Koenma estava nervoso, tremendo como há tempos não tremia. Ainda que fosse o comandante do Mundo Espiritual, nem mesmo ele tinha permissão para entrar naquele setor sem escolta ou vigia.
Seu estômago parecia estar se contorcendo dentro de seu próprio corpo. Se tivesse se alimentado, com certeza estaria prestes a vomitar. Tentando não transparecer o seu estado caótico, ele aceitou que os funcionários carcerários do Reikai o revistassem minuciosamente. Até porque, ele não tinha outra escolha a não ser colaborar com o procedimento.
As normas da prisão eram rigorosas, ainda mais tratando-se de visitas familiares. O sistema precisava garantir que nenhum prisioneiro seria capaz de fugir com a ajuda de um parente próximo e desesperado o suficiente para arriscar a própria vida em troca da liberdade do criminoso.
Esse, no entanto, não era o caso de Koenma.
Ajudar o seu pai a escapar da cadeia não era o seu objetivo, principalmente considerando o fato de que ele próprio tinha sido responsável pela sua prisão. O intuito da visita era outro. Uma atitude tomada pela ansiedade que a cada dia o dominava. A sua situação no Mundo Espiritual era crítica. Talvez, Koenma estivesse até mesmo com os dias contados. Se alguém podia ajudá-lo, esse alguém era o antigo líder do Reikai.
Mas se Enma Dai-Oh o ajudaria de bom grado, essa já era uma outra questão.
Após passar pela revista, Koenma obteve permissão para entrar na sala onde Enma era mantido como prisioneiro. Sua mão suava quando ele girou a maçaneta escorregadia da porta que o separava de seu pai.
Como antigo rei daquele Mundo, Enma Dai-Oh ainda usufruía de privilégios. O local em que fora confinado estava longe de ser uma cela de prisão convencional. Na realidade, era como se ele agora estivesse vivendo numa enorme e luxuosa suíte. Num quarto amplo o suficiente para deixá-lo bem acomodado, incluindo todas as mobílias e aparelhos necessários para que pudesse ter a falsa ilusão de viver uma vida normal. Koenma se sentiu culpado ao pensar que talvez aquele fosse um final muito benevolente para alguém que havia cometido tantos crimes. Não seria mais justo ele ter sido submetido às mesmas torturas que um dia aplicou a diversos youkais no passado?
Koenma dissipou aquele pensamento, principalmente porque sabia que, no fundo, não era isso que ele realmente desejava. E novamente a sua consciência pesou, dessa vez por sentir compaixão por alguém que não a merecia.
Enma Dai-Oh estava sentado em uma poltrona quando Koenma fechou a porta atrás de si, concentrado na leitura do jornal que segurava bem próximo aos seus olhos. Pelo lado de fora, as trancas da prisão foram acionadas e, de costas para o filho, Enma nem sequer precisou se virar para saber quem havia entrado em sua morada. Quando Koenma apareceu em seu campo de visão, sua expressão não se alterou. Inflexível, ele apenas estudou o atual líder do Mundo Espiritual, avaliando-o de cima a baixo.
Koenma engoliu em seco, petrificado diante daquele olhar analítico. O antigo rei estava em ótimo estado. Não tinha mudado absolutamente nada desde a última vez que o viu.
— Finalmente se lembrou de que tem um pai — Enma não fez cerimônias ao provocá-lo, jogando na mesa de centro o jornal que lia.
— Como você está? — Koenma respondeu, ignorando a alfinetada recebida. Ele não tinha intenção alguma de provocar uma discussão naquele momento, embora soubesse que apenas adiava o inevitável.
— Preso, desde que o meu próprio filho se encarregou de me trancafiar nesse lugar. Durante todo esse tempo você não teve sequer a decência de vir me visitar. O que veio fazer aqui hoje?
Koenma não respondeu. Porém, Enma Dai-Oh facilmente captou os sinais de conflito existentes em cada gesto de seu filho. Desde os seus olhares evasivos, até as contrações em seus músculos faciais. Ele sorriu de prazer, como se aquele fosse o mais satisfatório dos seus dias.
— Sabia que viria uma hora ou outra. É difícil aguentar o fardo todo sozinho, não é? — ele perguntou então — Até que você demorou para me procurar.
O ex-comandante do Reikai gesticulou em direção ao sofá da sala, convidando Koenma a se sentar ali. Koenma, por sua vez, sentiu o peso da humilhação o derrubar, terminando por aceitar o convite. Calado e com o orgulho ferido, sentiu-se um completo fracassado enquanto tentava sustentar o penoso contato visual com o seu pai.
— Vai me dizer o que quer ou não?
Koenma então decidiu ser direto.
— Soube do que tem acontecido?
— Mas é claro que não. Se esqueceu da decisão de me afastarem completamente de todas as notícias referente ao Reikai, Makai ou Ningenkai? Sou um completo alienado agora, ninguém me conta nada. Sobrevivo de rumores e programas idiotas de televisão. Isso é tudo o que me resta. Mas pra você vir até aqui, com certeza é algo grave. Muito grave. Se está com problemas para exercer a sua função, talvez devesse abandonar o cargo, enquanto ainda te resta um pouco de dignidade.
As provocações pioravam e Koenma tentava firmemente manter o controle, embora a sua paciência estivesse se esvairindo mais rápido do que ele gostaria.
— Não tenho intenção de fazer isso — ele respondeu simplesmente — Agora preciso que você responda algumas perguntas.
Pela primeira vez, Enma Dai-Oh mudou de expressão. Como se tivesse sido insultado com as piores palavras existentes no universo, ele enrugou a testa, forçando um semblante raivoso.
— É muito atrevimento da sua parte vir até aqui me pedir ajuda depois de tudo o que me fez.
— Na verdade, eu vim até aqui na posição de atual Líder Espiritual habilitado para interrogar um prisioneiro — a resposta de Koenma foi fria e atravessada, fazendo o rei Enma arquear as sobrancelhas — Tenho um problema para resolver e espero que você possa colaborar comigo.
— Então, é assim que vai ser? O poder enfim te subiu à cabeça, não é? Lamentável ver o tipo de pessoa que você se tornou.
— É mesmo, pai? — a palavra saiu da boca de Koenma como uma ofensa — Se pensa que vim implorar o seu perdão e me arrastar aos seus pés para que me ajude, está muito enganado. Além disso, saiba que não fiz nada contra você. Sua prisão é sua responsabilidade. Não fui eu quem cometeu tantos crimes em seu nome. Foi você e somente você que se meteu nessa situação!
Os lábios de Enma Dai-Oh tremeram, resistindo aos impulsos de lançar uma resposta governada apenas pelo seu ressentimento. Alguns segundos foram necessários para que ele conseguisse se recompor.
— Com que direito você me julga pelo que fiz, garoto? Não consegue entender, não é? Minhas ações serviam pra manter o mundo em equilíbrio. Em ordem.
— A quem quer enganar? Realmente acredita nisso? Você condenava demônios inocentes a lavagens cerebrais para sustentar uma farsa de que eram malignos. Essa ordem a que se refere, e que tanto você se orgulha, não passava de uma grande mentira. Você é uma mentira!
— Pode ser. Mas às vezes, as mentiras são necessárias, sabia? Você não viveu a época que eu vivi, seu grande idiota. Não viu o que eu vi. Demônios precisam ser mantidos sob controle, tratados como os monstros que são. Você não tem ideia do que eles são capazes.
— Mas é claro que tenho! Mas assim como existem youkais ruins, também existem humanos ruins. Parece que você se esquece disso.
— Não, eu não me esqueço. Mas você quer mesmo comparar uma formiga a uma leoa? A formiga no máximo irá te picar. Mas você pisa nela e acabou. Ela morre. Mesmo um formigueiro pode ser facilmente destruído. Enquanto que a leoa irá te caçar e te devorar na primeira oportunidade. E mesmo que você não faça nada à ela, ela vai te atacar — Enma se inclinou para frente a fim de aproximar os olhos de seu filho que, por sua vez, sentiu-se intimidado com o gesto — Humanos ruins atingem no máximo outros humanos, mas são fáceis de controlar e de punir. Youkais ruins atingem outros youkais, humanos e qualquer outra criatura que ousar atravessar caminho deles. Uma vez que você dá liberdade a eles, perde a sua própria autoridade. Não terá como puni-los, nem tampouco combatê-los. Quando menos esperar, eles vão te dominar. Humanos são fracos, youkais são fortes. Portanto, não me venha com falsas simetrias. Se quer que o mundo fique equilibrado, você precisa manter os youkais nas rédeas, senão é você quem vai se dar mal.
Koenma emudeceu, perdendo-se em sua própria linha de raciocínio. Às vezes, sentia como se seu pai fosse imbatível em argumentação. Por mais que Koenma se esforçasse, Enma Dai-Oh sempre tinha uma boa resposta na ponta de sua língua afiada. Fazê-lo mudar de ideia parecia uma missão impossível.
— Chega desse assunto. Não vim aqui pra isso.
— Pois se quer que eu responda às suas perguntas, também terá que me ouvir — Enma retrucou — É por ficar em cima do muro, querendo que todos sejam amiguinhos nesse seu mundinho cor-de-rosa e florido, que você se enfiou nessa situação! O dia em que você perceber que ser diplomático significa tomar partido de um do lado em detrimento de outro, será tarde demais. Se veio pedir minha ajuda, o maior conselho que te darei é que comece a agir da mesma forma que eu agia. Sei que esse ano youkais começaram a atacar humanos.
— Você tinha dito que não estava sabendo de nada.
— Eu disse que sobrevivia de rumores. Isso foi o que ouvi os guardas conversando. Você está ferrado. A culpa é toda sua por querer eliminar a barreira que separava os dois Mundos.
— Será que dá pra calar a boca por um instante? — Koenma rebateu, tentando-se defender — Nem sequer sabe o motivo dos ataques e acha que pode palpitar com tanta propriedade. Se quer saber, sua opinião sobre os youkais é risível, completamente sem fundamento. Confio em vários deles.
"Mais do que confio no meu próprio pai", Koenma pensou, preferindo não dizer aquilo em voz alta.
— Eles confiam em você? — Enma desdenhou — A natureza deles é maligna, não há exceções.
Koenma suspirou e, cansado, decidiu mudar completamente a abordagem.
— Chega! Vou fazer as minhas perguntas. Quando você me contou a história de Waru, disse que ele foi aprisionado após tramar contra os Deuses. Sabe se existe alguma possibilidade dele ter conseguido escapar e recuperar os poderes?
De repente, o antigo rei do Reikai pareceu genuinamente perturbado. Na realidade, o rumo inesperado que aquela conversa tomava o pegou totalmente de surpresa. Pela primeira vez, Enma hesitou antes de dar uma resposta.
— Por que está perguntando sobre isso? Que relação o...
— Apenas responda — Koenma o interrompeu.
Enma então suspirou, recostando-se na poltrona para endireitar as costas que já estavam há muito tempo curvadas.
— Não sei se há possibilidade de que Waru tenha escapado. Como poderia saber disso? É o tipo de informação que foge da alçada do Reikai.
— E quanto aos poderes dele? Disse que foram selados por Kana e que só ela sabe o que fez com eles. Tem certeza de que ninguém mais teve acesso a informação? Ninguém mais saberia como recuperá-los?
— Foi isso o que me disseram.
— A sua fonte era confiável? Quem te disse isso?
— Um dos Deuses me contou a história toda. Tire as suas próprias conclusões.
— Os Deuses estão em conflito novamente. Você sabia disso?
— O que quer dizer? O conflito entre eles nunca deixou de existir. Kenzo e Raikou um dia duelarão até a morte, se quer saber. Eles se odeiam desde sempre. É um ódio que nem mesmo a suposta trégua entre eles conseguiu amenizar.
— Disso tudo eu já sei. Me refiro ao conflito mais recente. Estive diante do portal há algum tempo, conversando com um mensageiro de Kenzo. A conversa foi breve, mas ele me sugeriu que há alguns anos os Deuses tem iniciado uma nova guerra. Você já sabia disso?
O rei Enma se calou por alguns instantes, avaliando a situação. Por fim, respondeu com sinceridade.
— Não. Quer dizer, eu sabia que a trégua não duraria para sempre, mas enquanto estive no controle do Reikai, eles não deixaram transparecer sinais de que estavam novamente guerreando entre si. O que aconteceu dessa vez?
— Eu também não sei ao certo. O mensageiro não quis me dar mais informações.
— Por que me perguntou de Waru? Por acaso suspeita que ele possa ter se libertado? Já adianto que isso é impossível. Kana é quem mantém ele aprisionado, então para que ele pudesse se libertar...
— Kana teria que estar morta? Eu já pensei nisso. Mas ela está viva, caso contrário...
— O planeta inteiro entraria em colapso — dessa vez foi Enma Dai-Oh que concluiu o pensamento, retomando a palavra — A morte de qualquer um desses Deuses resultará no fim de todos nós. Mesmo assim, você desconfia de Waru. Por quê?
— Não desconfio de nada. É só uma suposição.
— Um chute no escuro? — Enma riu — Está assim tão perdido para resolver esse problema?
Koenma bufou, irritado pela forma com que aquela conversa notavelmente estava sendo infrutífera. O sacrifício de estar ali suportando todas as ironias e provocações de seu pai parecia cada vez mais inútil.
— Respondi às suas perguntas, agora responda você as minhas. Qual a relação dessa história dos Deuses com os ataques que youkais tem feito aos humanos?
— Eu não sei — "se soubesse, com certeza não estaria aqui", Koenma pensou.
— Não me diga que até agora não interrogou nenhum demônio para descobrir o que realmente eles querem com tudo isso. Se não fez isso, é mais incompetente do que...
— O objetivo dos ataques eu já sei. Mas isso não me ajuda em nada.
Enma arqueou as sobrancelhas e se levantou, caminhando em direção à uma prateleira. Abriu a garrafa que ali repousava e despejou o seu conteúdo em um elegante copo de vidro. Recostado no móvel, ele se virou para Koenma antes de ingerir o primeiro gole da bebida ocre. O aroma de forte de álcool agora se alastrava por todo o cômodo.
— E qual era o objetivo deles? — perguntou então, voltando ao assunto.
— Capturar uma pessoa. Todos eles estavam atrás dela.
Enma franziu o cenho, digerindo a informação.
— Um alvo específico? Isso não é comum — ele voltou para a poltrona em que estava — Já encontrou essa pessoa?
Koenma não respondeu de imediato, pensando se valia a pena contar ao pai toda a história. Por um lado, ele desejava ir embora, mas, por outro, queria continuar ali, alimentando a falsa ilusão de que o antigo rei o ajudava como nos velhos tempos. Por fim, concluiu que, se ainda tinha esperança de obter algum resultado positivo daquela conversa, teria que ser o mais franco possível. Afinal, ele não tinha mais nada a perder.
— Sim. Mas ela também alega não saber o porquê está sendo perseguida.
— Ouvi falar de um massacre...— Enma mais uma vez levou o copo à boca — Já têm um tempo, mas os rumores foram terríveis. Um povo inteiro, se entendi bem.
— Sim. Isso mesmo.
— Que azar, hein? — o antigo líder do Reikai desprendeu um sorriso do rosto — Essa bomba foi estourar logo nas suas mãos.
Koenma lhe lançou um olhar enfurecido e, decidido a ir embora, se levantou num solavanco, certo de que com todas aquelas perguntas seu pai somente desejava perturbá-lo ainda mais. Ele realmente estava satisfeito em descobrir que o filho tinha fracassado ao assumir o cargo que um dia lhe tirou.
— Aonde pensa que vai? — Enma perguntou, assim que o viu se colocar de pé — Ainda não terminamos de conversar.
— Terminamos sim. Infelizmente, me enganei ao pensar que você saberia de alguma coisa. Foi um erro eu ter vindo aqui.
Antes que Koenma pudesse chegar até a saída, porém, Enma se levantou, disparando as palavras que fizeram com que o seu filho se virasse novamente, encarando-o com total indignação.
— Foram os komorebi, não é? O massacre aconteceu nesse clã, estou certo?
— Mais um dos boatos que ouviu por aí? — com cautela, Koenma se aproximou do antigo rei, entonando uma voz desafiadora.
— Não. Só liguei os pontos, depois de tudo que você me disse aqui. Sabia que cedo ou tarde aconteceria alguma coisa. Aquelas pessoas estavam condenadas desde que ela nasceu.
— Ela? — Koenma indagou, agora num misto de euforia e raiva. Se o seu pai sabia de alguma coisa, por que não lhe contou anos atrás? — Se refere a Kia..
Um baque reverberou por detrás das paredes, do lado de fora da luxuosa prisão em que Enma agora habitava. Rangidos distantes ressoavam pelo corredor. Os dois se entreolharam, estranhando o som. Koenma foi pego de surpresa quando, de repente, uma voz invadiu a sua mente.
"Paredes têm ouvidos. Da mesma forma com que eu escuto rumores, eles também conseguem escutar o que acontece aqui dentro."
Enma Dai-Oh, sendo um perito em utilizar a própria energia para estabelecer contato mental por telepatia, nem sequer precisou pedir permissão para entrar na mente de Koenma. Antigamente, quando trabalhavam juntos, as conversas não verbais eram comuns entre eles. Ainda assim, a retomada daquele hábito depois de tanto tempo deixou Koenma um tanto atordoado.
"Eles tem vigiado você? Por quê?".
Koenma perguntou, ainda sem proferir uma palavra sequer.
"A mim? Não. Eu não tenho mais importância. Estão vigiando você. Pelo visto, está mais enrascado do que pensei."
E então, três batidas na porta fizeram Koenma desviar o foco de seu pai.
— Senhor Koenma, está tudo bem aí?
Apesar da pergunta simular uma preocupação, o atual líder espiritual compreendeu que os seus passos estavam sendo observados, mais até do que os próprios criminosos da prisão. Para eles, o silêncio no cômodo era digno de suspeita.
— Tudo bem. Ele já está de saída! — na ausência de Koenma, o próprio Enma respondeu ao carcereiro — Podem destrancar a porta.
— O quê?! — Koenma protestou — Precisamos conversar. O que sabe sobre os komorebi? O que houve no dia em que Kiara nasceu? Me conta de uma vez!
— Não tenho nada pra te contar, garoto.
— Mas é claro que têm! — Koenma agora perdia o controle, praticamente avançando pra cima do pai — O que eles querem com ela? Quem são eles?
— Cala a boca! — Enma o advertiu e, como se quisesse fazê-lo falar mais baixo, ele próprio diminui o tom de voz, praticamente sussurrando ao se aproximar de seu filho — Eu te garanto que não tenho resposta pra essas perguntas, mas mesmo se tivesse, não te diria. Com o pouco que eu sei, apenas posso afirmar que você tem um grande problema nas mãos.
— O pouco que sabe? Você é um mentiroso — Koenma retrucou, ríspido e hostil — Essa é a vingança pelo que te fiz, não é? Por você, que se exploda esse mundo. Seu canalha.
Enma não se abalou com a ofensa. Agora, os passos suaves que se arrastavam pelos corredores da prisão, não tanto distantes dali, prendiam a sua atenção. Sombras deslizavam de um lado para o outro pela fresta debaixo da porta. Estariam os carcereiros com os ouvidos grudados na madeira para tentar escutar o que o pai e filho estavam discutindo? Ou pior, haveriam escutas ou câmeras dentro daquele espaço em que ele fora confinado para viver o resto de sua vida? Se houvesse, ele jamais saberia. Do lado de fora, os guardas atenderam à sua solicitação e o conjunto de trancas que mantinham a suíte fechada foi enfim aberto.
— Você devia se preparar para o pior, filho — ele disse por fim, sem disfarçar a ironia.
— E você devia se envergonhar do que está fazendo.
O ex-rei se aproximou do líder espiritual ainda mais, curvando-se em sua direção para encará-lo diretamente nos olhos. Koenma não se intimidou, tampouco tentou se afastar.
— Tem coisas que nem mesmo eu tenho permissão pra dizer, seu idiota. Coisas que simplesmente não dá pra contar. Se quiser, descubra você mesmo — quando a porta da cela se abriu e os carcereiros lhe apontaram as armas em tom de ameaça, ele se afastou, dando de ombros em seguida — Você se achava tão apto pra me substituir, por que não se vira agora? Peça ajuda aos seus contatos. Movimente todos os seus empregados. Jorge Saotome, Botan, Ayame, Masaru, Hinageshi e até mesmo Roan. Confia neles, não? Então, dê um jeito nisso. E saia logo daqui. Realmente foi um erro você ter vindo.
Koenma cedeu à pressão e, sem olhar para trás, saiu dali do mesmo jeito que entrou: nervoso da cabeça aos pés. A adrenalina o consumia de dentro para fora, enquanto voltava para o seu escritório com o intuito de ficar completamente sozinho.
Ele nem sequer registrou cada passo que dava, seguindo o caminho no modo automático. Quando enfim se viu a sós, sentou em sua cadeira e permaneceu estático enquanto olhava para o amontoado de arquivos ali presentes, mas sem de fato prestar atenção no que via.
Seus pensamentos tinham um único foco: as últimas palavras ditas pelo seu pai antes de ser enxotado para fora da prisão. Koenma sabia que a sua atitude repentinamente ríspida e fria não passava de um teatro. Uma encenação que somente ele teria sido capaz de perceber.
"Movimente todos os seus empregados. George Saotome, Botan, Ayame, Masaru, Hinageshi e até mesmo Roan. Confia neles, não?"
Foi fácil perceber que Enma estava preocupado com a vigia dia guardas e, por isso, não queria dizer nada na frente deles. E mesmo assim, sem que ninguém percebesse, ele disse.
"Roan".
Dentre todos os nomes que o antigo rei havia proferido cuidadosamente, Koenma não conhecia apenas esse. E por qual motivo o seu pai o citaria, então? A resposta era mais do que óbvia para o líder do Mundo Espiritual. Era um sinal. Um nome dito com simplicidade em meio a outros, como se não tivesse a mesma importância. Mas Koenma conhecia o seu pai melhor do que ninguém e sabia reconhecer as intenções por trás de cada uma de suas palavras.
"Movimente os seus contatos", Koenma pensou de novo. Se Roan o ajudaria, como seu pai lhe garantiu por meio de curtas palavras, ele tinha que procurá-lo.
Mas quem seria Roan, afinal?
YUSUKE POV
Eu não tinha outra alternativa senão lutar. Normalmente, isso teria me animado mais do que qualquer outra coisa, mas naquela situação, sabendo que Kuwabara e Kiara poderiam estar em apuros do outro lado do Makai, enfrentar aqueles youkais não passava de um estorvo. A maioria deles não servia nem pra distração. Eram tão fracos que qualquer golpe já os derrubava. Os outros, porém, muito mais resistentes, exigiam ataques mais elaborados.
A verdade é que queriam nos vencer pela exaustão. Aproveitando que estavam em vantagem numérica e pela forma impensada que agiam, eles apostavam que nem mesmo todo o exército de Yomi seria suficiente para enfrentá-los. Quanto mais tentávamos dar um fim àquilo tudo, mais parecia uma guerra interminável. Quanto tempo perderíamos naquela porcaria de batalha?
Eu tinha que dar um jeito de voltar para o Reino de Raizen, antes que fosse tarde demais.
Joguei o meu último adversário no solo a tempo de me livrar de outro grupo de demônios que avançavam em minha direção. Procurando pela rota mais próxima de fuga, um ataque aéreo me pegou desprevenido em meio à confusão. O vôo rasante do youkai me atingiu nas costas e me desequilibrou. Me virei no mesmo instante em que caí ao chão já apontando a mira para cima, em direção ao demônio voador. No entanto, o tiro nem sequer precisou ser disparado.
Um outro youkai o agarrou no ar. Rápido, o seu vulto giratório se misturou ao adversário e, ao pousar de costas para mim, à distância pude vê-lo desmembrar o outro como se não fosse nada, devorando-o ali mesmo. Mentiria se dissesse que a cena não me deixou horrorizado, mas o que me fez paralisar na realidade foi a sua identidade. Aquele monstro era o mesmo que enfrentamos naquela ilha. Não necessariamente o mesmo, mas com certeza era da mesma espécie.
Aquilo complicava toda a situação. Se alguém fosse ferido por ele, terminaria do mesmo jeito que Piu.
O monstro então novamente alçou vôo, se distanciando de mim. Distraído com a cena, não notei que amarras finas e resistentes emergiram do solo e envolveram o meu corpo, imobilizando os meus braços e pernas. Ao tentar resistir, o material contraiu, rasgando a minha pele. Quanto mais tentava me livrar, mais preso eu ficava dentro daquele emaranhado de fios cortantes e fortes como aço.
A tensão foi desfeita somente quando algo ainda mais forte os arrebentou. Os fragmentos que se enrolavam em mim por fim se soltaram, caindo ao chão enfraquecidos. Quando me virei, Youko arrancava do solo o youkai responsável pelo ataque, escondido em túneis abaixo de nós. Sem piedade, Kurama disparou uma quantidade absurda de folhas em sua direção. As extremidades cortantes o retaliaram em diversos pedaços. Fácil como se rasgar papel.
— Precisamos sair daqui — ele disse então ao se aproximar — Kuwabara, Kiara e Yukina certamente estão em perigo.
— Disso eu já sei, mas é impossível! Esses desgraçados não dão uma folga! Nunca vão deixar a gente sair daqui! São muitos e eles não param de atac...
Nem sequer tinha terminado de responder, antes de ter que me defender de novas investidas. Kurama fez o mesmo, repreendendo o grupo de youkais que nos ameaçavam. Sem paciência, expandi minha própria energia, como se criasse um campo de força ao meu redor, repelindo os demônios mais fracos que tentavam se aproximar de nós.
— Tem alguma ideia de como saímos daqui? — perguntei a Kurama, enquanto nos mantinha relativamente seguros pelo escudo de energia projetado.
Ele olhou para cima. Não parecia muito certo do que sugeriria a seguir.
— Por terra será impossível, mas podemos escapar pelo céu. Há poucos youkais aéreos.
— Poucos? Você está louco? Os piores são os voadores. Aquela coisa que nos atacou na ilha está aqui!
— Eu sei. Já vi alguns.
— Alguns…? Quantos?!
— Não importa o número. O que importa é que eles vão fazer um estrago. Mesmo assim, o melhor jeito de fugirmos é pelo céu. Não tem como escaparmos de todos esses youkais por terra. Eles vão nos seguir.
Ao meu redor, explosões continuavam reverberando por todos os lados. Demônios tentavam invadir o meu território, e manter a força de repulsão ficava cada vez mais difícil, principalmente considerando o quão desgastante era ficar naquele estado defensivo. Eu não aguentaria por muito mais tempo.
— Eu posso usar a floating leaf (1) em nós. Podemos ir voando e...
— Quer saber, Kurama? É uma boa ideia, mas não vai dar certo pra mim. Você faz isso e vai direto pra torre do Raizen. Não perde mais tempo aqui! Eu te dou cobertura!
Nem o esperei contestar a minha decisão. Ao desfazer o meu campo de energia, corri de encontro à multidão de youkais que se acumulava diante de nós, me deixando evidente como alvo. Kurama entendeu o plano. Ao me usar como isca, ele pôde alçar vôo, conseguindo passar quase despercebido por quase todos aqueles demônios. Sabia que os poucos que ainda prestavam atenção nele não seriam um problema. Caso tivessem condições de segui-lo, Kurama conseguiria facilmente derrotá-los.
Eu esperei que a horda de youkais me atingisse com força. Derrubei os primeiros que me golpearam, abrindo espaço para que outros viessem. Mais uma vez, lutei contra eles, repetindo o ciclo. Perdi a conta de quantas vezes fiz aquilo, até que o cansaço de fato começou a afetar o meu desempenho. Naquela onda sucessiva de ataques, minha energia de esgotava depressa. Quando a minha velocidade caiu, o descuido foi fatal.
Os youkais se acumularam em torno de mim, me atacando de uma só vez. Quando fui encoberto pela pilha de demônios que agora digladiavam ao meu redor, tudo ficou escuro. A última fonte de luz foi completamente bloqueada. Soterrado debaixo daqueles demônios, senti uma sensação esmagadora em meu pescoço me impedir de levantar. Sufocado, perdi o ar rapidamente. Era como estar submerso, prestes a me afogar. Tudo ficou dormente quando os meus sentidos começaram a deixar o meu corpo.
Um estrondo fez o chão tremer. Gritos estridentes se misturaram a um subilar agudo. A asfixia em minha garganta de repente desapareceu e o ar rapidamente voltou a preencher os meus pulmões, me fazendo queimar de dentro pra fora ao recuperar o fôlego num movimento sôfrego. A pressão ao meu redor desapareceu e quando voltei a enxergar, Yomi estava diante de mim. Os youkais que antes tentavam me matar, haviam sido completamente pulverizados.
— Devia ter ido junto com Kurama. Se o território de Raizen estiver na mesma situação que o meu, ele vai precisar de reforços. A não ser que você não esteja em condições de...
— Mas é claro que eu tô em condições — interrompi, me levantando depressa.
— Não foi isso o que eu acabei de ver.
— Que você acabou de ver? É alguma piada?
Ele ignorou o comentário, rebatendo novamente os golpes dos youkais que tentavam a todo custo atingi-lo. Sua defesa eficaz os manteve distantes de nós. Era muita informação de uma só vez e me concentrar em tudo ficava cada vez mais difícil. Um lampejo cintilante foi então disparado do céu, dividindo-se em inúmeros raios. Me preparei para receber o impacto do golpe, no entanto, antes que nos atingisse, uma forte ventania varreu tudo ao nosso entorno e um tornado imenso se chocou com a chuva luminosa que caía sobre nós. A explosão foi intensa, nos obrigando a recuar para não sermos atingidos junto aos demais youkais ali presentes.
Já conhecia o autor do estrago antes mesmo que ele aparecesse, mas mesmo assim fiquei surpreso ao ver Jin no céu.
— Ouvi o que vocês disseram — ele disse, ao pousar diante de nós, se voltando a mim em seguida — Eu tô indo atrás do Kurama. Que vir comigo, parceiro?
— Voando? E por acaso acha que consegue me levar junto?
— Mas é claro! E com a minha velocidade, a gente alcança ele rapidinho.
Relanceei Yomi e Gandara. A metrópole em si ainda não tinha sido acometida pelo ataque. As barreiras erguidas pela equipe de Yomi eram mais eficazes do que eu tinha imaginado.
— Gandara vai ficar bem — ele disse, como se já soubesse o que eu estava pensando — Resgate quem tiver que resgatar e traga pra cá pelo outro lado do território, onde a guerra não está acontecendo. A cidade vai permanecer segura. Shura está no Reino de Raizen. Ele vai te mostrar o melhor caminho.
— Shura está lá? Por quê?
— Porque eu mandei que ele ficasse por perto, para caso fosse necessário. Pelo visto, foi a decisão correta. Mas apesar de confiar plenamente na força dele, sei que o temperamento de Shura não é dos melhores. Por isso quero que o encontrem, pra garantir que tudo ocorra bem. É melhor irem de uma vez, antes que percam essa chance.
Ele não precisou falar mais nada. Nos deixando para trás, Yomi voltou a se concentrar nos demônios que invadiam a sua terra, enquanto Jin e eu aproveitamos a oportunidade para escapar, com a esperança de que estivéssemos enganados a respeito das condições no Reino de Raizen.
Mas e se não estivéssemos?
(1) Aquela planta que o Kurama usa pra criar asas e voar por aí.
