KIARA POV
O corredor ainda estava vazio quando saímos do laboratório, mas a julgar pelo barulho acima de nós, a fortaleza de Mukuro estava infestada. Era um ataque, bem no momento em que estávamos mais vulneráveis, quando quase todos os nossos aliados estavam bem longe dali. Coincidência? Impossível. Eles escolheram a melhor hora pra nos atacar. Mas o que queriam, afinal? Quem era o alvo principal? Chiharu ou eu? E como sabiam que encontrariam qualquer uma de nós aqui?
Olhei para Kuwabara por uma fração de segundos. Ele estava em pânico. Paralisado em total estado de choque.
— Yukina...— ele balbuciou então, saindo do transe — Yukina está sozinha na Torre de Raizen. Precisamos fazer alguma coisa!
— Temos que dar um jeito de sair daqui sem sermos vistos.
Ele nem sequer me ouviu. Desesperado, já corria em disparada até as escadas, sem se importar com as consequências de seus atos. O agarrei pelas costas, forçando-o a olhar para mim.
— Qual o seu problema? Você não ouviu o que eu disse?! Yukina está sozinha!
— Não pode sair correndo assim, seu idiota! Você não sabe o que vai encontrar lá em cima.
— Foda-se! Eu preciso achar a Yukina!
O som dos passos descendo as escadas nos pegou de surpresa. Kuwabara me encarou com os olhos ainda mais arregalados. Com o indicador na boca, gesticulei para que não fizesse barulho. Ele assentiu e nos dispersamos, cada um para um lado diferente. Me coloquei por detrás de uma pilastra, larga o suficiente para me esconder totalmente. Tudo era silêncio quando o youkai chegou ao subsolo, aparentemente sozinho. Ao perceber que ele seguia para o lado oposto em que eu estava, arrisquei espiá-lo. De costas, não parecia grande coisa, além de nem sequer perceber como estava se deixando exposto.
— Sinto cheiro de humano...— ele se aproximou ainda mais do esconderijo de Kuwabara —...pelo visto já encontrei o que estava procurando.
Com cautela, me aproximei por trás dele, aproveitando o fato de estar completamente alheio à minha existência. No instante em que Kazuma se revelou com a espada de reiki nas mãos, segurei o youkai pelo pescoço, enterrando o punhal que Hokushin tinha me dado em sua garganta. A lâmina o perfurou de uma extremidade à outra, interrompendo na mesma hora o fluxo de oxigênio em seu corpo. Ele ainda tentou reagir, mas foi inútil. Caiu ao chão em questão de segundos. O sangue extravasava pela ferida, enquanto os olhos sem vida permaneciam bem abertos, imortalizados em sua feição.
— Que horror! Precisava mesmo ter feito isso? Eu podia ter dado de um jeito bem menos sanguinário — Kuwabara disse então, um tanto enojado, enquanto olhava de perto a carne cortada do pescoço daquele demônio.
— Com criaturas como essa você não deve gastar a sua energia espiritual, mas sim usar técnicas comuns de combate. Já disse que não sabe o que vai encontrar lá em cima, então se poupe. Apesar do aspecto monstruoso, muitos deles são fáceis de matar. É só atingir o ponto certo.
— Ainda acho que não precisa sair cortando a cabeça deles fora — dei de ombros, ignorando-o — Você ouviu o que ele disse? Estão procurando um humano. Só pode ser você, mas como sabiam que te achariam aqui?
— Prefiro não pensar nisso agora. Vamos subir, mas com muito cuidado. Temos que encontrar a Yukina o quanto antes.
Ele concordou sem nem pensar duas vezes. Assim, em silêncio, avançamos até andar superior, com o máximo de cautela possível. No entanto, mal havíamos saído do último degrau quando, de repente, todas as luzes se apagaram, nos fazendo submergir num completo breu.
— Que merda! Mais essa agora? — Kuwabara esbravejou irritado — Não dá pra ver nada!
— Não importa, a gente dá um jeito.
Ao perceber que ele estava completamente desorientado, o segurei pelo braço e dei continuidade à caminhada, o arrastando comigo pra onde quer que eu fosse.
— Como é que sabe pra onde estamos indo? Não vai me dizer que consegue enxergar nessa escuridão?!
— Óbvio que não. Eu vim aqui tantas vezes que consigo me guiar pela minha memória.
— Você consegue saber exatamente aonde tá pisando só pela sua memória? Decorou cada centímetro desse lugar gigante? Isso é impossível!
— Mas o que isso importa, afinal?
Soltei Kuwabara por um segundo, o suficiente para que ele, completamente às cegas, sem querer esbarrasse em alguma coisa. Um tilintar estridente ecoou no lugar quando algum objeto metálico se chocou com o chão. Atraído pelo som, um demônio quadrúpede rapidamente nos encontrou, trotando em nossa direção como um animal selvagem e esfomeado.
— Cuidado! — tentei alertar Kazuma, mas foi inútil.
Um baque surdo atrás de mim deixava claro que Kazuma tinha caído como um tonto após tropeçar no entulho derrubado.
— Que merda! — ele gritou, ainda no chão. Vulnerável ao ataque.
Ao ver o par de olhos escarlates brilhando na escuridão, aproximando-se cada vez mais de sua presa, intervi sem muito pensar. Assim como fiz com o outro demônio, ergui o punhal, agarrando o monstro por trás. Dessa vez, finquei a lâmina no abdômen da criatura peluda, arrastando-o por toda extensão do tronco. Quando Kuwabara conjurou a espada, iluminando o seu entorno, o youkai já estava caído bem na sua frente.
Suas vísceras banhadas de sangue e gordura escapavam para fora da carcaça pelo corte enorme aberto em seu corpo. Kazuma fez uma careta.
— Que nojo! Eu pergunto de novo: precisava mesmo ter feito isso?
— Você preferiria ter virado a refeição? Para de falar besteira e vê se se concentra em não sair derrubando tudo que encontrar pela frente!
— E que culpa eu tenho? Já disse que não tô enxergando nada! Nem vi essa coisa vindo na minha direção! Não sei nem o que tinha no meu caminho! — ele observou o objeto derrubado aos seus pés, tentando descobrir do que se tratava — Você estava na frente, deveria ter esbarrado nessa coisa antes de mim. Como conseguiu desviar? E por que não me disse pra fazer o mesmo?! É loucura...mesmo que conheça o caminho, não tem como sair andando por aí com toda essa confiança. Não sei que tipo de visão você tem, mas isso não é normal!
O seu rosto, mal-iluminado pela luz dourada da sua arma, parecia ainda mais irritado do que antes. Kuwabara estava enganado ao pensar que minha visão era extraordinária. Naquele ambiente escuro, eu enxergava tanto quanto ele. Suas palavras, é claro, não tinham intenção alguma de me ofender. Eu estava ciente que o apagão realmente não me afetou como deveria e, ainda que não pudesse enxergar, era como se pudesse. Como se, mais do que nunca, tudo estivesse perfeitamente nítido em minha mente. Eu sabia que aquilo não fazia sentido algum. Sabia que não era mesmo uma habilidade normal, mas não estava disposta a discutir o assunto.
Suspirei fundo então, tentando manter a calma.
— Eu costumava treinar muito à noite, tenho um bom senso de direção. Já você, é grande demais pra conseguir desviar de qualquer obstáculo que apareça no caminho. Vamos nos concentrar no que interessa. Estamos perto da saída, ok? É só você me seguir devagar que vai dar tudo certo. Só desliga essa coisa e vamos sair logo daqui — desviei então o olhar para a espada dimensional — Você tá chamando muita atenção com todo esse brilho.
Ele parecia inclinado a obedecer, mas não o fez, pois se distraiu com os gritos em uníssono que ecoaram à distância, acompanhados pelo som de inúmeros passos apressados, atropelando uns aos outros nos corredores da fortaleza. Pela forma com que batiam os pés no chão, sabíamos que diversos demônios alvoroçados se aproximavam. Se nos encontrassem, estaríamos em apuros pela desvantagem numérica.
— Vai me dizer que a saída fica justamente pro lado de onde esses caras estão vindo?
Eu xinguei em voz alta, me dando conta de que a entrada convencional da fortaleza estava completamente bloqueada por aquela horda de monstros desconhecidos. E o que eu esperava, afinal? Que nos deixassem escapar assim tão facilmente? Foi uma tremenda estupidez da minha parte não imaginar que eles estariam nos esperando ali. Se o ataque foi tão bem planejado como eu achava que foi, com certeza todas as saídas seriam vigiadas.
— O que vamos fazer?! — Kuwabara perguntou.
— Correr! — ordenei a ele antes de recuar, retornando pelo mesmo caminho que havíamos percorrido até então.
Kazuma me seguiu, ainda mantendo a luminosa espada consigo para não cometer o erro de tropeçar novamente. Sem ter outra alternativa, avançamos pelas escadarias até o segundo andar, mas, naquele piso, as coisas estavam ainda piores. Por mais duas vezes fui obrigada a usar o punhal quando, repentinamente, dois youkais nos atacaram. O primeiro foi fácil de eliminar. Ao tentar me morder, aproveitei a aproximação para enterrar a lâmina diretamente em sua boca que, atravessando o palato, atingiu o encéfalo. Uma morte rápida e instantânea.
Já o outro, foi mais difícil. A pele, dura como pedra, não seria perfurada por uma simples lâmina. Capaz de produzir cópias de si mesmo, ele cercou Kuwabara num círculo formado por inúmeros clones. Quando Kazuma — que ainda encontrava problemas para lidar com a escuridão — destruiu as projeções do youkai, o verdadeiro o atacou pelas costas.
Transferi então a minha própria energia pro punhal e o lancei, atingindo-o em cheio na têmpora. A lâmina, energizada pelo meu poder, foi capaz freá-lo. Com o punhal preso na cabeça, ele grunhiu de dor e, em seguida, foi derrubado no chão por uma sequência de golpes de Kuwabara. Somente ao perceber que os punhos sangravam, Kazuma se deteve, afastando-se do cadáver. Ele exclamou de dor, sacudindo as mãos no ar.
— Deveria ter usado a sua espada.
— Mas você mesma falou pra não gastar energia à toa. Se decide, caramba! — ele retrucou descontente.
— Eu disse, mas a pele desse youkai é resistente, forte como pedra. Não era pra ter usado as próprias mãos nesse caso. Eu mesma tive que usar a minha energia, senão jamais teria conseguido perfurá-lo — aproveitei para recuperar a arma, agitando-a para retirar o excesso de sangue.
— E você soube disso só de olhar pra ele?
— Anos e anos dissecando youkais tinham que servir pra alguma coisa.
— Você dissecava demônios? Sinceramente, você me assusta mais do que eles.
De repente, uma explosão por pouco não nos atingiu. Pelo clarão momentâneo, pensei em ter visto o rosto familiar de um subordinado de Mukuro travando um embate com um invasor, mas não pude confirmar as minhas suspeitas de sua identidade. Avançamos então para uma área que estava mais clara, não pela fontes de luz artificial que continuavam desligadas, mas sim pela iluminação natural que entrava pelas janelas blindadas da fortaleza. E somente ao nos aproximarmos de uma delas, pudemos ver o que nos aguardava do lado de fora. Em frente à fortaleza de Mukuro, a Torre de Raizen também estava sob ataque de um verdadeiro exército de demônios.
A destruição era generalizada.
— Essa não! — Kuwabara socou a janela com força, mas a blindagem não cedeu. Ele tentou novamente, ferindo mais uma vez o próprio punho. O vidro, ainda intacto, ficou apenas manchado de sangue — Preciso tirar Yukina de lá! Como eu saio daqui?!
Não respondi. Procurando uma nova rota de fuga, nem consegui prever o ataque surpresa. Quando um youkai se desprendeu o teto, seu golpe cortante me atingiu de raspão no ombro. O demônio abriu a boca, provocando uma nova investida ao expelir uma esfera de energia em minha direção. Mais rápido, Kuwabara rebateu o golpe com a espada, desviando a trajetória da esfera para cima. Enfurecido, ele foi impiedoso ao empalar o corpo do demônio, erguendo-o no ar para, em seguida, o jogar num canto qualquer.
— Você tá bem?
Assenti, examinando a ferida superficial.
— Tudo sob controle.
Um estrondo acima de nós fez tremer as paredes do lugar. O ponto do teto atingido pela esfera de youki se rachou em um instante. Antes que os escombros pudessem me alcançar, no entanto, Kuwabara se antecipou.
— Cuidado! — num reflexo, ele me empurrou pro lado.
O impulso foi tanto que caí no chão. Quando o teto desabou, protegi a cabeça por instinto e abri os olhos somente quando todo o desmoronamento já parecia ter terminado. Uma enorme pilha de pedregulhos agora bloqueava a minha passagem, me isolando completamente de Kazuma. O ouvi resmungar do outro lado; a sua voz abafada gemia de dor.
— O que aconteceu? — perguntei — Você tá bem?
— Não muito…— sua fala soou arrastada por trás das pedras — Minha perna meio que foi esmagada.
Prendi a respiração, tentando manter a calma.
— Não se mexe, vou dar um jeito de chegar até aí — disse sem muito pensar, procurando descobrir como cumpriria com a minha palavra. Remover os destroços do bloqueio parecia impossível.
— Acho que nem se eu quisesse, conseguiria me mexer! Não se preocupa comigo. Vai atrás da Yukina. Tira ela desse lugar!
— Como se eu fosse te deixar aqui pra morrer! Vou procurar um jeito de dar a volta nesse andar. Aguenta aí!
Corri desesperada, procurando uma rota para reencontrar Kuwabara. Pelo caminho, desviei de mais alguns demônios, que digladiavam entre si como selvagens. Se havia algum aliado entre eles, eu jamais ia saber. Não conhecia muitos integrantes do exército de Mukuro e também não era o momento apropriado pra apresentações.
— Te achei!
A voz grave veio do nada, bem próxima do meu ouvido. Ao mesmo lado, porém, não havia ninguém. Ou pelo menos eu achava que não havia.
O monstruoso e enorme youkai, que até então estava invisível, surgiu dentre as sombras, me prendendo no piso ao se colocar sobre mim. Imóvel debaixo daquele corpulento demônio, eu mal conseguia respirar com a compressão nos pulmões. Já estava perdendo a consciência quando, com muita dificuldade, consegui livrar o braço para, em seguida, arremessar o punhal em seu rosto. A lâmina o atingiu no olho direito e gotículas de sangue voaram pelo ar. No instante em que ele cambaleou para trás e aliviou a pressão sobre mim, aproveitarei para levantar dali, conjurando minha energia para um novo ataque. No entanto, antes que tivesse a chance de executar o plano, o demônio sumiu novamente com aquele truque de invisibilidade. Quando apareceu por trás de mim, já era tarde demais. O golpe me lançou contra a parede violentamente. Caída no chão, minhas pernas cederam ao tentar me colocar de pé, e só então ele se aproximou sorridente.
— Vou ser bem recompensado por isso.
O encarei a tempo de ver o sorriso diabólico desaparecer de seu rosto quando a parede ao seu lado esquerdo explodiu. Incapaz de enxergar com clareza no meio de tanta poeira, somente ouvi o som agonizante de sua voz após um rápido feixe de luz o atingir. Em seguida, sua cabeça rolou pelo chão, cada vez mais distante do resto de seu corpo decapitado. Assustada, elevei o olhar pra claridade que invadia a fortaleza, me deparando com a última pessoa que esperava encontrar ali.
Shura se aproximou de onde eu estava, focado no demônio que havia acabado de matar. Fingindo estar alheio à minha presença.
— Que droga. Nem pra enviarem uns caras mais fortes.
Ele chutou a cabeça do demônio pra longe, se concentrando então unicamente em mim. Engoli em seco quando a realidade me despertou do estado catatônico. O que ele estava fazendo aqui? Não deveria estar em Gandara? Já estava claro que o ataque tinha sido minimamente planejado para acontecer justamente quando estávamos mais desprotegidos. Como Shura chegou tão rápido? Seria impossível, a não ser que já estivesse esperando que tudo isso acontecesse. Então, ele já sabia? Seguindo essa linha de raciocínio, cheguei a única conclusão plausível.
E se Yomi nunca esteve do nosso lado? E se ele mesmo planejou tudo isso?
KIARA POF
KUWABARA POV
A dor era lancinante. Há quanto tempo já estava jogado ali? Tudo ao meu redor parecia confuso. Levei a mão no rosto, ao perceber que sangue escorria de algum lugar da minha cabeça, mas nem sequer consegui detectar o local do machucado. Tudo doía, tudo ardia. Respirei fundo, tomando coragem pra olhar a ferida na minha perna direita. Uma maldita barra de ferro estava fincada no músculo, atingindo as camadas mais profundas do tecido. Por cima dela, ainda havia uma enorme pilha de concreto pressionando ainda mais todo o conjunto.
Quando o formigamento começou a se alastrar da ferida para o restante do meu corpo, soube que precisava fazer alguma coisa, antes que perdesse completamente a circulação sanguínea.
— Inferno! Por que essas coisas só acontecem comigo?!
Prendi a respiração e rapidamente ergui os pedregulhos que caíram sobre mim, jogando-os pra longe. Ao menor movimento, a ferida aberta protestou no ponto exato onde a barra permanecia fincada, pulsando de dor. A sensação foi tão torturante que não consegui conter o grito. Mesmo assim, não hesitei antes de tomar decisão de arrancá-la.
Um único puxão bastou para removê-la por completo do meu corpo, quase arrancando junto a minha própria alma. Quis desmaiar ali mesmo, enjoado e trêmulo, me esforçando para permanecer consciente. Respirar ficou difícil de repente, quando até mesmo o meu peito ardia para manter a funcionalidade. Só então que percebi que estava inalando fumaça. Usei todo e qualquer apoio em meu caminho para me reerguer e, tateando as paredes, tentei me mover pela única passagem estreita que havia restado, iluminada pela cintilante luz alaranjada que encontrei adiante.
A fortaleza estava em chamas. O fogo se alastrava rapidamente por todas as partes. Sabia que teria que correr para conseguir escapar dali, mas ao colocar a perna machucada no chão, quase caí novamente. Tinha certeza de que algum osso tinha sido completamente esmigalhado no desmoronamento.
Afundei o punho na parede com raiva, me sentindo um completo inútil. A vontade era de desabar ali mesmo e me entregar à própria sorte, mas a possibilidade de Yukina e Kiara estarem correndo perigo não me deixou desistir. Simplesmente não podia abandoná-las desse jeito. Senão, pra que foi que eu voltei?
Mancando, me arrastei mais um pouco, procurando um jeito de me esquivar do incêndio. Quando um vulto interceptou o meu caminho, porém, reagi por impulso com a espada espiritual, empunhando-a na intenção de atingi-lo. No entanto, o youkai apenas desviou, afastando-se em seguida para criar espaço entre nós.
Aquele demônio era diferente dos que havíamos encontrado até então, tanto em aparência, quanto em força. Não era uma fera estúpida como aqueles que enfrentamos com mais facilidade. Era forte, muito. De boa aparência e imponente. Tentei endireitar o corpo para não parecer tão vulnerável, mas sabia que não estava conseguindo o efeito intimidador que desejava, ainda mais considerando que tínhamos a mesma altura.
Ele me encarava surpreso e, apesar de sua evidente hostilidade, não me atacou.
— Você...? — ele disse, fazendo uma pausa antes de continuar. Parecia confuso e perturbado — Não era pra você estar aqui.
— Sabe quem sou eu? — perguntei.
— Claro que sei. Aquele amigo humano do filho de Raizen. O que faz aqui? Não tinha saído hoje?
— Voltei mais cedo do que eles. E você quem é, hein?
Ele mudou a postura, relaxando os músculos do rosto que antes se agrupavam em um semblante severo. E então, num piscar de olhos, parecia até simpático.
— Me chamo Karasuma. Sou integrante do exército de Mukuro. Onde está a garota?
— Que garota?
— A humana. Fiquei de guarda na fortaleza hoje. Mukuro mandou protegê-la.
O encarei desconfiado, sem saber ao certo o que pensar. A incerteza não passou despercebida.
— Não precisa me olhar assim. Estou dizendo a verdade.
— Eu não te conheço, cara. Como posso saber se...
— Se eu quisesse, acabaria com você agora mesmo. No estado em que está, seria muito fácil, não acha? Mas não fiz isso, porque estamos do mesmo lado.
No mesmo instante, outro youkai se materializou ali. Uma figura particularmente incomum, cuja espada de lâmina circular chamava tanta atenção quanto a aparência de seu próprio dono.
— Karasuma, onde está a menina?
— Shigure? Não sabia que também estava aqui — ele pareceu novamente surpreso, embora agora houvesse uma certa repulsa em seu olhar. Seriam adversários?
Não, pela forma com que se tratavam, não eram inimigos. Shigure…? Eu lembrava desse nome, tinha certeza que Kurama havia me falado dele uma vez. Era uma espécie de médico, ou algo assim. Então, esses eram mesmo os aliados de Mukuro? Relaxei, mais aliviado ao saber que não precisaria me preocupar.
— Mukuro alterou os turnos de alguns de nós. A intenção era que ninguém soubesse mesmo. Mas você não respondeu a minha pergunta.
— Não tenho ideia de onde a garota está. Pelo visto a presença humana desse aqui também te confundiu. Nós dois achamos a pessoa errada.
— Temos que encontrá-la logo. A situação está complicada. Alguns membros do exército morreram lá em cima. Tem um youkai matando todo mundo, seja inimigo ou não. Destrói qualquer coisa que estiver pelo caminho.
— Onde está a sua amiga? — o chamado Karasuma me perguntou de novo, ainda mais apressado pra sair dali.
— Acabamos nos separando. Não tenho ideia.
Ele torceu os lábios, irritado, se virando então para o outro.
— Tsc! Acho melhor você dar um jeito nesse aí. Nessa condição, ele não vai chegar muito longe. Eu vou procurar a garota — ele então desapareceu da mesma forma que chegou, evaporando instantaneamente.
— Isso está bem feio — o cirurgião do Makai olhou pra a minha perna, examinando a ferida superficialmente — Não deveria nem tentar ficar de pé.
— Como disse que era o youkai que está matando todo mundo?
Ele franziu o cenho, estranhando a pergunta.
— Nunca vi nada igual, parece mais um monstro do que qualquer outra coisa. Nem sequer demonstra ter ciência de quem é. Tudo que ele quer é matar, sem se importar com o que pode acontecer a ele próprio. Meus ataques nem parecem tê-lo machucado.
— Merda, se for o que eu tô pensando...preciso achar a Kiara.
— Não seja ridículo. Do jeito que está, vai morrer antes mesmo de conseguir dar vinte passos. Posso até dar um jeito nisso...— Shigure apontou para o meu ferimento —...mas vai levar um tempo.
— Eu não tenho tempo. Nenhum de nós têm! Se não sairmos daqui agora, todos vamos morrer. Precisamos ir, agora!
Shigure semicerrou os olhos, avaliando a urgência no meu tom de voz. Por fim, suspirou, concordando comigo. Não sabia se ele tinha se convencido de que eu estava falando sério ou se simplesmente não se importava com a minha vida a ponto de tentar me convencer do contrário. Agilmente, ele então amarrou uma espécie de torniquete na minha perna, aliviando instantaneamente boa parte da dor que eu sentia. Receoso, coloquei o pé no chão e, ao perceber que estava tudo bem, até sorri admirado. O desconforto tinha desaparecido como num passe de mágica.
— Incrível!
— É uma faixa anestesiante. Isso vai amenizar a sua dor, mas não vai resolver o problema. Na verdade, se você quiser mesmo andar agora, saiba que vai piorar ainda mais a sua condição. Pode ter uma hemorragia severa, inflamações nas veias, ficar com sequelas ou mesmo comprometer a sua vida. É por sua conta em risco.
Shigure me analisou, provavelmente esperando que eu voltasse atrás na minha decisão. No entanto, depois de ter visto como Piu tinha ficado após ser ferido por aquela criatura em Nozomi, não tinha outra alternativa a não ser seguir em frente.
Primeiro eu salvaria Yukina e Kiara e só depois pensaria nas consequências.
