o que fez. Eu mesmo também já não aguento mais a forma como os subordinados de Yomi agem. Onde está o Kuwabara? — ele me perguntou por fim, varrendo os olhos pela caverna para procurá-lo.

— Foi embora há um tempo. Voltou pro território do Raizen.

— Algum problema com ele?

— Não. Aquele tonto só queria tirar um tempo pra ficar com a Yukina. Mas é melhor assim, senão daqui a pouco ele vai acabar igual a Kiara. Às vezes esqueço de como humanos são menos resistentes do que youkais. Ele se faz de forte, mas é melhor que também descanse um pouco. E vocês? Por que estão todos aqui?

Kurama desviou o olhar. Parecia incomodado.

— Temos um problema.

Não precisei perguntar do que se tratava. Por trás dele, Souketsu e Saizou apareceram. As roupas sujas de sangue e terra, como se tivessem acabado de sair de uma batalha. Ferimentos superficiais delineavam a pele de ambos.

— Houve um ataque naquele lugar onde a criança foi encontrada. Estávamos por lá quando tudo tudo começou — Saizou se adiantou na explicação.

— O quê?! Mas como? — Rinku não escondia o espanto, enquanto que eu me forçava para manter a calma.

— Vocês estão bem? — Touya perguntou — Quantos eram?

— Impossível dizer. Era a maior horda de demônios que já vi na vida. Saímos de lá às pressas só para avisá-los. Yomi vai organizar o exército pra proteger o próprio Reino. Ele está temendo que Gandara seja o próximo alvo — Souketsu respondeu.

— Que covardia! Ele vai ficar aqui esperando, enquanto Enki e Mukuro são atacados? Se são tantos inimigos assim, temos que ir ajudar! — me apressei em concluir.

— Não. Mukuro, Enki e os outros terão que dar conta. Como disse, Saizou e eu só viemos aqui pra avisá-los. Vamos voltar pro Reino de Raizen agora — Souketsu retrucou.

— Por quê? Isso não faz sentido.

— Como não? Você não pensa, garoto?

Franzi o cenho, ainda confuso.

— Yusuke, como foi que os acharam naquele lugar? Eles não sabem que Hiei encontrou Chiharu, nem tampouco que estamos de olho naquele abismo desde então — Kurama disse, tentando ser o mais claro possível — Ou pelo menos não deveriam saber.

— Mas como poderiam ter descoberto isso? — Suzuki perguntou, se recusando a admitir a resposta que estava mais do que óbvia para todos nós.

— Não importa. O fato é que se conseguiram descobrir isso, também podem ter descoberto onde Kiara está — Kurama deduziu, indo direto ao ponto.

Permaneci em silêncio apenas processando o que ele dizia. Quando a minha ficha caiu, me dei conta do que aquilo significava.

— Que merda! Tem pouca gente com ela hoje. Se por acaso também souberem disso…

Nem sequer concluí o pensamento, deixando as palavras se perderem no ar. Era óbvio que tínhamos um problema, mas reafirmá-lo em voz alta não ajudaria em nada.

— Finalmente botou a cabeça pra funcionar! — Souketsu ironizou, tentando me provocar — Mukuro ordenou que alguns dos membros de seu exército retornassem e Enki pediu que fizéssemos o mesmo.

Numa rápida troca de olhares com Kurama, deixei clara as minhas intenções. Os outros também compreenderam a situação, assentindo em concordância.

— Vamos com vocês.

Seguimos então para fora da caverna, passando reto pelos inúmeros guerreiros de Gandara que se aglomeravam naquele lugar. Cumprindo as ordens de Yomi, eles se organizavam como uma muralha ao redor de fronteira que separava aquele Reino do restante do Mundo dos Demônios. Os xinguei mentalmente, imaginando o quão ridículo era ficar esperando por uma batalha que nem sequer tinham certeza de que aconteceria. No entanto, antes que tivéssemos a chance de nos afastar dali, um som ensurdecedor vindo do céu nos fez interromper o percurso.

Rápido e inesperado, um clarão ofuscou a minha visão. Ao meu redor, tudo estava branco. Um fenômeno tão luminoso e intenso que a simples tentativa de manter os olhos abertos me provocava uma forte vertigem. Quando tudo se normalizou, porém, a escuridão invadiu o Makai, como se tivesse anoitecido antes do tempo. Antes mesmo que voltasse a enxergar, senti a enorme onda de energia demoníaca que caía sobre nós, pesando toneladas. Originada não apenas de um youkai, mas sim vários. Teleportados num piscar de olhos, eles vinham de todas as direções num ataque inesperado e brutal.

Estávamos completamente cercados, sem possibilidade de escapatória.

Quando me dei conta do que tinha acontecido, o exército de Yomi já se misturava aos adversários recém-chegados, num embate pela própria sobrevivência. Souketsu e Kurama também já não estavam mais ao meu lado, assim como Rinku, Touya e os outros que nos acompanhavam. Pego de surpresa, não tive outra alternativa a não ser rebater as investidas dos demônios que agora me atacavam. Ainda assim, eu estava aturdido. Precisava ir embora dali, mas como faria isso? Ao meu redor, tudo era desordem e confusão. Um amontoado de demônios que digladiavam entre si até a morte.

O ódio me subiu a cabeça ao pensar em como fomos perfeitamente estúpidos e descuidados. Por que nem sequer imaginei que isso podia acontecer? Lembrei então de Kuwabara usando Yukina como uma desculpa esfarrapada para voltar para a torre de Raizen.

Aquele idiota, por que não me falou a verdade?

YUSUKE POF

xxxx

Kiara deixou área de treino exausta. Há alguns dias tentava manter uma rotina de exercícios similar ao que estava acostumada a fazer no já extinto Clã Komorebi, com o intuito de se fortalecer e adquirir um pouco mais de resistência. Todos aqueles meses parada a tinham deixado completamente incapaz de enfrentar os eventuais conflitos que surgissem pelo caminho. O desmaio tinha sido a gota d'água.

No começo foi difícil se acostumar com a fadiga, mas o treinamento duro e intenso já mostrava resultados. O seu corpo já estava bem mais forte, e os músculos deteriorados já tomavam forma novamente, bem mais rígidos que antes. Aliado a isso, é claro, havia uma considerável melhora na dieta que durante tanto tempo fora completamente colocada em segundo plano. A aparência de Kiara, agora evidentemente mais saudável, deixava Yukina satisfeita.

A princípio, Kiara não gostou da insistência da koorime em monitorá-la constantemente, mas, por fim, acabou cedendo à pressão. Assim, as duas passavam boa parte do tempo juntas, fato que auxiliava em sua recuperação física e mental. A apreensão pela sobrevivência de Kazuki continuava presente, mas aos poucos Kiara aprendia a lidar com a sua própria ansiedade. Até porque, se descuidasse de si própria novamente, as consequências seriam muito piores. Ela precisava estar forte, se realmente quisesse salvar Kazuki. Para isso, decidiu confiar em Yusuke e nos outros. Confiar que, se fosse necessário, se sacrificariam por ele como ela mesma o faria.

Naquele dia, após a rotina de treinos que havia estabelecido, Kiara deixou Yukina na torre de Raizen e seguiu até a fortaleza de Mukuro. Verificar o progresso de Chiharu era a única tarefa que ela não havia abdicado de fazer. Os resultados eram lentos, mas Nobu havia garantido que a menina voltaria à vida em breve. Aparentemente ela já havia até movido a mão direita, deixando o pesquisador de Mukuro eufórico com andamento do processo.

Sozinha no laboratório, Kiara encarava o tanque um tanto desconexa da realidade. Nobu já a havia alertado que não estaria presente, pois aparentemente tinha algum compromisso pessoal para resolver. Ela lamentou a ausência do youkai, remoendo a lembrança da última vez que ele a havia deixado ali sem supervisão. O dia que culminou num encontro com uma misteriosa humana, seguido de um conflito com os subordinados ignorantes de Mukuro. Isso, é claro, sem contar o patético desmaio para finalizar com chave de ouro aquele desastroso momento.

Kiara olhou para a porta do laboratório, sentindo um arrepio percorrer a sua espinha. Não tinha ninguém ali, mas, mesmo assim, ela frequentemente sentia-se vigiada, como se nunca estivesse totalmente sozinha. A komorebi estava certa de que a mulher humana realmente existia, mas não a tinha visto desde aquele dia. Ela havia desaparecido e obviamente não seria tão imprudente de voltar. Ou seria?

"Teria que ser muito burra pra correr esse risco", Kiara pensou, irritada consigo mesma por continuar se martirizando com aquela história. Tentou concentrar a sua atenção na menina inerte dentro daquele tanque enorme, porém, o seu coração saltou num solavanco quando, de repente, a velha porta do laboratório rangeu. Sobressaltada, ela se afastou da entrada, com o pulso martelando forte em seus próprios ouvidos. No entanto, a figura que apareceu diante de si era bem diferente da que ela esperava. Ao invés da humana misteriosa, um desastrado Kuwabara caminhava em sua direção, esbarrando sem querer nos obstáculos que surgiam em seu caminho.

— Mas que porcaria de lugar! Quem deixou esse emaranhado de fios no chão?

Kiara nem sequer respondeu. Atônita, havia prendido a respiração involuntariamente. Só então Kazuma percebeu a feição fantasmagórica em seu rosto.

— O que aconteceu?

— Nada... — ela voltou a respirar — Você só me assustou. Achei que fosse outra pessoa.

— Tipo quem?

— Não sei. Qualquer um, menos você! Aliás, o que está fazendo aqui? Por que voltaram tão cedo?

— Na verdade, voltei sozinho.

— Por quê? Aconteceu alguma coisa? — ela se adiantou, exacerbada — Notícias do Kazuki?

— Não, fica calma — o rosto de Kiara se transformou em decepção — Só achei melhor voltar antes.

— Melhor por quê?

— Você e Yukina estavam sozinhas, então preferi voltar.

— Não estávamos sozinhas. Hokushin e alguns outros daqueles monges estão aqui. Tem também uns subordinados da Mukuro, porque ela nunca deixa a fortaleza totalmente abandonada.

— E daí? Por acaso você conhece esses caras?

— Não.

— Nem eu! Então, não dá pra confiar neles.

— Mesmo assim, não é como se estivéssemos sem proteção. Além disso, já ficamos vários dias aqui sem você.

— Eu sei, mas...

Kazuma forçou uma pausa um tanto dramática, pensando no que diria a seguir.

— Mas o quê, Kuwabara? Desembucha logo!

— Ok, você me pegou. Na verdade, eu só quis voltar pra ficar com a Yukina — ele estampou o rosto com um sorriso artificial.

— Eu até acreditaria nisso, se não estivesse aqui agora — Kuwabara a encarou, fingindo não entender — Yukina está na torre ao lado, então o que você está fazendo aqui comigo?

— Mas eu estava com ela até agora — ele rapidamente se defendeu, quase atropelando as suas próprias palavras — Só quis verificar se estava tudo bem com você!

Kiara cruzou os braços, sem acreditar no que ouvia. Kuwabara era um péssimo mentiroso

— Me diz logo a verdade. Achei que éramos amigos.

— Vai fazer chantagem emocional? Isso nem combina com você.

— Tem razão. Sabe o que combina comigo? Ameaça. Tive que fazer várias desde que me tornei uma fugitiva, você não tem nem ideia. Se não me contar logo a verdade, eu digo pra Yukina o seu segredo — ele arregalou os olhos, preocupado — Sobre o que você sente por ela.

— Você não seria capaz.

— Mas é claro que seria. Quer ver?

Kuwabara suou frio, se dando por vencido em seguida. Yukina não podia saber a verdade. Ele não estava preparado pra isso. Não ainda.

— Que jogo sujo! Eu só quis voltar porque senti que alguma coisa ruim podia acontecer. Satisfeita?

— Como assim? Por acaso você consegue prever o futuro ou algo do tipo?

— Óbvio que não! Mas eu consigo sentir certas coisas. É algo mais intuitivo ou sei lá. Sinto que alguma coisa vai dar errado antes que realmente dê. Hoje a minha consciência me mandou voltar pra cá e verificar se vocês duas estavam bem. Não sou tão idiota a ponto de ignorar algo assim.

O silêncio perdurou no laboratório por alguns instantes, deixando que ambos ficassem absortos em seus próprios pensamentos.

— Eu não sabia que você tinha esse poder, se é que podemos chamar assim — Kiara enfim falou, tentando não demonstrar o quão perturbada realmente estava. A humana desconhecida não saía de sua mente — Contou pros outros o que estava sentindo?

— Não, eu não quis preocupar ninguém à toa. Yusuke acreditou quando eu disse que queria ficar com Yukina.

— Deve ser porque não era totalmente mentira. Mas como você pode ver, estamos bem.

Kuwabara sondou o laboratório, certo de que realmente não tinha absolutamente nada de errado naquele lugar, exceto, é claro, pela criança morta-viva que permanecia desacordada dentro daquela enorme máquina de recuperação celular.

— Acho que me enganei dessa vez — ele suspirou aliviado, quase esboçando um sorriso.

Porém, antes que pudesse sugerir viver no Makai tinha afetado completamente a sua percepção espiritual, ouviu um forte estrondo reverberar dentro da fortaleza. Quando as paredes do laboratório estremeceram, chocado, ele se voltou para Kiara, cujo rosto havia perdido totalmente a cor. Os dois ouviram gritos distantes, assim como passos pesados e apressados pelos corredores acima do piso em que estavam. Outra explosão ensurdecedora os forçou a taparem os ouvidos, muito mais forte do que a anterior.

Somente quando Kuwabara viu Kiara preparar o punhal que trazia consigo, se deu conta do erro que tinha cometido por não contar a verdade para Yusuke.

Terrivelmente arrependido, ele sabia que pagaria um preço alto por ter tomado a decisão errada.